O governo trocou esta quinta-feira o Palácio da Ajuda, em Lisboa, pelo de Mafra, na vila que José Saramago imortalizou, descrevendo como as gentes daquele lugar, a pouco menos de meia centena de quilómetros da capital, ergueu um sonho de D. João V, à boleia da vontade do clero.

Esta introdução ajuda a explicar o tema do Conselho de Ministros reunido esta manhã: a cultura. O Palácio Nacional de Mafra acolhe a discussão sobre o Estatuto do Trabalhador da Cultura — que deverá mesmo ser aprovado neste encontro —, mas também outros diplomas importantes para o setor que têm estado em espera, antevê o ‘Público’.

Em cima da mesa da reunião estão cerca de duas dezenas de diplomas, relacionados com áreas da Cultura, nomeadamente projetos de regulamentação, como a da rede de teatros e cine-teatros.

O estatuto dos profissionais, reivindicado há décadas pelos trabalhadores da Cultura, das Artes e dos Espetáculos, é, no entanto, o mais aguardado pelo setor. O estatuto tem por objetivo fazer o enquadramento legal da especificidade laboral na Cultura, em termos de registo profissional, de contratação, de regime contributivo e de acesso a medidas de proteção social.

Desde o anúncio do Conselho de Ministros dedicado à Cultura, António Costa também acrescentou o setor ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com um total de 243 milhões de euros, destinando 150 milhões à valorização, conservação e restauro do património cultural e histórico, nacional e municipal, e 93 milhões de euros à transição digital.

Outra medida prevista neste Conselho de Ministros é a formalização de um outro compromisso recentemente assumido por António Costa: a consignação de 1% do valor da empreitada dos futuros grandes investimentos em Infraestruturas públicas à encomenda o compra de obras de arte.

Estatuto do Profissional da Cultura. Para quem é e para que serve?

O estatuto do profissional da Cultura é o documento que define o enquadramento legal de várias profissões do setor da Cultura, Artes e Espetáculos, e que está dividido em três eixos: registo dos trabalhadores; contratos de trabalho; regime contributivo e apoios sociais.

A quem está destinado? Os dados mais recentes sobre emprego no setor da Cultura em Portugal remontam a 2018, somam 160.600 pessoas, das quais uma em cada quatro trabalhava por conta própria, e foram divulgados em junho de 2020 pelo Governo.

No ano passado, foi anunciada a linha de apoio social a trabalhadores da Cultura, no âmbito do Programa de Estabilização Económica e Social (PEES), que previa um universo de 18 mil potenciais beneficiários.

Esta linha dizia respeito apenas a “atividades correspondentes às artes do espetáculo e de apoio às artes do espetáculo, bem como aos artistas de teatro, bailado, cinema, rádio e televisão e aos artistas de circo”, delimitando o universo de trabalhadores independentes, “artistas, autores, técnicos e outros profissionais das artes”.

Há pelo menos vinte anos que trabalhadores e estruturas têm apelado à criação de um estatuto, de um enquadramento legal específico para a Cultura, que tenha em conta a especificidade laboral e lhes permita aceder a medidas de proteção social.
A criação de um estatuto tem sido sucessivamente incluída nos programas políticos dos diferentes Governos, tanto PS, como PSD/CDS-PP.

Durante o primeiro governo de José Sócrates foi aprovada a lei 4/2008, que define o regime dos contratos de trabalho dos profissionais de espetáculo, mas ficaram por especificar enquadramentos específicos, nomeadamente sobre segurança social.

Quando começou este estatuto a ser feito?

Em 5 de maio de 2020, o ministério da Cultura anunciou a constituição de um grupo de trabalho interministerial, conjunto com os ministérios do Trabalho e da Segurança Social ee das Finanças, “para análise, atualização e adaptação dos regimes legais dos contratos de trabalho dos profissionais de espetáculos e respetivo regime de segurança social”.

O grupo de trabalho, que se reuniu pela primeira vez a 6 de junho de 2020, é constituído por representantes dos ministérios da Cultura, das Finanças e do Trabalho e Segurança Social.

As reuniões do grupo de trabalho têm contado também com diversas associações representativas dos vários setores da Cultura, entre as quais a fundação GDA, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE), a Plateia, a Performart, a Rede e a Associação Portuguesa de Realizadores (APR).

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, comprometeu-se por diversas vezes em ter a proposta do grupo de trabalho pronta até dezembro de 2020, mas a data foi, entretanto, adiada.

O Orçamento do Estado para 2021 incluiu uma autorização para a criação do estatuto, que “tem a duração do ano económico a que respeita a presente lei”. Quer isto dizer que o estatuto tem de estar criado até ao final deste ano.
Nas Grandes Opções do Plano (GOP) para 2021 já se lia que o estatuto dos profissionais da área da Cultura “será revisto e implementado” em 2021.

Nas Grandes Opções do Plano para 2021, o Governo indicava que o estatuto "é uma peça decisiva para o futuro do setor cultural e criativo em Portugal", cujas fragilidades foram agudizadas em 2020 por causa da pandemia da covid-19, com a paralisação de grande parte da atividade cultural durante vários meses.

Para as estruturas representativas do setor, só um enquadramento legal, articulando aqueles três eixos, é que pode proteger efetivamente o profissional da Cultura, retirá-lo da precariedade.

Na semana passada, associações representativas de trabalhadores da Cultura alertaram o parlamento para o risco de aprovação prematura do estatuto se não houver discussão de todas as suas componentes.

A Ação Cooperativista, a Associação de Artistas Visuais em Portugal, a Plataforma Cívica Convergência pela Cultura e o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) alertaram para o risco de poder vir a reforçar a precariedade, sobretudo por não atender ao caráter de intermitência do trabalho no setor.

Sublinharam ainda a falta do mapeamento das atividades existentes, que consideram essencial para sustentar as opções a definir, a falta de fiscalização e de meios para a fazer, e, entre outras lacunas, a necessidade de atualização dos códigos de atividade económica, em função da realidade, o que tem deixado profissionais fora dos apoios.

Também consideraram necessária a inversão do constante subfinanciamento público da Cultura, historicamente um dos mais baixos na despesa pública portuguesa.

O documento a ser hoje aprovado pelo Governo deverá ter um período de discussão pública e de ser enviado para a Assembleia da República, onde será discutido e votado.

Caso seja aprovado, na sequência deste processo, é necessário que o estatuto seja então promulgado pelo Presidente da República, para depois ser publicado em Diário da República e, por fim, entrar em vigor.

Mafra pode, assim, ser hoje o palco de uma solução “Saramágica”, uma resposta aos anseios que, pendurada nas parábolas e nos sonhos dos homens, seja capaz de elevar a cultura à condição mística mas omnipresente, como só Saramago sabia contar.