Se o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, garante que estamos "longe de um colapso" nas urgências, os sindicatos falam ao SAPO24 de um "efeito dominó" que nos aproxima perigosamente de uma rutura. Em causa está a recusa dos médicos de fazerem mais horas extraordinárias do que as 150 anuais obrigatórias, o que já causou constrangimentos em pelo menos 27 hospitais do país e levou a Direção Executiva do SNS a reunir com as instituições hospitalares mais afetadas pela atual crise.
O "murro na mesa", como diz a presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, acontece depois de 16 meses de negociações que não resultaram em acordo e da ameaça, a 14 de setembro, de o governo avançar unilateralmente com uma nova organização para as unidades de saúde familiar, com regras para um regime de dedicação plena e com a revisão das tabelas remuneratórias.
"Os médicos não se recusam a fazer horas extraordinárias"
A recusa dos médicos em fazer mais horas extraordinárias do que as estritamente previstas na lei tem especial impacto nos hospitais, nomeadamente nos serviços de urgência externa, em alguns serviços de urgência interna, serviços de cuidados intermédios e serviços de cuidados intensivos, que "são os mais dependentes" do trabalho suplementar, explica Joana Bordalo e Sá.
Mas "os médicos não se recusam a fazer horas extraordinárias", salienta a presente da FNAM, "recusam-se a fazer horas extra para além das 150" obrigatórias. O que significa que "estão a cumprir com o dever de cumprir a lei", resume.
Mas quantas horas extraordinárias faz em média um médico? "Cerca de 300, mas é uma média, o que significa que há médicos a fazer 600, 900 e há seguramente quem chegue às 1000 em serviços pequenos e com falta de gente, ainda não seja o mais frequente", assume a presidente da FNAM.
"Muitos médicos acham que é uma forma de tentar colmatar as insuficiências de alguns serviços, mas do nosso ponto de vista é errado, porque diminui a necessidade de contratação de médicos e, mais cedo ou mais tarde, o que devia ser pontual passa a ser regular", defende Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). Mas outro dos motivos que leva muitos médicos a acumular horas extra é a necessidade de compor o salário, assume.
"Não temos falta de médicos. Temos falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde, isso garanto-lhe"
É aliás o próprio ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a admitir que nos 44 anos do SNS “as urgências sempre estiveram baseadas em larga medida no trabalho extraordinário dos médicos”, mas que tal "não faz sentido do ponto de vista estrutural".
O que "não é seguro" nem para médicos nem para utentes, nota Joana Bordalo e Sá. Na mesma linha, "desde há muitos anos que o SIM vem a alertar os médicos para a irracionalidade de fazerem mais do que as 150 previstas no seu contrato de trabalho, que não existem para defesa dos médicos, mas para defesa dos doentes", reitera Jorge Roque da Cunha, porque "não só pode propiciar o aumento da probabilidade de erro médico", como também impacta o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, o que é uma das reivindicações atuais destes profissionais.
Isto num país em que "não temos falta de médicos. Temos falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde, isso garanto-lhe", diz a presidente da FNAM, dando conta de que dos 60 mil médicos portugueses apenas 31 mil prestam serviço no SNS.
"Com melhores condições de trabalho certamente teríamos mais médicos [no SNS] e não estaríamos a gastar este dinheirão todo em horas extraordinárias ou tarefeiros [em 2022 o Estado gastou 170 milhões de euros em horas contratadas para colmatar a falta de médicos no SNS]", defende.
Tempo completo, dedicação plena e dedicação exclusiva. Afinal, quanto e como trabalham os médicos?
Para entender a discussão que terá lugar esta quinta-feira — as reivindicações e propostas de parte a parte — é importante perceber como se organiza o trabalho dos médicos.
Até 2009 "existiam horários de 35 horas e existia a figura da dedicação exclusiva. Neste caso da dedicação exclusiva, o horário base era de 35 horas, mas os médicos podiam trabalhar mais 7, até às 42. Aí não só recebiam uma majoração por só estarem a trabalhar no SNS, como recebiam uma majoração pelo alargamento do horário. Era um regime opcional e devidamente majorado. Estas pessoas não podiam trabalhar no setor privado de forma alguma e estes são vencimentos que ainda hoje consideramos dignos", explica a presidente da FNAM.
Os que estavam nestes regime até essa data assim continuaram, "mas a partir de 2009 isso acabou e os contratos assinados passaram a ser de 40 horas. Como na altura os salários eram baixos e houve muita contestação, negociou-se depois, no final de 2011, uma melhoria de salário tendo como contrapartida um aumento das listas de utentes para os médicos de família e uma passagem de 12 para 18 no número de horas dedicadas a urgências para médicos hospitalares dentro do seu horário normal. Era suposto ser um regime transitório, apenas durante dois anos, mas que nunca foi revertido", explica Joana Bordalo e Sá.
"Para os médicos que fazem 35 horas o máximo de jornada diária é de 7 horas por dia. Os médicos que fazem 40 horas têm uma jornada máxima de 8 horas por dia. A excepção é em dias de serviço de urgência, com 12 horas", podendo ser acrescidas de 6 horas adicionais, continua.
O novo regime proposto pelo Executivo, batizado de "dedicação plena" e sobre o qual ainda não se legislou, tinha como premissa ser obrigatório para médicos que trabalhem em unidades de saúde familiar, para médicos em cargos de chefia e para médicos nos Centros de Responsabilidade Integrada nos hospitais (CRI). Os médicos em unidade de saúde familiar receberiam um suplemento se estivessem disponíveis para aumentar a sua lista de utentes e os médicos dos hospitais teriam um suplemento de 25% se aceitassem um aumento das horas extraordinárias obrigatórias de 150 para 250 e o fim do prejuízo de horário e do descanso compensatório, explica a presidente da FNAM.
"Esta dedicação plena não obriga a que um médico esteja em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde"
E traduz: imaginemos que um médico faz uma jornada de 8 horas na segunda-feira, mais 8 horas na terça, 12 horas na quinta-feira (trabalho noturno) e outras 8 horas na sexta. São 36 horas no total e não 40. No regime atual não têm de ser compensadas; no regime de dedicação plena proposto pelo governo teriam de o ser noutros dias. Como os médicos têm uma jornada semanal de 40 horas com um máximo de 8 horas por dia, isso implicaria ter de aumentar a jornada máxima diária para 9 horas diárias. E quem não faz serviço de urgência teria de passar a trabalhar ao sábado.
Assim, resume, a adesão a este regime "implicaria perda de direitos" para os médicos.
Para a FNAM estas propostas são inclusivamente inconstitucionais, tendo o sindicato avançado com um apelo a Marcelo Rebelo de Sousa para que peça a fiscalização do diploma se este/quanto este lhe chegar às mãos.
Acresce que, ao contrário do que o nome dá a entender, esta "dedicação plena não obriga a que um médico esteja em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde, passa é a ter de pedir autorização à chefia da instituição onde está para poder trabalhar em simultâneo no privado", clarifica.
"Será que a dedicação plena faz com que haja menos médicos a trabalhar no setor privado? Não, e não nos parece que isso fosse acabar com a separação entre os setores público e privado", acrescenta a presidente da FNAM, assumindo que "num mundo ideal" o regime de exclusividade deveria ser tão atrativo que o permitisse.
Linhas vermelhas (e um aumento de 30% no salário-base não é uma delas)
Para este sindicato o aumento do limite das horas extraordinárias, o fim do prejuízo de horário e do descanso compensatório, assim como o trabalho ao sábado são linhas vermelhas na negociação que volta a ter lugar esta quinta-feira.
Já o SIM considera "mau princípio" pensar à partida em linhas vermelhas quando se está a partir para um processo negocial, o que na opinião de Jorge Roque da Cunha só "contribui para alimentar o radicalismo, o populismo e as propostas irrealizáveis".
No que diz respeito à dedicação plena, o SIM exige que a adesão seja voluntária para todos os profissionais, porque aí os médicos "terão oportunidade de olhar para o que o governo propõe e serão livres de fazer uma escolha". Ainda assim, o sindicato opõe-se a um aumento da carga de trabalho ou à possibilidade, também avançada, de haver uma urgência metropolitana organizada, à semelhança do que acontece no Norte do país, em que um médico pode prestar serviço de urgência em diferentes hospitais, desde que cumpridas regras específicas, por exemplo de distância entre unidades.
Uma das questões principais na ronda de negociações em curso é, todavia, o aumento de salários dos médicos. A proposta governamental é de um aumento médio, transversal de 3,6%, o que pelas contas da FNAM dá 107 euros a mais por mês, ou seja, um aumento de 0,60 cêntimos por hora.
Os sindicatos, todavia, exigem um aumento na ordem dos 30%. "Não estamos a pedir mundos e fundos, estamos a pedir a reposição da perda de poder de compra na última década mais a inflação, o que dá 30%", diz Joana Bordalo e Sá.
Mas este aumento "não é nem nas extraordinárias, nem em prestadores de serviços, é preciso colocar dinheiro no salário-base dos médicos, aumentando-o para um valor que consideramos justo", defende a presidente da FNAM, sendo que "entre os 3,6% e os 30%, numa negociação séria, ficaríamos ali no meio", assume.
O SIM acompanha este número — dos 30% —, mas admite que a valorização "seja contratada ao longo três anos [que faltam desta legislatura]".
"Sim, reivindicamos salários justos, mas sobretudo queremos melhores condições de trabalho para conseguirmos conciliar a nossa vida profissional e familiar"
A revisão da grelha salarial é apenas uma das várias propostas que a FNAM leva para a discussão, nomeadamente:
- O regresso a um modelo de dedicação exclusiva opcional devidamente majorado, semelhante ao que existia antes de 2009;
- Um regresso aos contratos de 35 horas de trabalho semanal — "Todas as profissões dos serviços públicos em Portugal só trabalham 35 horas, os médicos trabalham 40, em relação ao resto são mais dois meses de trabalho", justifica Joana Bordalo e Sá. Neste caso, o SIM também admite que a redução possa ser mitigada ao longo dos próximos três anos;
- Reposição das 12 horas do horário normal em serviço de urgência dos médicos hospitalares para que haja mais tempo para o resto da atividade programada (consultas e cirurgias);
- Revisão de medidas protetoras do regime de parentalidade;
- Reposição de 25 dias úteis de férias, com 5 dias suplementares quando gozados fora da época alta;
- A inclusão do internato médico no 1.º grau da carreira médica;
O SIM segue para a negociação ainda com propostas que visam os médicos de saúde pública e de medicina legal que ficaram "totalmente esquecidos por parte do governo" e ambos os sindicatos querem ter uma palavra a dizer sobre a nova organização das unidades de saúde familiar.
"Se tudo isso melhorasse [em paralelo com a negociação das grelhas salariais] acreditamos que íamos ter mais médicos no SNS e não seria preciso recorrer tanto às horas extraordinárias ou aos prestadores de serviços, que são exorbitâncias", diz Joana Bordalo e Sá.
Quando lhe perguntamos o que mudou para os médicos, diz que a pandemia os fez "olhar para o trabalho de outra forma. Cada vez mais percebemos a necessidade absolutamente crucial de conseguir ter uma vida profissional e familiar equilibrada. Sim, reivindicamos salários justos, mas sobretudo queremos melhores condições de trabalho para conseguirmos conciliar a nossa vida profissional e familiar", reitera.
Tratam-se das "medidas intangíveis" que para o presidente do SIM podem ajudar o SNS a competir com o privado na atração de recursos.
Por outro lado, os médicos esperavam que "depois do esforço inaudito durante a pandemia, a carreira médica pudesse ser valorizada nos seus vários aspectos", mas os 16 meses de negociação que antecederam este regresso à mesa "foram um falhanço, no nosso entendimento por culpa do governo", diz a presidente da FNAM.
Para Jorge Roque da Cunha são esses 16 meses que justificam que o SIM parta para esta nova ronda negocial com um "ceticismo significativo". A sua expectativa, no entanto, é de que "ministério da Saúde apresente com uma proposta concreta, efetiva", sendo que "não será aceitável um aumento de carga de trabalho ou uma diminuição do preço-hora".
O ministro, por seu lado, recusou divulgar detalhes sobre a proposta que agora levará aos sindicatos, pelo que não é claro se o Executivo estará hoje mais próximo das reivindicações dos médicos do que estava em setembro.
Um novo modelo de organização para as urgências
Se ao longo de 40 anos as urgências nunca conseguiram deixar de depender de horas extraordinárias, a presente crise obriga a questionar se estas deveriam ter uma forma específica de organização, que não obrigasse a repartir recursos com a atividade programada (consultas e cirurgias).
É verdade que um médico não dá consultas ou faz análises de madrugada, também é facto que o serviço de urgência é por inerência ininterrupto.
Ontem Manuel Pizarro assumiu que necessário “um conjunto de medidas articuladas para o funcionamento das urgências" e abriu a porta à "criação de equipas dedicadas de profissionais ao serviço de urgência”.
Essas equipas “passarão a ter a sua atividade concentrada no serviço de urgência e naturalmente terão de ter uma remuneração correspondente a um trabalho que é mais exigente ainda do que o trabalho médico normal”, acrescentou.
Uma das propostas que o SIM leva hoje a discussão é exactamente no sentido de regular a atividade de equipas exclusivamente dedicadas a serviço de urgência, a quem deve ser reconhecida a "penosidade" desta função.
"Não há uma pessoa que aguente fazer três ou quatro jornadas de 12 horas, sempre de noite ou ao fim de semana, sem limites, que foi a proposta que nos entregaram", diz Joana Bordalo e Sá. "Temos de trabalhar no sentido de regulamentar esse trabalho dos colegas em equipas dedicadas às urgências, se vierem a ser implementadas, de forma a equilibrar a vida profissional e pessoal, e que compense a penosidade desse trabalho".
O debate não é novo, tendo sido mais intenso no final de 2022 quando a Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos “chumbou” a criação da especialidade de Medicina de Urgência, uma decisão que o SIM "não compreende".
À data, Miguel Guimarães, então bastonário da Ordem disse que a proposta “foi democraticamente votada e as pessoas acharam que, neste momento, não é oportuno a existência da especialidade”.
Na semana anterior, porém, 56 antigos e atuais diretores de serviços de urgência defendiam exatamente o oposto, considerando ser indispensável a criação da especialidade face às “enormes insuficiências” da rede hospitalar.
Os signatários do documento a que a agência Lusa teve acesso lembravam ainda que esta é uma especialidade com mais de 50 anos “presente na esmagadora maioria dos países da Europa, nos quais constitui um dos pilares fundamentais dos cuidados médicos”.
Á data, Manuel Pizarro deixou a porta entreaberta e disse que "cada instituição tem o seu papel, é uma decisão da Ordem do Médicos, que respeitamos, mas vamos encontrar um modelo de organização das urgências que seja mais adequada".
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