Ao quarto dia da Jornada Mundial da Juventude, o descanso impera. Quem subia a Avenida da Liberdade à hora de almoço via grandes grupos parados na sombra. O facto de estarem sentados na calçada parecia não importar, a existência de árvores era o mais importante.
Muitos dos grupos eram portugueses, alguns estrangeiros pelo meio. Pareciam mais apagados do que nos dias anteriores. Manifestavam-se menos, cantavam menos. Podia ser devido às horas e à fome, mas os rostos afogueados mostravam que não podia ser só isso. Se é São Pedro que controla as portas do céu e a chuva, certamente muitos já agradeciam que viessem pelo menos uns borriços. Mas ninguém quer Santa Bárbara como aconteceu em Madrid em 2011, que tempestade com trovões também é demasiado.
A meio da Avenida, ainda antes do controlo para as entradas, descansava um grupo da Arrifana. “Do Porto, não da outra do Alentejo”, ouve-se logo.
"Chegámos na segunda-feira, está a ser uma experiência bastante intensa, honestamente. É mesmo muita gente. Apesar de estar previsto que fosse assim, acho que não tínhamos a noção da quantidade de gente que efetivamente ia ser", diz Leonor ao SAPO24.
Para isso contribui "ver tantas bandeiras", aponta. "Nem sei explicar. Até me esqueço que isto é Portugal, juro! É tanta gente diferente e quase não se ouve português. Quando ouvimos um português ficamos 'Ó, meu Deus! Eles são como nós!', mas estamos em Lisboa. São realmente tantos estrangeiros que nem parece que estamos em Lisboa".
"Sempre que nos cruzamos com estrangeiros cantamos o que eles cantam, com os portugueses andamos sempre a gritar 'Portugal' uns para os outros. Mais a referência ao Cristiano Ronaldo, cruzamo-nos e há logo aquele 'siiii'", conta a rir.
Vasco está sentado ao lado e compara esta JMJ com a de Madrid. "Está a ser muito diferente, porque agora estamos a acolher. Na outra jornada éramos os acolhidos".
Contudo, o cansaço é igual. E um dos motivos tem uma justificação simples: além do calor, os transportes. "Na outra estávamos bastante longe do centro, por isso os transportes eram um problema. Aqui também são, porque acabamos por ir para sítios onde há muita gente à espera. Mas já vimos que certos números de autocarros foram reforçados, o que foi útil para nós".
Só que nem sempre correu bem. "Também já estivemos noutras partes de Lisboa à espera de um autocarro que nunca veio e já era bastante tarde e tivemos de apanhar táxis. E estamos a dormir no Barreiro, vimos no ferry. Estávamos no Restelo e não havia autocarro para voltar para o Cais do Sodré".
Apesar de tudo, os dois concordam que está a ser "muito bom", mesmo que se tenha de "deixar a sombrinha para ir para o calor". E até quando mal se vê Francisco. "Vi o Papa a passar, só lhe vi a nuca, mas é uma serenidade... o senhor transmite uma serenidade mesmo muito grande", recorda Leonor a sorrir.
Quebram com o cansaço, mas não desistem
Se a uns o cansaço e o calor fazem parar para restabelecer forças, há mesmo quem seja obrigado a parar pelo corpo que cede ao corrupio dos últimos dias. Marta Rebelo é enfermeira e está numa das 16 tendas de primeiros socorros que existem nas imediações do Parque Eduardo VII desde o início da semana.
Em declarações ao SAPO24, refere a importância do trabalho dos voluntários da saúde. "Tem sido importante termos estes postos, porque assim conseguimos prestar cuidados de mais proximidade às pessoas e atuar nas situações necessárias, bem como articular com as outras entidades".
E não têm sido dias calmos. "Temos tido algum movimento nas tendas, principalmente nos eventos centrais, mas tem sido possível acudir as pessoas e fazer com que tudo seja mais seguro para todos", conta a enfermeira, que trabalha no Hospital dos Capuchos.
Como seria de esperar, as queixas são as habituais: "maioritariamente pessoas com insolações, devido ao calor, ou com entorses, por andarem muito". Mas também há "ataques de pânico, controlados e resolvidos no local". Feitas as contas rapidamente, Marta diz que tem tido "mais de uma dezena de ocorrências por dia" — mas tudo faz sentido.
"Já tinha participado em Cracóvia como peregrina e quando soube que a JMJ seria em Portugal estava no curso de enfermagem e já seria depois de terminar. Voluntariei-me porque senti necessidade de servir neste evento que também já me serviu a mim e que tive oportunidade de viver", remata a enfermeira.
Noélia foi uma das jovens que procurou auxílio. Quando chegou à tenda, lembra-se de ouvir falar de uma ambulância que foi buscar "um senhor que teve um ataque de pânico". No caso dela, não foi isso.
"Estava perto do Rossio e comecei a sentir-me mal, nem sabia bem o que me estava a acontecer. Parecia que estava a ouvir mal e chamei uma amiga que me tentou ajudar e lá veio mais malta do grupo, incluindo um futuro enfermeiro que me mediu a pulsação e tudo, logo ali", afirma ao SAPO24.
"Mesmo assim decidimos ir ao posto de socorro e fui atendida com muita dedicação. Senti-me muito bem, estavam ali a perguntar-me tudo. Fiquei um bocadinho deitada, até quase adormeci. Depois levantei-me e estava bem", recorda.
Apesar do susto, tudo passa. "Agora estou aqui e ainda bem que não fui para casa. Estou ótima. É assim que se vive a JMJ, com estas quedas e depois com esta recuperação toda, com a ajuda dos outros. Isto acusa o cansaço, o calor. É tudo. Tenho dormido, mas mesmo assim fui-me abaixo".
"Vínhamos ver o Papa"
Depois da tenda da saúde, a subida é longa e há que continuar. Junto a outro grupo português, ouvem-se perguntas atiradas para o ar. Numa das zonas de relva, um homem aparece com uma gaiola que parece ser de um hamster e com uma caixa de cartão com furos “Será que tem ali um rato?”, pergunta uma jovem. “Se tiver eu vou já embora!”, responde outra.
Minutos depois, o mistério foi desvendado. Da caixa saíram dois animais: um esquilo-da-Mongólia e um porquinho-da-Índia. O dono é o Zeca, e fala com uma pronúncia carregada que não engana. Os Açores estão em Lisboa — mas a história não é fácil: é sem-abrigo na capital há quatro anos e prefere não dar grandes identificações, embora depois mostre que tem livros publicados na Amazon.
Aos jovens, explica o que o leva a estar ali com os seus animais de estimação. "Eles estiveram muito doentes e eu sabia que eles não se safavam. Eu não sou católico, mas tenho fé. Mas pensei que se eles ficassem bons vínhamos ver o Papa, mas a gente sabe que o Papa não nos vê".
"Este planeta é deles [animais], antes de cá estarmos eles já existiam. Os animais foram criados por Deus, não é? Já pensaram o que seria se o planeta fosse todo deles? Ontem conheci um padre franciscano e chorei com ele. Maior do que o amor aos animais só o amor que temos a Cristo", evidencia. E lá continua a conversar animadamente.
Deixamos o episódio caricato, com desejos de que o Papa ali passe. Já quase a chegar ao Marquês de Pombal, um pequeno grupo de jovens passa a grande velocidade, contrastando com o descanso dos anteriores. Só se consegue apanhá-los com uma corrida. Nem para falar querem parar. Há que andar para ter um bom lugar e ver o Papa pela segunda vez.
À pergunta de onde são, respondem “Damaia”. E a seguir especificam, para não haver dúvidas, que o bairrismo entre portugueses é inevitável. “Da Damaia, não da Maia”, responde o responsável do grupo a sorrir. A pressa é tanta que nem diz como se chama.
"Estamos aqui alguns jovens, mas outros estão na paróquia como voluntários, que há muito a fazer. Pequenos-almoços a servir, limpezas. Agora somos 22, o resto ficou na base", explica.
A pressa é muita para que todos consigam viver a JMJ ao máximo. "Estive em Cracóvia em 2016 e foi muito enriquecedor, agora temos aqui uma grande alegria por receber os jovens de todo o mundo".
Conhecendo a cidade, acha que "o caos podia ser pior". Afinal, "nem está assim tão mau para a quantidade de pessoas que chegaram" e ver o Papa compensa tudo, mesmo com o sol. "Há protetor solar, água, comida, trazemos tudo o que é necessário para aguentar".
A tarde foi decorrendo e o Parque Eduardo VII ficou cada vez com mais gente. Ao contrário do dia anterior, em que a prioridade de muitos grupos era ficar num bom sítio para ver o Papa passar pela primeira vez, a espera pela Via Sacra fez-se com outra prioridade: encontrar lugares à sombra, mesmo que para isso fosse preciso abdicar da vista para o palco ou até para um ecrã. Por todo o lado, grupos deitados a descansar.
Jovens que choram, jovens que riem
Faltavam 20 minutos para as 17h00 quando, do palco, surgiu a pergunta: “estão entusiasmados para a chegada do Papa?”. Ouviram-se algumas vozes entusiasmadas, mas parecia que não eram assim tantas. Depois, não paravam de chegar peregrinos. Conta-se que eram cerca de 800 mil pessoas.
Por volta das 17h30, o Papa começou a subir a Colina do Encontro para participar na Via Sacra. As pessoas continuavam a entrar no recinto. Faziam filas nas laterais. Subiam às árvores. Depois do trajeto que levou novamente os peregrinos a levantarem braços e telemóveis para tentar registar o momento, o pontífice chegou ao altar. E, para alegria de todos os presentes, improvisou um discurso em espanhol.
“Jesus caminha por mim, para dar a sua vida por mim e ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida”, afirmou Francisco. “Por isso, quando olhamos para Jesus crucificado, algo tão doloroso, vemos a beleza do amor de quem dá a sua vida por nós”, prosseguiu.
Francisco disse depois uma frase que o tocou muito — “Senhor, por causa tua inefável agonia, acredito no amor” —, para lembrar que Jesus caminha, mas espera companhia e espera abrir as janelas da alma de cada jovem.
Depois, o Papa pediu aos jovens que se questionassem se choram de vez em quando. “Todos na vida chorámos e choramos toda a vida e aí está Jesus connosco. Ele chora connosco, porque nos acompanha na escuridão”, afirmou, pedindo aos presentes um momento de silêncio, para que dissessem a Deus porque choram.
Mais à frente, pediu ainda mais um momento de silêncio para os peregrinos “pensarem no próprio sofrimento, na própria ansiedade, nas próprias misérias, e pensarem na vontade de que a alma volte a sorrir”. “Jesus caminha para a cruz, para que a nossa alma possa sorrir”, acrescentou.
E estava dado o mote para o momento que se seguia, já que na Via Sacra se revive, em oração, os 14 momentos das últimas horas de vida de Jesus, desde a condenação à morte até à sepultura. Porém, esta teve um foco muito específico nas dificuldades dos jovens, acompanhada por músicas interpretadas por elementos do coro e da orquestra da JMJ, dirigidos pela maestrina portuguesa Joana Carneiro, e coreografias do elenco do Ensemble 23, um grupo composto por 50 jovens de 21 nacionalidades que atuam nos eventos centrais da JMJ.
Cada estação correspondeu a uma fragilidade da sociedade que afeta os jovens atualmente, identificadas por 20 jovens dos cinco continentes que integram um grupo de consultores do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida: pobreza, violência, solidão, falta de compromisso, intolerância, individualismo, saúde mental, destruição da Criação, dependências, incoerência, crises humanitárias, produtivismo, desinformação-infoxicação e medo do futuro.
Na terceira estação — “Jesus cai pela primeira vez —, numa mensagem transmitida nos ecrãs gigantes, Esther, uma espanhola de 34 anos, deu conta das dificuldades por que passou na sua vida e que a faziam sentir-se “perdida no mundo” — um acidente que a deixou numa cadeira de rodas, um aborto e relações amorosas problemáticas —, até que sentiu “a infinita misericórdia de Deus”.
Pela primeira vez na sua vida, confessou-se com “um arrependimento profundo” e regressou à Igreja, o que, disse, mudou a sua forma de viver.
Na sétima estação, em que “Jesus cai pela segunda vez”, João, um jovem português de 23 anos, relatou os efeitos que a pandemia de covid-19 teve na sua saúde mental e a dificuldade que sentiu em procurar ajuda.
“Ainda é desconfortável, para tantos, admitirem que precisam de um psicólogo, como eu precisei. É difícil reconhecer a nossa fragilidade, pedir ajuda e perceber que não somos autossuficientes; temos medo de ser um fardo e de encontrar rejeição”, comentou.
Recordou que durante o isolamento revisitou o período em que sofreu ‘bullying’ na escola e que o levou a uma “verdadeira cruzada interior” para “descobrir o que havia de errado” em si, afirmando viver em “isolamento emocional”.
“Normalmente quem mais sofre são aqueles que não se sentem bem-vindos. (…) A fé ajuda-me sempre quando caio. (…) Juntos, como humanos, é possível vencer todo o isolamento, todo o individualismo”.
Na nona estação - “Jesus cai pela terceira vez” - o norte-americano Caled, de 29 anos, descreveu-se como “uma das ovelhas perdidas por quem Jesus veio a correr”.
Após uma infância difícil num “lar destruído” e com o “divórcio horroroso” dos pais, caiu na toxicodependência e sentiu um “desejo de pôr fim” à vida, obstáculos que foram ultrapassados após perceber “quem Jesus realmente é”.
No palco, a cruz subiu de patamar em patamar, até terminar na coluna mais elevada. Os jovens dançaram, expressando corporalmente os textos que eram lidos, de forma a passar a emoção do momento. Caíram pétalas, foram estendidas faixas, houve gente pendurada apenas por um arnês. Subiram-se escadas, correu-se, caiu-se. Do lado de quem assistia, as imagens dos peregrinos nos ecrãs mostravam sorrisos quando eram apanhados pelas câmaras, mas também se viam lágrimas em alguns rostos.
O Papa tinha razão: às vezes é mesmo preciso chorar, mas o sorriso vem sempre depois. Mesmo quando parece tardar.
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