O Sínodo sobre a Sinodalidade, que arranca amanhã e culminará no Vaticano em outubro de 2024, quer saber como é que a Igreja está a fazer o "caminho em conjunto" no anúncio do Evangelho e chamou, numa primeira fase, "todos os batizados" a darem opinião.
Na prática, este vai ser "um grande espaço de reflexão da Igreja, sobre o seu modo de ser e de proceder", resume o secretário especial desta assembleia, o padre italiano Giacomo Costa, em conversa com a AFP.
Mas esta instituição consultiva, criada pelo Papa Paulo VI em 1965, traz agora novos desafios, numa altura em que muitos falam da possibilidade de um cisma, devido às diferentes opinião sobre temas polémicos que começam a surgir em várias alas, como é o caso da participação mais ativa das mulheres na Igreja, do acolhimento de pessoas LGBTQIA+ e de pessoas divorciadas ou até da possibilidade de os padres casarem.
Um processo de escuta que também passou por Portugal
Para que os temas sejam debatidos em profundidade, o Vaticano quis ouvir os católicos de todo o mundo. A delegação da Igreja Católica Portuguesa na Assembleia Continental do Sínodo dos Bispos apresentou, em fevereiro deste ano, a síntese da equipa sinodal da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que mostrou que a dificuldade em aceitar a diversidade afeta a Igreja Católica em Portugal.
"Há alguma dificuldade em acolher todos de igual forma e em aceitar a diversidade no seio da Igreja"
"Diante de modelos de pastoral gastos e distantes de um novo impulso evangelizador, o clericalismo obstaculiza a mudança, o legalismo arbitrário afasta os fiéis e o rosto burocrático de muitas comunidades são geradores de tensão e muitas vezes de abandono", foi referido.
Além disso, foi adiantado no documento entregue que "há alguma dificuldade em acolher todos de igual forma e em aceitar a diversidade no seio da Igreja (casais em segunda união, pessoas com atração pelo mesmo sexo ou em uniões homossexuais) em valorizar a fragilidade, nomeadamente das pessoas com deficiência, e em compreender o que se entende por ‘acolhimento’".
Segundo as conclusões plasmadas nesta síntese, "há, ainda, tensões diversas em temas ditos fraturantes, tais como: o acesso das mulheres ao sacramento da ordem; a ordenação de homens casados; a identidade sexual e de género; a educação para a afetividade e sexualidade; e o celibato dos padres".
A síntese da equipa sinodal portuguesa aponta ainda que "devem ser consideradas, igualmente, outras questões: a forma como são geridas as situações de abusos sexuais; a comunicação hermética que dificulta, não só o diálogo interno, mas o diálogo com a sociedade em geral e, especialmente, com outras confissões cristãs e religiosas".
Para os autores do documento "ressoa a necessidade de sermos uma Igreja com maior transparência nos processos de decisão e na sua comunicação, que dialoga com o mundo a partir da cultura numa perspetiva de ‘rasgar caminhos’, trazendo o Evangelho e a espiritualidade para o centro do debate público, numa Europa cada vez mais descristianizada, onde a dimensão institucional da Igreja tem uma relevância cada vez menor. Sublinha-se mesmo a necessidade de readquirir ‘relevância social’".
"Ressoa a necessidade de sermos uma Igreja com maior transparência nos processos de decisão e na sua comunicação"
Como prioridades para discussão na Assembleia sinodal que está a chegar, o documento síntese da CEP aponta para a prioridade a dar aos jovens e à participação da mulher na Igreja, à reflexão sobre "o ministério ordenado, considerando a possibilidade de ordenar presbíteros homens casados", assim como "ter uma atenção permanente aos pobres e dar centralidade às diferentes questões de cariz social, bem como às questões relacionadas com a ecologia face aos crescentes problemas ambientais".
"Dar resposta às novas realidades sociais e afetivas, fortalecendo os vínculos nas Igrejas domésticas com um acompanhamento personalizado das famílias, e acolhendo os novos modelos familiares (famílias monoparentais, famílias reconstruídas a partir de outras, divorciados recasados, famílias com pais/mães do mesmo sexo e com filhos biológicos ou adotados)" é outra das prioridades identificadas, a par do diálogo com "a cultura e com o pensamento contemporâneo, em temas como a inteligência artificial, a robótica ou as questões de identidade de género (LGBTQIA+)" ou a necessidade de revisão da "comunicação e linguagem da Igreja (para dentro e para fora) e a ocupação do espaço público como uma voz credível e de serviço".
Há risco de divergências na Igreja?
Devido a todos estes temas, há quem considere que a Igreja Católica está a caminhar para um cisma, ou seja, para um momento de divisão. Todavia, Francisco está atento a essa possibilidade e afirmou, no início de setembro, que "no Sínodo não há lugar para ideologia" e insistiu na importância do diálogo e de "caminhar juntos".
De qualquer modo, a assembleia que agora se junta no Vaticano permitirá calibrar o equilíbrio de forças dentro da Igreja em relação aos desafios da instituição. A posição do clero alemão, radicalmente diferente da opinião do Vaticano em vários temas, será acompanhada de perto. Por exemplo, no final do ano passado, o presidente da Conferência Episcopal Alemã afirmou que iria continuar a abençoar os casais homossexuais que o peçam, apesar de o Vaticano proibir.
"Não podemos seguir como antes, trata-se de transmitir a mensagem do Evangelho aqui e agora"
Nestes meses têm sido avançadas propostas como o fim do celibato obrigatório, o acesso das mulheres ao sacerdócio e levantadas questões sobre a homossexualidade, o que tem gerado mal-estar no Vaticano e o receio de um cisma da Igreja alemã, que recusa essa possibilidade.
Mas algo tem de mudar, defendem. "Não podemos seguir como antes, trata-se de transmitir a mensagem do Evangelho aqui e agora, e nem sempre olhando para o passado, mesmo correndo o risco de uma Igreja ferida", disse Georg Baetzing. "Não estamos a fazer um caminho particular e não estamos a tomar decisões que não queremos para toda a Igreja universal", garantiu na altura.
Já esta segunda-feira, a dias do início do Sínodo, o Vaticano publicou uma carta que Francisco escreveu a 11 de julho, em resposta a cinco perguntas de cardeais conservadores que o desafiaram a afirmar os ensinamentos da Igreja sobre a homossexualidade antes desta grande reunião em que os católicos LGBTQ+ estão na ordem do dia.
Na missiva, o Papa Francisco sugere que as bênçãos poderiam ser estudadas se não confundissem a bênção com o casamento sacramental.
"Deus não pode abençoar o pecado"
O New Ways Ministry, um ministério de defesa e justiça para católicos lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros, disse que a carta “avança significativamente” nos esforços para que os católicos LGBTQ+ sejam bem-vindos na Igreja e é "uma grande gota de água para quebrar a espinha" da sua marginalização.
De recordar que a Igreja defende que o matrimónio é uma união indissolúvel entre homem e mulher. Por conseguinte, há muito que se opõe ao casamento homossexual. Mas até o Papa Francisco manifestou apoio a leis civis que estendem benefícios legais a cônjuges do mesmo sexo, e os padres católicos em algumas partes da Europa têm abençoado uniões do mesmo sexo sem a censura do Vaticano.
A resposta de Francisco aos cardeais marca uma inversão da atual posição oficial do Vaticano. Numa nota explicativa de 2021, a Congregação para a Doutrina da Fé afirmou categoricamente que a Igreja não podia abençoar as uniões homossexuais porque "Deus não pode abençoar o pecado".
Na sua nova carta, Francisco reiterou que o matrimónio é uma união entre um homem e uma mulher. Mas respondendo à pergunta dos cardeais sobre uniões homossexuais e bênçãos, ele disse que a "caridade pastoral" requer paciência e compreensão e que, independentemente disso, os padres não podem se tornar juízes "que apenas negam, rejeitam e excluem".
"A vida da Igreja funciona em canais para além das normas"
"Por esta razão, a prudência pastoral deve discernir adequadamente se existem formas de bênção, pedidas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma conceção errada do casamento", escreveu.
"Porque quando se pede uma bênção, está-se a exprimir um pedido de ajuda a Deus, uma súplica para poder viver melhor, uma confiança num pai que nos pode ajudar a viver melhor", frisou.
Fazendo notar que há situações que "moralmente inaceitáveis", o Papa considera que a mesma "caridade pastoral" exige que as pessoas sejam tratadas como pecadoras que podem não ser totalmente culpadas pela sua situação.
Francisco acrescentou que não é necessário que as dioceses ou as conferências episcopais transformem essa caridade pastoral em normas ou protocolos fixos, dizendo que a questão pode ser tratada caso a caso "porque a vida da Igreja funciona em canais para além das normas".
Temas difíceis, momentos difíceis
D. Américo Aguiar, recentemente criado cardeal pelo Papa Francisco, reconheceu numa entrevista à Lusa e agência Ecclesia que a Igreja Católica atravessa atualmente momentos difíceis, com as divisões entre as chamadas alas progressista e conservadora.
Contudo, diz, "o Sínodo não é um parlamento, em que chegam lá as várias fações, cada uma conta as espingardas (…) e ganha a maioria".
"O Papa tem-nos provocado a todos para que possamos refletir"
"Não. O Sínodo é um local onde cada um se deve sentir livre para falar, deve ter o gosto de ouvir e depois o Espírito Santo decidir. Porque, às vezes, o Espírito Santo toma a decisão que não é propriamente a da maioria", afirmou.
"É óbvio que nós estamos a falar de irmãos e irmãs que têm manifestado uma sensibilidade diferente em relação a alguns temas. E o Papa tem-nos provocado a todos para que possamos refletir sobre eles", adiantou também o nomeado bispo de Setúbal, reconhecendo que quando se consultam os documentos preparatórios do Sínodo se verifica "alguma conexão" entre as diferentes sensibilidades.
Assim, é possível ver que "há preocupações europeias que casam com preocupações americanas, africanas e asiáticas. Ou seja, não é assim tão díspar". No entanto, "depois, quando começamos a pôr o microscópio a aproximar, depois vem muito mais a identidade nacional e realidades muito específicas".
"Ora, é muito importante não desvalorizar aquilo que é a opinião do meu irmão, aquilo que a opinião de um país, aquilo que a opinião de uma conferência episcopal. Não quer dizer que estejam errados, nem quer dizer que estejam certos, mas é importante que eles se sintam respeitados ao pronunciarem-se e também estejam disponíveis para acolher aquilo que é o sentir da Igreja em processo sinodal", defendeu D. Américo Aguiar, convicto de que o período da Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos será um tempo "de muita oração, de muito trabalho", confessando estar "expectante" em relação às conclusões.
As inovações no Sínodo
Temas polémicos pedem também uma adaptação à realidade — e o Papa Francisco soube fazê-la, quando anunciou em abril que as mulheres teriam direito de voto no Sínodo dos Bispos, uma decisão inédita sobre o envolvimento de mulheres e leigos no processo de tomada de decisões sobre a Igreja Católica.
Por isso, as alterações anunciadas deram destaque à visão atual do Vaticano de que os fiéis leigos passem a assumir um papel maior nos assuntos da Igreja que há muito foram deixados para clérigos, bispos e cardeais.
Grupos de mulheres católicas, que têm vindo a criticar o Vaticano por tratar as mulheres como cidadãs de segunda classe, elogiaram mesmo a medida, considerando-a histórica. Antes desta decisão de Francisco, apenas uma mulher, a subsecretária do Sínodo, a freira francesa Nathalie Becquart, poderia votar.
"Continuará a ser um Sínodo dos Bispos, mas haverá essa participação com membros leigos"
No fundo, a principal novidade é a atribuição do direito ao voto a cinco irmãs religiosas, que vão juntar-se a cinco padres como representantes das ordens religiosas no encontro. Além disso, o Papa Francisco decidiu nomear 70 não-bispos para o Sínodo e pediu que metade sejam mulheres, tendo todos direito de voto.
Durante a apresentação destas mudanças, o arcebispo do Luxemburgo e relator-geral do Sínodo de outubro, Jean-Claude Hollerich, considerou que não se trata de uma revolução, "uma vez que a assembleia continua a ser uma reunião de bispos", já que 75% dos participantes continuam a ser bispos.
Também o secretário-geral do Sínodo, o cardeal Mario Grech, minimizou as mudanças, sustentando que "continuará a ser um Sínodo dos Bispos, mas haverá essa participação com membros leigos".
O início do Sínodo — e o que está para vir
Esta quarta-feira, dia 4 de outubro, às 09:00, festa litúrgica de São Francisco de Assis — o Papa escolheu o nome de Francisco para o pontificado inspirado neste santo —, o líder da Igreja Católica preside, na Praça São Pedro, à missa com o Colégio Cardinalício, na abertura da Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, a reunião da hierarquia eclesiástica que discute os temas de interesse da Igreja Católica.
Mas houve já um momento de arranque para o que aí vem, através de uma vigília ecuménica no passado sábado. "Estamos aqui, como irmãos e irmãs, vindos de todas as nações, tribos, povos e línguas, de diferentes comunidades e países, filhas e filhos do mesmo Pai, animados pelo Espírito recebido no Batismo, chamados à mesma esperança", lembrou o Papa.
"Um momento de discernimento mais importante"
Francisco encorajou ainda os fiéis reunidos na Praça de São Pedro a pedir ao Espírito Santo que "conceda o dom da escuta" aos participantes do Sínodo. "Escutar Deus, até ouvir com Ele o clamor do povo; escutar as pessoas, até despertar nelas a vontade à qual Deus nos chama".
Durante quatro semanas, os 464 participantes, 365 deles com direito a voto no momento final, vão reunir-se diariamente no Vaticano, divididos em grupos de reflexão em cinco idiomas. Entre eles, há 54 mulheres.
O resultado destes trabalhos, que terão em conta as consultas que já foram feitas em todo o mundo, será entregue ao Papa, que poderá levá-lo em consideração para introduzir medidas no governo da Igreja mundial.
Neste caso, para "ter um momento de discernimento mais importante", o Papa decidiu dividir a assembleia do Sínodo em dois momentos, com uma segunda sessão plenária em outubro de 2024.
Sabe-se que este Sínodo começará e terminará com uma missa presidida pelo pontífice na Basílica de São Pedro e será marcado por outros momentos de oração. Foi ainda adiantado que o Vaticano decidiu limitar as comunicações sobre o conteúdo das discussões neste período, pelo que não se saberá exatamente que rumo estarão a tomar as discussões.
*Com Agências
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