Todas as segundas-feiras, após o almoço, a rotina diária da prisão é interrompida, com a sala de visitas a transformar-se, durante cerca de uma hora, em local de ensaio para os 15 elementos do Grupo Coral do Estabelecimento Prisional de Beja.
Ao contrário dos restantes dias, o espaço não é ocupado por familiares ou amigos dos reclusos, à espera de os ver. São os integrantes do grupo que se sentam nas cadeiras dispersas pela sala, alguns com folhas nas mãos onde constam as modas que vão entoar.
“Já cantámos com outros grupos e sentimo-nos ‘par a par’, de alguma forma, não [como] cidadãos descartáveis, mas de pleno direito, apesar de ser por curto período de tempo”, conta à agência Lusa Bruno Cordeiro, de 42 anos, um dos membros do grupo coral.
Há precisamente 10 anos, a 27 de novembro de 2014, o cante alentejano foi classificado Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
O reconhecimento surgiu na sequência de uma candidatura apresentada pela Câmara de Serpa, no distrito de Beja, e pela Entidade Regional de Turismo do Alentejo e Ribatejo.
O cante faz “esquecer e apagar um pouco a dor” de estar preso, afiança Bruno, argumentando que os reclusos são “homens dignos, independentemente dos motivos” pelos quais ali estão. E participação no grupo coral ajuda a perceber isso.
Antes do ensaio e enquanto alguns cantadores ainda tentam decorar as modas, Joaquim Almeida, o recluso que está há mais tempo no grupo, enfatiza à Lusa que a iniciativa é “uma maneira de experienciar a convivência do cante” e de os tornar “um bocadinho mais livres”.
As atuações fora da cadeia permitem mostrar “a sociedade onde nós deveríamos estar e não estamos”, pois “estamos limitados por algo que fizemos, mas [assim] acabamos por experienciar essa vida”, sublinha.
Joaquim, de 34 anos, está há seis no grupo coral e já lhe apanhou o jeito, mas recorda que, até iniciar a sua participação na formação, ainda que gostasse de ouvir cante alentejano, nunca tinha experimentado cantar.
“Acabou por ser uma descoberta e é bom também descobrirmos que temos algo positivo”, vinca, admitindo que, quando sair da prisão, gostaria de continuar a cantar.
Já Bruno Cordeiro carrega a ‘herança’ de ter tido familiares e também amigos que integraram grupos corais. Antes de estar preso, também tinha por hábito “cantar com os amigos, em algum petisco tipicamente alentejano, regado com vinho e modas”.
“Nasci neste contexto e, desde que para aqui vim, vai fazer agora três anos, tive a oportunidade de ingressar neste projeto”, assinala, frisando que em “boa hora” aceitou o desafio feito por técnicos de reeducação e outros reclusos.
Quando canta, Bruno sente que está a “honrar o património histórico” deixado pelos seus avós, que “trabalharam de sol a sol” no campo e “passaram muitas necessidades”.
“É um peso grande que fazemos com leveza, apesar de tudo, e com uma sensação de dignidade, porque é um legado histórico que é digno de manter”, acrescenta.
Num espaço da sala sem cadeiras, e já sem as folhas de papel na mão, os 15 integrantes, juntos uns dos outros, alinham-se em duas filas, sob orientação do mestre do grupo, Bernardo Emídio, e interpretam algumas modas.
“Cada vez estamos a crescer mais. Já temos mais dois membros e acho que já está mais um para entrar”, salienta à Lusa o mestre do grupo coral, enquanto vai dando indicações sobre a afinação de quem começa a cantar.
Bernardo garante que só vê vantagens na iniciativa. O cante alentejano permite que os reclusos participantes tenham contacto com a cultura alentejana, aprendam sobre música e esta expressão cultural e reforcem o espírito de amizade entre eles.
Fundado em 2006, o Grupo Coral do Estabelecimento Prisional de Beja, pelo qual já passaram muitos reclusos, teve como mestre o cantador Francisco Torrão, mas, há quase um ano, o ‘testemunho’ passou para Bernardo Emídio, músico e cantor do grupo Adiafa.
Esta iniciativa resulta de uma parceria entre este estabelecimento prisional para homens, que atualmente tem 172 reclusos, e a Câmara de Beja, através do Centro UNESCO, cabendo ao município o pagamento das despesas com o ensaiador.
SM // RRL
Lusa/Fim
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