Na tarde desta sexta-feira, a ex-ministra da Saúde foi ouvida na comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas tratadas com o medicamento Zolgensma no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 2020.

Logo a iniciar o seu discurso, Marta Temido garantiu: “Não tive qualquer contacto com o caso. Isso já ficou demonstrado com o trabalho inspetivo da Inspeção Geral das Atividades em Saúde e pelas audições que a CPI já realizou”.

Questionada pela deputada da Iniciativa Liberal, Joana Cordeiro, sobre quando teve conhecimento deste caso, Marta Temido explicou que recebeu um contacto de uma jornalista de televisão que a questionou se tinha “ouvido falar de um tratamento com o medicamento mais caro do mundo que envolvia umas crianças gémeas”.

“Respondi à jornalista aquilo que a minha memória me trazia. Tinha uma ideia de várias crianças (...) e disse-lhe ‘tenho ideia, uma vaga ideia de umas gémeas’, mas o meu distanciamento do caso e a minha total boa-fé foi tanta que continuei na minha atividade”, explicou.

Seguidamente, confessou que, na época, falou sobre o caso com o Secretário de Estado, Lacerda Sales: “Essas conversas foram mantidas numa fase muito inicial deste processo, das primeiras reportagens, e depois penso que, como é da natureza das coisas, todos nós nos preservamos uns aos outros de trocar informação sobre o tema”.

A ex-ministra da Saúde garantiu que, depois disso, não entrou em contacto com mais ninguém.

Confrontada com a facilidade com que as gémeas tiveram acesso ao medicamento, Marta Temido disse que, embora ”o processo possa hoje estar a ser questionado sobre aquilo que envolveu”, as gémeas luso-brasileiras “tiveram o acesso que tinham de ter”.

Joana Cordeiro questionou ainda se a alegada intervenção direta de Lacerda Sales na marcação da consulta foi correta, ao que Marta Temido respondeu “não saber o que António Lacerda Sales fez”.

E acrescentou: “Não vou emitir um juízo de valor. Mesmo que o tenha, guardo-o para mim”.

Já Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, insistiu e questionou se era normal os gabinetes do Ministério da Saúde requererem a marcação de consultas, ao que a ex-ministra da Saúde respondeu não ser "o circuito normal".

No seguimento, Jorge Pinto, deputado do Livre, perguntou que tipo de averiguação a ex-ministra fez sobre o caso, ao qual a mesma respondeu que pediu todos os documentos relacionados com o processo das gémeas.

No entanto, referiu que não contactou “verbal ou pessoalmente nenhuma das pessoas que pudessem ter informação sobre o processo” das gémeas, tendo enviado “um ofício ao gabinete do ministro da saúde" para obter a documentação.

Após revelar a forma como procedeu, João Almeida, deputado do CDS-PP, questionou se as suas secretárias intervieram no processo.

"Se isso tivesse acontecido, ter-me-ia sido dada a informação", disse Marta Temido.

Quanto à sua forma de proceder, a ex-ministra da Saúde afirmou que questiona-se a si própria se poderia ter agido de outra forma.

Por outro lado, admitiu que não sabe por que o ofício sobre o caso não foi encaminhado para o seu gabinete pela Secretaria Geral do Ministério da Saúde, mas para o gabinete de Lacerda Sales.

Contudo, afirmou: “Subscrevo a ideia de que os governantes são responsáveis pelos atos das suas equipas. A minha equipa envolvia o secretário de estado”.

Inês Sousa Real, deputada do PAN, questionou logo de seguida se teria contactado com o filho de Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, garantindo Marta Temido que: "Nunca o Dr. Nuno Rebelo de Sousa, com quem nunca me cruzei, me contactou".

Na sua vez, André Ventura, deputado do Chega, voltou atrás e questionou uma afirmação de Marta Temido quanto ao responsável pela marcação da consulta das gémeas ser o “médico”.

"O que estou a dizer é a responsabilidade pelo ato médico. Não estou a falar de qualquer outro tipo de responsabilidade da qual não cuidei, nem cuido, na minha intervenção", assumiu a ex-ministra da Saúde.

Novamente questionada pela intervenção do Secretário de Estado e confrontada com um email, onde a neuropediatra, Teresa Moreno, que tratou as gémeas luso-brasileiras diz que a consulta para as gémeas foi pedida por Lacerda Sales, limitou-se a responder: “Se há uma responsabilidade política por trás, é o que está a ser avaliado”.

Tribunal deferiu queixa da mãe das gémeas

O presidente da comissão parlamentar de inquérito das gémeas, Rui Paulo Sousa, revelou, no início dos trabalhos, que o Tribunal Administrativo de Lisboa revelou que “não se considera competente” para julgar a queixa da mãe das crianças referente ao uso da documentação da seguradora.

O deputado do Chega afirmou que “este assunto diz respeito à Assembleia da República e para já está resolvido”.

Em agosto, a mãe das crianças tratadas no Hospital de Santa Maria, apresentou uma queixa no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Assembleia da República.

A queixa de Daniela Martins tinha como objetivo obrigar o parlamento a ignorar e apagar a documentação obtida pelo deputado do PSD António Rodrigues sobre o seguro de saúde no Brasil.

No início de setembro, Rui Paulo Sousa (Chega) disse que ia apresentar uma queixa, a título individual, contra o advogado da mãe das crianças e indicou que os deputados decidiram aceitar novos documentos sobre o seguro de saúde.

“Eu decidi, como deputado da comissão, a título individual, avançar com uma queixa contra o doutor Wilson Bicalho, referente à audição que ele teve nesta comissão e que já foi discutida amplamente, desde os comentários que fez [sobre] alguns deputados, como ao próprio parlamento e por não ter indicado inicialmente, antes de ter feito a declaração inicial, que não iria falar a seguir. Portanto, eu próprio vou avançar com essa queixa”, transmitiu na ocasião.

Hoje, após reunião de mesa e coordenadores, o deputado do Chega indicou que o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, deliberou “enviar um pedido à 14.ª Comissão de Transparência e aos Estatuto dos Deputados para que abra um inquérito para avaliar esses acontecimentos que ocorreram durante” a audição ao advogado de Daniela Martins.

“Neste momento o caso vai ficar nas mãos da 14.ª Comissão, que terá que deliberar nesse sentido, abrir um inquérito e chegar a alguma conclusão sobre isso, que depois possivelmente poderá ser votado em plenário e depois a decisão vai seguir para as vias competentes, caso assim entenda o plenário da Assembleia da República”, referiu.

O que aconteceu neste caso?

Está em causa o tratamento hospitalar, em 2020, de duas crianças gémeas residentes no Brasil, que adquiriram nacionalidade portuguesa e receberam, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o medicamento Zolgensma.

Com um custo de dois milhões de euros por pessoa, o fármaco visa controlar a propagação da atrofia muscular espinal, uma doença neurodegenerativa.

O caso foi divulgado pela TVI, em novembro passado, e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República, que afirma que “o inquérito tem arguidos constituídos”, e a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde já concluiu que o acesso à consulta de neuropediatria destas crianças foi ilegal.

Também uma auditoria interna do Hospital Santa Maria concluiu que a marcação de uma primeira consulta hospitalar pela Secretaria de Estado da Saúde foi a única exceção ao cumprimento das regras neste caso.

*Com Lusa