“O poder disciplinar e organizativo do empregador não deixa de existir no teletrabalho”, refere Simão de Sant’Ana, advogado principal da Abreu Advogados. Mas tal não pode ser feito com recurso a tecnologias intrusivas como as que, por exemplo, controlam o movimento do teclado do computador, o que é “expressamente proibido”.
Pedro Antunes e Vicente Garcia, do departamento de laboral da CCA Law Firm, realçam que as empresas “podem utilizar aplicações que permitam o registo dos tempos de trabalho dos seus trabalhadores” – sendo esta uma forma de garantir que não estão a ser ultrapassados os limites máximos de duração do trabalho.
Porém, reforçam, é ilegal e proibido o recurso a tecnologias que monitorizem a atividade, nomeadamente de aplicações abertas ou páginas de Internet consultadas, “na medida em que tal consubstancia a utilização de meios de vigilância para controlo do desempenho profissional dos trabalhadores”.
Também a advogada especializada em direito laboral Inês Arruda refere não ver mal no facto de a empresa registar a atividade, da mesma forma que o faz quando o trabalhador exerce funções nas instalações do empregador, mas admite que em alguns casos estará a haver abusos.
Para Andrea Araújo, responsável do Departamento de Emprego da CGTP, a vigilância por parte das empresas é “uma questão inqualificável”, devendo todas estas situações ser denunciadas.
“Esta é uma situação punida por lei e quem o faz deve ser punido com mão pesada”, sublinha a dirigente sindical para quem a vigilância é ainda mais grave quando se trata de teletrabalho, tendo em conta que este é frequentemente realizado a partir de casa, interferindo, por isso, com a parte pessoal e familiar do trabalhador.
Sérgio Monte, da UGT, afirma que aos sindicatos têm chegado casos de empresas que usam tecnologias para vigiar os trabalhadores e que, de uma forma geral, estes não têm “noção dos perigos e das precauções que devem ter quando em regime de teletrabalho”.
A perda de privacidade é, a par da diluição da separação entre os tempos de trabalho e da vida pessoal, um dos maiores riscos que os especialistas apontam ao teletrabalho – um regime de trabalho totalmente residual, mas que a pandemia de covid-19 veio generalizar.
Mas há outras vertentes a ter em conta, sublinham, e que têm a ver com os meios necessários para a realização do trabalho e os custos associados.
Salientando que o regime regra é que um contrato na modalidade de teletrabalho obriga a forma escrita, Pedro da Quitéria Faria, da Antas da Cunha ECIJA, defende a celebração de adendas ou aditamentos a contratos pré-existentes, tendo em conta que “existe uma substancial e relevante alteração na modalidade de laboração, no local de trabalho, questões relativas à propriedade dos instrumentos eletrónicos de trabalho e a quem compete a sua manutenção”, por exemplo.
Este aditamento servirá ainda, refere, para alteração e comunicação da morada do novo local de trabalho à seguradora “sob pena da prática de contraordenação laboral” ou para definir o período de vigência da modalidade de teletrabalho.
Em qualquer dos casos, precisa, os trabalhadores “podem e devem” analisar “detalhadamente” todos os aspetos incluídos no referido acordo.
Os advogados da CCA salientam, por seu lado, que estes acordos devem prever o modo específico como o trabalho deve ser desempenhado, nomeadamente horários de trabalho e as ferramentas utilizadas, devendo detalhar a quem cabe fornecer as ferramentas de trabalho e os custos suportados pelo empregador para a utilização das mesmas ou se há ou não alguma obrigação de trabalhador comparecer nas instalações da empresa.
Além disso, alertam, “muitas vezes as maiores ameaças não vêm plasmadas no contrato ou no aditamento, mas sim nas exigências que os empregadores fazem a posteriori, quando o aditamento já foi assinado e o teletrabalho já está em vigor”.
Inês Arruda também sublinha a necessidade de o trabalhador verificar a questão relativa ao acréscimo de custos no teletrabalho, nomeadamente de telecomunicações e de eletricidade, referindo que já se começam a registar diferendos entre trabalhadores e empresas pelo facto de o pacote de dados de Internet pago pelo empregador não chegar para a totalidade do mês.
Neste contexto, salienta, no aditamento ou acordo por escrito, devem “ficar salvaguardados os meios de trabalho e despesas”.
“No acordo deve ficar muito bem estabelecido qual é o horário de trabalho e os trabalhadores em regime de isenção de horários devem ter muito cuidado”, acrescenta, por seu lado Simão de Sant’Ana, precisando que quem esteja a equacionar continuar em teletrabalho deve “pensar bem no horário e negociar, sob pena de tudo ser trabalho e de haver uma fusão entre a vida pessoal e profissional, o que não é saudável”.
Sérgio Monte, dirigente sindical da UGT, deixa o alerta de que, através destes aditamentos ou acordos, se pode estar a tentar “acrescentar obrigações e deveres” ao contrato de trabalho, pelo que, antes de os assinarem, os trabalhadores devem aconselhar-se ou ouvir uma opinião avalizada na matéria.
“Os nossos sindicatos estão a seguir a estratégia de, quando é proposto um aditamento ao contrato de trabalho, o trabalhador solicite aconselhamento para perceber o que é que está a ser aditado e evitar aditamentos que mais tarde não podem mudar”, afirma.
Andrea Araújo, assinala que estes acordos merecem fortes dúvidas, desde logo “porque os trabalhadores não estão em pé de igualdade na relação do trabalho e facilmente as empresas conseguem pressionar para que se assinem” acordos que possam ser desvantajosos.
Coisa diferente seria, acrescenta, se em vez de serem feitos a título individual, estes acordos fossem remetidos para a negociação coletiva.
Tal como Andrea Araújo, da CGTP, também Sérgio Monte realça que a generalização do teletrabalho imposta pela pandemia veio demonstrar que este regime não é uma panaceia para a conciliação da vida profissional com a vida familiar. Pelo contrário, "o teletrabalho cria uma intromissão entre uma e outra faceta”, refere a dirigente sindical, a que se soma o aumento de custos com eletricidade, pacotes de dados ou consumíveis.
Aos perigos relacionados com a privacidade e de diluição dos horários de quem está em teletrabalho, Simão de Sant’Ana acrescenta o isolamento social e alerta para o facto de quem aceita ficar neste regime arriscar ser mais esquecido, face a colegas que estejam mais “visíveis”, numa futura promoção.
Apesar de o teletrabalho estar previsto no Código do Trabalho, uma parte dos especialistas ouvidos pela Lusa consideram que haverá vantagens em revisitar a legislação de forma a adaptar melhor este regime à realidade e à prática.
“O paradigma do direito do trabalho mudou inexorável e irreversivelmente e, nesse sentido, há que, de forma prudente, procedermos às necessárias adaptações ao regime legal que a realidade e a prática irão exigir, até com o fito de evitar desnecessariamente potenciais conflitos laborais que se antecipam com a massificação significativa do teletrabalho”, considera Pedro da Quitéria Faria.
Já Simão de Sant’ana entende que lei laboral atual é suficiente e que, face ao que acontecer e à forma como o mundo poderá ou não mudar, se deverá, então, “refletir sobre o que será necessário”.
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