De um lado, a vice-presidente norte-americana e candidata democrata, Kamala Harris; do outro, o ex-presidente e adversário republicano, Donald Trump. Em questões controversas como aborto, raça e o destino da democracia americana, os dois realizaram o seu primeiro — e possivelmente único — debate antes da eleição de 5 de novembro, ambos esperando um avanço numa disputa acirrada.

O debate da emissora ABC News começou quando a vice-presidente democrata aproximou-se inesperadamente do ex-presidente republicano para apertar a sua mão, antes de assumirem os seus respectivos púlpitos no Centro Nacional da Constituição, na Filadélfia. Foi o primeiro aperto de mãos num debate presidencial desde 2016 — e o único momento de gentileza da noite.

Trump, de 78 anos, que até algumas semanas atrás acreditava estar a caminhar para a vitória, reagiu aos ataques de Kamala levantando a voz e recorrendo a insultos coloridos e muitas vezes divagantes, como faz nos seus comícios. O candidato chamou  "marxista" à sua adversária falsamente afirmou que ela e o presidente Joe Biden permitiram a entrada de "milhões de pessoas de prisões e manicómios" no país.

Depois de ter alcançado, no anterior debate presidencial com o Presidente dos Estados Unidos, uma vitória clara que acabou por levar os democratas a substituir Joe Biden por Harris, Trump esforçou-se, na terça-feira e quase desde início do frente-a-frente em Filadélfia, por não só colar a rival às “políticas falhadas” da atual administração, mas por subalternizá-la dentro desta.

“O patrão dela”, foi como Trump se referiu por diversas vezes a Joe Biden, “o pior Presidente da história” dos Estados Unidos, obrigando Harris a interpelá-lo: “É importante recordar o ex-presidente de que nao está a concorrer contra Joe Biden, está a concorrer contra mim”.

Harris, de 59 anos, foi respondendo com um sorriso irónico estampado no rosto, e desde logo irritou o adversário ao afirmar que representa um novo começo após a "confusão" da presidência de Trump, dizendo: "Não vamos voltar atrás." Kamala lembrou que Trump é um criminoso condenado, classificou-o como "extremista" e disse que é "uma tragédia" que ele tenha usado "a questão racial para dividir o povo americano" ao longo da sua carreira.

Embora tenha defendido muitas das políticas da atual administração, Harris procurou falar sobretudo dos planos para o futuro – cortes fiscais para apoiar famílias e pequenas empresas, apoio à construção de habitação para baixar os custos do imobiliário, entre outros - e assim oferecer um contraste em relação ao que seria “voltar ao passado” de Trump.

Um dos momentos mais marcantes foi sobre a recusa inédita de Trump em aceitar a derrota para Biden na eleição de 2020, antes de tentar reverter o resultado. Perante de uma audiência em direto do que se calcula tratarem milhões de eleitores, Trump reforçou as alegações, insistindo que há "muitas provas" de que ele realmente venceu.

Já Kamala voltou-se para Trump e disse que os próprios ex-funcionários de segurança da Casa Branca consideram-no "uma desgraça". Além disso, afirmou que o republicano "entregaria" a Ucrânia ao presidente russo, Vladimir Putin, "um ditador que o devoraria no almoço", acusou. Ao passo que "ditadores e autocratas estão a torcer para que seja presidente novamente", o outros líderes mundiais "estão a rir-se de Donald Trump", acrescentou.

Outra troca intensa foi sobre o aborto. Trump insistiu que, embora tenha pressionado pelo fim do direito federal ao aborto, ele queria que os estados fizessem suas próprias escolhas e políticas.

A vice-presidente disse que ele estava contar "um monte de mentiras" e considerou as políticas do republicano como "insultuosas para as mulheres dos Estados Unidos."

Tendo também como desafio contrastar o seu desempenho com o de Biden no anterior debate, Harris mostrou-se agressiva nas intervenções e atenta e reativa durante as de Trump.

Ciente de que a televisão muitas vezes mostra os candidatos em ecrã dividido, a democrata aproveitou a oportunidade para abanar a cabeça em desacordo quando Trump falava, para levantar as sobrancelhas em surpresa ou para semicerrar os olhos, simulando tentar acompanhar a argumentação, por vezes confusa, do magnata.

Já Trump manteve-se sobretudo impassível e, em algumas ocasiões, sorriu sarcasticamente e continuou os ataques mesmo quando os microfones foram silenciados, conforme testemunhou um pequeno grupo de repórteres, autorizado a permanecer no local.

À medida que o debate foi avançando, Trump mostrou-se mais agitado na resposta às provocações da vice-Presidente e na repetição de uma série de falsas afirmações: 33 contra uma de Harris, numa contagem do canal de televisão CNN.

Os comícios de Trump e a conspiração dos animais de estimação

O último debate presidencial, em junho, foi o tiro de misericórdia na campanha de reeleição de Biden, após uma performance catastrófica contra Trump. Kamala assumiu a candidatura apesar dos temores democratas de que Biden era muito velho e frágil para derrotar o republicano, cercado de escândalos.

Kamala ganhou notoriedade em debates anteriores, e enquanto servia como senadora dos EUA, pelas suas respostas afiadas e perguntas difíceis. Os cinco dias de preparação intensiva aos quais se submeteu pareceram dar resultado contra Trump, que, à sua maneira, é um dos oradores públicos mais bem-sucedidos da política americana.

Trump há anos desafia as leis da política, parecendo invulnerável a ataques habituais: foi condenado por falsificar registos comerciais para encobrir um caso com uma estrela de filmes pornográficos, considerado responsável por abuso sexual, e enfrenta julgamento por tentar reverter a eleição de 2020.

Mas Kamala conseguiu afetar Trump e provocá-lo claramente num dos seus temas favoritos, embora menos sérios — os seus famosos comícios. Os participantes, disse ela, têm vindo a sair mais cedo dos atos públicos do republicano devido ao "cansaço e tédio."

Noutro momento em que Trump pareceu estar a perder a calma foi quando falou longamente sobre uma teoria da conspiração desmentida de que imigrantes haitianos estarão a comer os animais de estimação das pessoas no estado do Ohio.

"Eles estão a comer os cães, as pessoas que chegaram, estão a comer os gatos", disse o ex-presidente antes de ser desmentido pelo moderador da ABC News, David Muir, que informou que as autoridades da cidade de Springfield disseram que não há registos de que isso tenha acontecido.

Muir protagonizou também um dos momentos de maior fragilidade de Trump durante o debate, quando o confrontou com afirmações recentes de que perdeu as eleições “por um triz”, quando no passado o ex-presidente sempre rejeitou a derrota em 2020.

Donald Trump alegou que aquela referência “foi sarcástica” e reiterou não ter perdido as eleições, mesmo depois de todos os processos por fraude eleitoral que os republicanos apresentaram em vários estados terem sido rejeitados por falta de provas.

As atribulações do passado recente norte-americano emergiram em relação às eleições e ao assalto ao Capitólio, por apoiantes de Trump, com a candidata democrata a alternar a responsabilização do ex-presidente com uma mensagem de "virar a página" e de confiança no futuro.

Subindo o tom, Trump aproveitou para responsabilizar os democratas pela tentativa de homicídio de que foi alvo em julho, ao defender ter sido a retórica de Harris e de outros democratas a alimentar o ataque.

"Provavelmente levei um tiro na cabeça por causa das coisas que dizem sobre mim", disse Trump, em resposta à alegação de Harris de que o republicano usaria o Departamento de Justiça como arma contra os inimigos políticos se fosse eleito.

Com apenas 56 dias restantes antes desta eleição, o intenso holofote foi uma oportunidade rara para ambos os candidatos ganharem força numa disputa que as sondagens mostram estar quase empatada. E o debate foi uma oportunidade crucial para Kamala se apresentar a mais eleitores, após entrar na disputa presidencial há menos de oito semanas, quando Biden, de 81 anos, desistiu abruptamente.

Sendo quase unânime de que Kamala Harris levou a melhor sobre Trump neste debate, o facto da sua campanha ter pedido uma segunda ronda logo após o final demonstra essa mesma perceção.

“Sob luzes brilhantes, o povo americano pôde ver a escolha que enfrentará neste outono nas urnas: entre seguir em frente com Kamala Harris ou voltar atrás com Trump. Foi isso que eles viram esta noite e o que devem ver num segundo debate em outubro”, disse a presidente da campanha democrata, Jen O'Malley Dillon, em comunicado. "A vice-presidente Harris está pronta para um segundo debate. Donald Trump está?”, questionou.

Na sala de imprensa logo após o debate de terça-feira, Trump não se comprometeu com mais debates, advogando que a vice-presidente só esta a pedir outro frente-a-frente porque "perdeu".

"A razão pela qual você faz um segundo debate é se você perder, e eles perderam”, disse Trump ao apresentador da Fox News Sean Hannity. “Mas eu vou pensar sobre isso", acrescentou, sobre a possibilidade de um segundo confronto com a candidata democrata.

O candidato republicano admitiu ainda estar "muito feliz com o resultado” da sua prestação. “Simplesmente senti que tivemos uma ótima noite", indicou o ex-presidente, considerando que este foi o seu "melhor debate".

*com agências