Implantada a República em 5 de outubro de 1910, que pôs fim a séculos de monarquia, era necessária uma Constituição que estabelecesse os fundamentos deste novo regime político.
Com 29 páginas e 87 artigos, a Constituição de 1911, o mais curto dos textos constitucionais portugueses, foi aprovada pela Assembleia Constituinte em 21 de agosto.
Ainda que curta – ainda mais se a compararmos aos 296 artigos da atual Lei Fundamental – esta representou “um garante indiscutível de democratização da sociedade e do Estado, desde logo pelo afastamento dos Braganças e do Senado de Pares nomeados pelo rei, substituídos por um Presidente da República eleito e por um Senado igualmente sujeito a escrutínio”, aponta o professor Luís Farinha, investigador no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
“Depois, o outro campo foi, sem dúvida, o da institucionalização de domínios de modernidade indiscutível: separação das Igrejas do Estado, fim da religião católica como religião de Estado, laicização do ensino e da assistência social, talvez este os aspetos mais relevantes das mudanças introduzidas, baseados no princípio inviolável da liberdade de consciência e de crença”, salientou o académico.
Helena Pereira de Melo, professora na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, destaca que esta Constituição trouxe várias soluções que foram muito importantes, "desde logo, o ensino primário gratuito e obrigatório e de acesso universal (ou seja, para rapazes e raparigas), a liberdade de expressão e de reunião”, uma norma que “é absolutamente inovadora da indemnização de cidadão se for injustamente condenado, a afirmação do laicismo (reconhecendo a liberdade e igualdade de todos os cultos), a exclusividade do registo civil” ou ainda “o direito de resistência a ordens que infringissem garantias individuais”.
“Tudo isto é, do ponto de vista jurídico, uma evolução imensa”, sublinha.
Em maio de 1911, Carolina Beatriz Ângelo, médica, republicana e sufragista, tornou-se na primeira mulher a votar em Portugal, aproveitando uma lacuna da lei da altura, que definia que apenas podiam votar os portugueses maiores de 21 anos, residentes em território nacional, que soubessem ler e escrever ou fossem chefes de família, sem especificações quanto ao sexo.
Viúva e com formação superior, votou para a Assembleia Constituinte, na qual viria a ser debatida e aprovada a Constituição de 1911. Contudo, nessa primeira Constituição republicana, não foi instituído o direito ao voto às mulheres.
Pelo contrário, mais tarde, em 1913, o código eleitoral esclareceria qualquer dúvida: “São eleitores de cargos legislativos os cidadãos portugueses do sexo masculino maiores de 21 anos ou que completem essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever português, e residam no território da República Portuguesa”.
“Tendo em conta a situação dos movimentos políticos mundiais mais progressivos, talvez a maior limitação tenha sido a limitação do direito de voto, numa altura em que as lutas pelo sufrágio universal se faziam sentir pela Europa e pela América e em que um importante (embora limitado no número) movimento sufragista português se apresentava como apoiante da República. Na verdade, o voto universal foi sempre visto, conjunturalmente, como um voto contra a República e contra a republicanização (revolucionária, evidentemente) do Estado e da sociedade portuguesa”, refere Luís Farinha.
Também Helena Pereira de Melo - coautora, com a historiadora Irene Pimentel, do livro “Mulheres Portuguesas - História da Vida e dos Direitos das Mulheres num Mundo em Mudança” (Clube do Autor, 2015) - adianta que “muitas das promessas feitas às feministas, antes e depois da implementação da República não foram cumpridas”, entre elas o direito ao voto, salientando que “parte da revolução foi uma revolução feita por mulheres que não apareceram, mas que foram fundamentais para a alteração do regime - depois a seguir a República promete que as vai ajudar mas não as vai ajudar no pleno direito constitucional".
A académica lembra, no entanto, o um período de instabilidade governamental na vigência desta Constituição: em 15 anos, o país teve oito Presidentes da República e 44 governos.
“A Constituição [de 1911] é um texto jurídico muitíssimo importante, que permitiu a implantação de um regime que foi muito bom para os cidadãos em geral e que podia ter ido um pouco mais longe e podia, do ponto de vista dos direitos das mulheres não foi o melhor possível, mas também temos que considerar, embora não atenue a responsabilidade do legislador, que foi uma situação que do ponto de vista social pôs fim a muitos séculos de monarquia e de instabilidade social e política imensa”, refere, ressalvando que, ainda assim, houve "conquistas legislativas muito importantes" para as mulheres neste período.
“Por outro lado, deverá ter-se em conta que o sufrágio não é o único indicador a ter em conta: desde logo, o ensino universal e gratuito, a libertação da mulher da tutela do homem em matérias de património e sucessão, o casamento civil, a lei do divórcio, entre outras, são matérias que beneficiaram, sobretudo, as mulheres. Evidentemente, beneficiaram toda a sociedade, mas são leis a pensar na situação da mulher”, destaca Luís Farinha.
Quanto a marcas desta Constituição na atualidade, o professor refere que “o regime (com a aplicação prática da Constituição de 1911) foi um laboratório político de grande valor para, por oposição, consagrar os princípios de contrabalanço existentes na Constituição de 1976”.
“A I República veio-nos oferecer os princípios do estado de direito republicano, democrático, laico e descentralizado. Que são os princípios da nossa Constituição atual”, sublinha Helena Pereira de Melo.
O período da I República terminou com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que dissolve o parlamento e instaura uma ditadura militar.
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