O tema não é novo, mas a violência emocional continua a estar presente em muitas relações, tantas vezes sem que abusador ou vítima disso se apercebam. Para a terapeuta e autora de livros sobre a vida em casal, “informação é poder” e sabermos reconhecer os sinais em nós e nos outros é essencial para o bem-estar individual e do casal. Numa entrevista ao SAPO24, a terapeuta falou de chantagem emocional, “pulgas atrás da orelha” e bússolas como metáfora. Tudo isto para partilhar quais os comportamentos habitualmente presentes numa situação de violência emocional, como podemos perceber a fronteira entre as situações pontuais de violência e as relações abusivas, e que estratégias podemos usar para mantermos o equilíbrio nas nossas relações.
Quando falamos em violência numa relação conjugal falamos muitas vezes da vítima. Porque é que é tão importante falar do abusador também?
Falar sobre estes assuntos é sobretudo dar poder às pessoas, no sentido de lhes darmos informação. Quando falamos das características dos abusadores, por exemplo, estamos a dar poder às potenciais vítimas. De uma maneira geral, temos uma ideia um pouco estereotipada de que os abusadores são pessoas muito explosivas, tendencialmente agressivas. Até porque a violência emocional anda infelizmente muitas vezes de mãos dadas com a violência física. Mas muitas vezes passa-se exatamente o oposto: os abusadores podem ser pessoas socialmente adoráveis, muito atenciosas, carismáticas. Isso acaba por retirar poder à vítima, até no que diz respeito à denúncia dos abusos, porque os abusadores podem ser de facto muito estimados por aqueles que estão à sua volta. Na prática, um abusador pode ser qualquer pessoa.
Como assim?
Se pensarmos que, quando falamos de comportamentos abusivos, falamos basicamente de desrespeito, qualquer um de nós pode já ter cometido abusos emocionais na relação de casal ou noutra relação, sem que se tenha dado conta disso - não estou a dizer ser violento de forma continuada. Por isso, reconhecermos as formas que a violência emocional pode tomar é também uma forma de poder sobre nós mesmos, não apenas enquanto potenciais vítimas, mas também enquanto "potenciais abusadores”.
Há características sociodemográficas tendencialmente definidoras do perfil do abusador?
Não, estes abusos atravessam todas as classes sociais, formações académicas e idades. Não conheço estudos que consigam fazer uma caracterização sociodemográfica dos abusadores. Pelo contrário, os dados apontam no sentido inverso, de abranger uma população tão diferenciada quanto possível.
Mas falamos normalmente no masculino. Os abusadores são maioritariamente homens?
Sim, aquilo com que me deparo no consultório e que as nossas investigações mostram é que os abusos decorrem maioritariamente do homem para a mulher. Embora também existam, naturalmente, da mulher para o homem. O perfil quer dos abusadores quer das vítimas tem mais a ver com características de personalidade e, sobretudo, com as relações familiares. Quando há uma relação violenta num casal, estamos a transmitir aos filhos que determinadas situações são permitidas. Existe um padrão que tende a passar de pais para filhos.
De que forma é que se constrói a dinâmica de violência num casal?
Tem a ver com o exercício de poder de um sobre o outro. Normalmente, cada um de nós tem a sensação de ter algum poder sobre a própria vida, sobre as próprias escolhas. Nestas relações, aquilo que existe é uma gratificação que resulta do exercício de poder sobre o outro. Visto de fora, pode não haver nada de gratificante nas situações de violência. Mas, para o abusador, a gratificação está associada ao facto de haver alguém que está continuadamente a ser subjugado, humilhado, desprezado.
E como se desenvolve a violência?
Normalmente, começa de modo gradual. O abusador vai tendo a sensação de que pode fazer e dizer determinadas coisas e de que não há consequências. Noutros casos, há uma mudança significativa a partir de determinada altura e as pessoas conseguem precisar exatamente o momento da mudança. Muitas vezes tem a ver com um acontecimento que, de alguma maneira, transmite ao abusador a mensagem de que a relação está garantida e de que a outra pessoa já não consegue viver sem a relação ou sem o abusador. Para algumas pessoas, esse momento-chave é o casamento, o nascimento do primeiro filho ou o momento em que ficam desempregadas. É como se aos olhos do abusador houvesse uma relação de dependência (que pode ser só emocional) de tal ordem que ele já pode “ser quem é”, sem precisar de usar qualquer máscara.
Que sinais concretos nos indicam que estamos numa relação abusiva?
Os primeiros sinais estão na vítima. Têm a ver com o mal-estar, com a sensação de cansaço, desânimo, nervosismo, apatia, isolamento, medo. Surgem pensamentos recorrentes à volta daquilo que deve ou não deve ser feito para agradar a outra pessoa. Claro que qualquer um de nós se esforça para agradar a pessoa com quem tem uma relação, mas não vive em função disso. Muito menos anda angustiado por isso. Nos casos das relações abusivas, o foco da vítima está em questões como: "O que é que eu posso fazer?”, “onde é que eu errei?”, “qual é a minha culpa?".
Aquilo que eu sugiro é que as pessoas olhem para as relações a partir da metáfora de uma bússola. Tal como numa bússola temos o ponteiro sempre em sintonia com o magnetismo da Terra, nas relações abusivas há um elemento que está sistematicamente focado no outro. E não existe reciprocidade.
Que comportamentos surgem do lado do abusador?
A chantagem emocional e a manipulação são duas das formas que a violência emocional pode tomar. Quando a vítima se queixa, é muito comum que o abusador diga: "És demasiado sensível", "Não se te pode dizer nada”.
É razoável que haja circunstâncias em que a expressão “És demasiado sensível” não seja significado de abuso?
Sem dúvida. Mas, numa relação de confiança, se o meu interlocutor se queixar, é desejável que eu pelo menos queira saber o que é que o incomodou. Uma coisa é quando alguém claramente alinha na brincadeira, outra é utilizarmos o pseudo-humor para humilharmos a outra pessoa. A ironia é mais uma das formas que a violência emocional pode tomar.
Que outras manifestações deste tipo de violência existem?
Há uma outra questão a que dou o nome de “definição”. Acontece quando o abusador sente que tem uma espécie de autoridade moral para definir a personalidade, os sentimentos e as opiniões da vítima. Acontece quando o abusador usa frases como "Se tu gostasses mesmo de mim, farias isto ou aquilo”.
A violência emocional passa também pelo isolamento social da vítima. O abusador, que é normalmente uma pessoa insegura - muito mais insegura do que parece -, vai sentindo que as pessoas que estão à volta da vítima são ameaças para si e sente-se mais confortável numa relação a sós com a vítima, sem a rede de suporte que as outras pessoas possam ser para ela.
Ainda dentro da violência emocional também falamos da violência sexual. A sexualidade pode ser utilizada para subjugar, para humilhar, seja no sentido de obrigar a vítima a ter relações sexuais contra a sua vontade - de novo, com exercícios de manipulação e de definição: “É isto que uma esposa faz numa relação saudável” -, seja no sentido oposto, retirando essa componente da vida de casal, para diminuir a autoestima da vítima.
É ainda muito importante falar-se dos silêncios ou amuos. Muitas vezes, para castigar a vítima, surge a retirada da afetividade na comunicação.
No fundo, estamos sempre a falar do mesmo: uma pessoa a exercer poder sobre a outra.
Há pouco dizia que todos nós já podemos ter tido algum comportamento que se possa classificar de abusivo. Onde é que está a fronteira? Como é que percebemos se estamos perante uma situação pontual ou se se trata de uma relação abusiva?
Em primeiro lugar, quando vivemos com a sensação de “pulga atrás da orelha”, normalmente está lá “uma pulga". Ou seja, é importante que olhemos para aquilo que vamos sentindo. No fundo, há sistematicamente um profundo mal-estar, uma sensação constante de que não estamos a fazer as coisas bem, de que algo está a falhar em nós, de que somos culpados de alguma coisa.
Quando nos sentimos desrespeitados de alguma maneira, mas a outra pessoa mostra interesse em relação àquilo que sentimos e há um compromisso com um comportamento diferente, cujo cumprimento nós verificamos, dificilmente estaremos numa relação abusiva.
Aquilo que nós verificamos nas relações abusivas é que há o compromisso com a mudança, mas depois é só uma questão de tempo até voltar tudo ao mesmo.
É possível recuperar uma relação em que exista violência emocional?
É possível, mas dá muito trabalho. Envolve um grande esforço e um grande compromisso por parte do abusador, e tem de começar com o total reconhecimento dos comportamentos abusivos. Se a pessoa disser frases como "Agora, bola para a frente. É tempo de olhar para o futuro. Vamos esquecer o passado". Isso é um mau sinal. Se houve abuso, é evidente que houve muito sofrimento, e é preciso ter a capacidade de enfrentar isso, de prestar atenção para empatizar. Se não houver essa vontade de olhar em detalhe para os comportamentos que levaram a esse sofrimento, diria que é praticamente impossível que haja um genuíno compromisso com a mudança.
Tem casos de sucesso na sua experiência?
Muito poucos. E os casos de sucesso têm mais a ver com pedidos de ajuda que são feitos pelo abusador, não pelas vítimas. Muitas vezes são as vítimas que pedem ajuda, mesmo em terapia de casal, na esperança de perceber o que é que elas estão a fazer de errado. Sem a noção ainda de que estão a ser vítimas de violência emocional. Aquilo que acontece algumas vezes é que o abusador dá-se conta aqui pela primeira vez de que aqueles comportamentos são abusivos e sente genuinamente vergonha e vontade de mudar.
Por que fases passa o casal que está a reparar a sua relação?
A primeira fase é a da ameaça. É muito mais provável que a mudança comece quando há um sinal claro de que a família se pode desfazer. Esse é o primeiro passo.
Depois tem de haver o reconhecimento dos abusos. E isso implica a identificação em detalhe dos comportamentos abusivos.
A seguir há uma fase de muitas leituras sobre o assunto, no sentido de a pessoa tentar efetivamente compreender aquilo que está a acontecer, para também poder fazer uma escolha consciente da mudança.
Depois, em termos de compromisso, muitas vezes é importante que, a par da terapia de casal, haja uma intervenção individual, claramente com o propósito de existir uma mudança de comportamento na relação. Aquilo que acontece algumas vezes é que a terapia individual é feita com o propósito da manipulação: a pessoa vai ao psicólogo ou ao psiquiatra sozinho e conta a sua versão dos acontecimentos, para depois chegar a casa e dizer: "O psiquiatra deu-me alta, disse que eu não tenho nenhum problema e que tu é que precisas de ser tratada”.
Quando essas fases são cumpridas, dá-se uma mudança efetiva?
Mesmo quando começa a haver alguma mudança, há uma fase em que invariavelmente o abusador vai sendo exposto a situações que lhe desagradam, que se desviam do “guião" que continuamente foi fazendo na sua cabeça. Qualquer um de nós faz "filmes" sobre aquilo que deseja para a sua vida, mas a maior parte de nós tem a consciência de que a pessoa que está ao seu lado tem a sua própria vontade. Nas relações abusivas, o abusador define as escolhas que são feitas. Nesta fase da recuperação, a pessoa tem de mostrar respeito pelas escolhas e pelos interesses do outro, tem de reconhecer que a pessoa que está ao seu lado não é uma personagem do tal guião e é alguém com vontade própria.
As dinâmicas de violência emocional acontecem também nas relações homossexuais?
Sim, e da mesma maneira. Tenho tido casos tanto em relações homossexuais masculinas como femininas.
Em novembro, vai participar no encontro “O homem promotor da igualdade”, uma conferência que tem a igualdade de género como pano de fundo. Como é que as duas questões se relacionam?
Os abusos emocionais são transgeracionais e têm a ver com as desigualdades de género. São relações que têm muitas vezes o apoio involuntário de quem está à volta do casal, muito por culpa de ideias que vamos interiorizando na sociedade sobre o papel do homem e da mulher numa relação. Quando ouvimos comentários como "Os homens são todos assim” e "É preciso que a mulher dê algum desconto", estamos a falar de ideias estereotipadas que acabam por alimentar as relações abusivas e por retirar poder às vítimas. Se uma mulher tiver a coragem de expor um fragmento da sua relação e depois ouvir este tipo de mensagens, o mais provável é que se retraia e volte para a sua "bolha". Ou seja, interiorize a mensagem de que aquilo que vive em casa é efetivamente o normal e de que o melhor é nem sequer falar sobre o assunto. Até porque se arrisca a ficar mal vista, uma vez que o abusador tem uma imagem tão positiva em termos públicos.
No encontro, a comunicação que vai fazer tem o tema “Amar sem magoar: Reconhecer e eliminar a violência emocional na relação de casal”. O que é que se pode esperar desta sessão?
Quero sobretudo partilhar informação a respeito do que são relações abusivas e relações não abusivas, para sabermos reconhecer o que são abusos emocionais. No fundo, desconstruir o perfil dos abusadores e o perfil das vítimas, e falar um pouco sobre o compromisso real e genuíno com a mudança. Como tinha dito, para mim, informação é poder.
Entrevista conduzida por Margarida Alpuim e editada por Inês F. Alves
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