Esta quinta-feira, 20 de fevereiro, a Igreja Católica celebra a Festa Litúrgica dos Santos Francisco e Jacinta Marto. Mas a data é particularmente importante na vida de Santa Jacinta, uma vez que se assinala também o dia em que a pastorinha morreu, em Lisboa, na cama nº 38 do Hospital D. Estefânia.
E porque os santos são do lugar onde morrem e não do sítio em que nascem, o hospital decidiu assinalar a data — embora o Santuário de Fátima assinale também o centenário no seu programa durante todo o ano, porque "a santidade não é incompatível com a infância".
Em Lisboa, por sua vez, foi hoje organizada uma conferência no hospital, que teve lugar na sala Lídia Gama. Estiveram presentes o Pe. Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário de Fátima, o Pe. Carlos Azevedo, capelão do D. Estefânia, a Irmã Ângela Coelho, postuladora da causa de canonização de Francisco e Jacinta Marto, Carla Afonso Rocha, responsável pelas conferências sobre Santa Jacinta na Rua da Estrela e Paulo Barroso, estudante de teologia em Toulouse. Do lado de fora da sala, uma exposição organizada por Francisco Noronha de Andrade, servita no Santuário, com vários elementos relacionados com Fátima e os pastorinhos.
A primeira parte da conferência esteve à responsabilidade de Carla Afonso Rocha, com quem o SAPO24 falou sobre a história de Santa Jacinta em Lisboa. Destacando a importância da pastorinha no hospital, Carla relembra a entrada naquele espaço, a 2 de fevereiro de 1920. "Jacinta esteve neste hospital, depois de vir da Estrela. O documento da entrada tem a morada Rua da Estrela nº25, mas hoje está numerado como 17, já que o prédio tinha anexado um outro que depois foi demolido", explica.
No hospital, contudo, já não existe o espaço físico em que esteve a menina. Há, sim, um lugar aproximado, com um memorial (agora renovado) que relembra o acontecimento e que recebe a visita de devotos todo o ano — tal como fez esta tarde o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, para escrever uma mensagem que marca a sua presença na missa do centenário, que se seguiu à conferência.
Para Carla, "Jacinta, ao vir para a cidade, trouxe com ela Nossa Senhora para Lisboa". A responsável pelas conferências aproveita a deixa para fazer um paralelismo com o que marcou também hoje a atualidade. "Sem entrar em políticas, a casa onde esteve Santa Jacinta em Lisboa, na altura um orfanato e hoje o Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, pertence à mesma paróquia e freguesia da 'casa' onde hoje se tem de decidir a [despenalização da] eutanásia". A par, projetava atrás si a mensagem que Nossa Senhora terá deixado a Jacinta quando lhe apareceu naquele quarto na Estrela, onde é referido que "a capital converter-se-á numa verdadeira imagem do inferno".
Manuel Tavares, de 83 anos, conhece bem o valor da presença de Jacinta no hospital, tendo-o experienciado na primeira pessoa.
"Ocupei a cama da Jacinta 20 anos depois de ela morrer. Eu entrei para o hospital no dia 24 de dezembro de 1940, tinha quatro anos de idade na altura. Estive cá até 1953, foram 13 anos internado no hospital", começa por contar ao SAPO24. "Tinha uma osteomielite [infeção da medula óssea], que na altura era das doenças ósseas que existiam. Era a tuberculose óssea, os ossos eram fracos", simplifica.
Sobre o hospital, recorda que "a enfermaria tinha miúdos até aos sete anos", mas Manuel esteve internado mais tempo, até aos 17. As marcas desse período ainda são recordadas. "A tuberculose óssea fazia buracos — ainda tenho quatro no corpo, tudo sarado. Como os ossos eram fracos, usavam-se, na altura, aparelhos de gesso. Durante sete anos, na altura do crescimento, usei um. Não havia fisioterapia, não havia nada dessas coisas e ainda fiquei com mazelas", conta.
"Aqueles anos eram terríveis. Toda a gente tinha fístulas grandes, ossos podres, e vivíamos à base dos aparelhos de gesso, para não se partir os ossos. Quando era a altura de fazer pensos era horrível. Éramos 51 doentes na enfermaria, dos quais 45 eram doentes com tuberculose óssea. Passava-se ali o resto da vida. Depois havia uns casos de apendicite, que estavam ali um ou dois meses e iam embora".
Mas nem tudo era complicado, apesar da doença. "Estive aqui na Estefânia e nós éramos felizes. Sabíamos lá o que era a felicidade ou a infelicidade, mas éramos muitos felizes no hospital. Estávamos cá durante 10 ou 15 anos e era aquele grupo, conhecíamo-nos todos, tínhamos as nossas brincadeiras".
Sobre a relação com Santa Jacinta, Manuel Tavares recorda que começou por não ser óbvio — afinal, era ainda uma criança muito pequena.
"Fui para a cama que tinha sido da Jacinta nos primeiros dias no hospital e apareciam lá aqueles jesuítas e aqueles padres de barbas grandes. Aquilo para mim era de facto complicado. Na altura eu era conhecido por 'bebé chorão', porque aquilo metia-me medo. A certo ponto tiveram de me mudar de cama, porque naquela altura as visitas eram diárias. Chegavam ao pé da cama e ajoelhavam-se a rezar. Eu não percebia nada do que se estava a passar", conta.
"Só soube que estava na cama da Jacinta uns anos depois, quando comecei a perceber da vida. Claro que já tínhamos pensado que tinha havido ali alguém naquela cama, já que chamava pessoas. Padres e outras pessoas, de todas as nacionalidades", refere.
Mas a certa altura, as visitas ganharam outra relevância com a presença assídua, a partir de 1945, de "um padre muito pequenino — nós éramos miúdos mas ele era mesmo pequenino. Nós puxávamos-lhe a batina e íamos atrás dele fazer-lhe umas maldades, a brincar. Só quando saí do hospital é que percebi quem era: era o Padre Cruz, que lá ia todos os domingos".
Conhecido como "o padre mudo", porque entrava e saía do hospital sem soltar uma única palavra, o jesuíta "apóstolo da caridade" teve o processo de beatificação iniciado em 1951.
Mesmo depois de sair do hospital, Manuel continuou a sentir que havia qualquer coisa diferente naquele lugar. Já crescido e casado, foi a Fátima. "Um dia fui ao Museu da Cera, entro e vejo que aquilo [uma das cenas do museu] está tal e qual como era no hospital, com as enfermeiras e tal. A cama era igual. Até disse à minha mulher que senti uma coisa esquisita, um arrepio", confidencia. "Tenho histórias que nem posso divulgar porque não tenho quem as confirme de tão diferentes", atira sem dar mais pormenores.
A vida, contudo, foi-lhe sorrindo, apesar do início conturbado — e sorri quando se pergunta se teve a mão de Santa Jacinta. "Houve qualquer coisa na minha vida. Nunca fui à escola, mas fui um funcionário de alto nível e hoje tenho uma empresa minha, líder em Portugal. Nunca estudei, nunca entrei numa escola. Em 1956 tive o meu primeiro trabalho, no Metropolitano de Lisboa. Dormi numa caserna, a música que eu ouvia eram os homens cansados e que ressonavam depois de trabalharam todo o dia de picareta porque não havia máquinas. Mas fiz sempre tudo, correu tudo bem e cá estou", diz.
Jacinta Marto – protagonista dos acontecimentos ocorridos na Cova da Iria em 1917, com o irmão Francisco e a prima Lúcia – morreu com nove anos no Hospital D. Estefânia, em Lisboa. Passaram cem anos, mas a história continua viva e, dizem, a mudar vidas.
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