De acordo com dados disponibilizados em abril, a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) foi reforçada com mais 180 camas, nas tipologias de Convalescença (UC), Média Duração e Reabilitação (UMDR) e Longa Duração e Manutenção (ULDM).
Com estas aberturas, a rede ficou com uma capacidade total instalada nestas tipologias de 9.737 camas, informou a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) em comunicado.
Ao SAPO24, José Bourdain, presidente da Associação Nacional dos Cuidados Continuados (ANCC) explica que, neste momento, existem pelo menos 9.732 utentes a usufruir destes cuidados.
As contas são fáceis de fazer: na prática, existem cinco camas livres. A lista de espera é grande — e pode ser consultada online: estão pelo menos 1.588 pessoas à espera de um lugar "nas principais tipologias". Mas o número é maior. "Se contarmos com todas são cerca de 2.200 no total", adianta, "a maioria na região de Lisboa e Vale do Tejo, porque é onde está a maior parte da população".
Pela primeira vez em oito anos fizeram um comunicado em que falam verdade. Durante oito anos, as notícias que saíam para a comunicação social por parte do governo eram no sentido de abrir mais camas em cuidados continuados. Mais 500, mais 400, mais 300. Depois saía a portaria e vinha lá as tais camas, mas não eram novas aberturas
Segundo José Bourdain, não há dúvidas de que o número apresentado pela DE-SNS é verdadeiro. "Pela primeira vez em oito anos fizeram um comunicado em que falam verdade. Durante oito anos, as notícias que saíam para a comunicação social por parte do governo eram no sentido de abrir mais camas em cuidados continuados. Mais 500, mais 400, mais 300. Depois saía a portaria e vinha lá as tais camas, mas não eram novas aberturas. O que acontecia é que a maioria era transferência de camas de uma tipologia para a outra", aponta.
"Imagine que a minha instituição tem 60 camas em média duração. Agora eu pedia ao governo para mudar para convalescença, porque o valor pago em média é muito inferior e a minha unidade está com dificuldades financeiras. Então, para sobreviver, vou tentar transferir-me para outra tipologia, porque o valor pago é melhor. Depois, o governo anunciava essas camas como sendo novas, quando na realidade eram zero camas a mais, o que havia era uma mudança de tipologia", exemplifica. "A matemática tem uma vantagem em relação a tudo o resto: é exata, não dá azo a qualquer tipo de opiniões ou interpretações. Fazemos as contas e é o que é".
Entre os internamentos sociais e os cuidados continuados
Muitas pessoas "continuam nos hospitais, umas a aguardar para lares de idosos, outras a aguardar para ir para o domicílio ou cuidados continuados". O que faz com que também existam menos camas disponíveis para internamentos. "Estamos a falar de 11% de casos internados nos hospitais indevidamente e que podiam estar na redes de cuidados continuados, em lares ou em casa".
Em março do ano passado, a rede de cuidados continuados tinha 37% de casos sociais, o que são cerca de 3 mil utentes. Se essas pessoas saíssem, automaticamente entravam todas as que estão nos hospitais à espera de vaga e ainda sobravam lugares
A mesma preocupação foi ouvida pela voz de Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), que frisa que é importante não esquecer que “muitos destes doentes que estão internados de forma inapropriada ficam no hospital durante meses à espera de uma resposta de um lar, de uma vaga na rede de cuidados continuados”.
“Não sei se as pessoas têm consciência do drama que isto é, porque estes doentes já têm o seu problema clínico resolvido, mas tem ainda algumas dificuldades, por exemplo, na sua autonomia, o que os obriga a ficar à espera de uma resposta e enquanto esperam pela sua resposta, muitos já não saem do hospital e é isto que devemos alarmar a todos imediatamente”, afirmou.
E há ainda outra situação a considerar: os internamentos indevidos também acontece na RNCCI. "Em março do ano passado, a rede de cuidados continuados tinha 37% de casos sociais, o que são cerca de 3 mil utentes. Se essas pessoas saíssem, automaticamente entravam todas as que estão nos hospitais à espera de vaga e ainda sobravam lugares", nota José Bourdain.
O SAPO24 contactou o Ministério da Saúde para saber quais as soluções para melhorar a resposta da rede de cuidados continuados, mas não teve resposta até à publicação deste artigo.
Quantas camas são efetivamente necessárias?
Xavier Barreto disse à Lusa ser urgente pôr em execução o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que prevê a criação de 5.500 camas de cuidados continuados, que disse "serem urgentes" para poder dar resposta aos doentes.
Todavia, José Bourdain deixa uma pergunta no ar: estas "fazem falta?". "Este país é uma desorganização tal que mandamos números para a frente, construímos camas, faz-se isto e aquilo, mas ninguém se organiza, ninguém resolve nada, ninguém consegue perceber minimamente a realidade e quantas camas efetivamente fazem falta", denuncia ao SAPO24.
É preciso aumentar as vagas em serviço de apoio domiciliário. E para isso não é necessário infraestrutura. Bastam pessoas para trabalhar e viaturas para as pessoas se deslocarem para casa dos idosos
"Provavelmente precisamos de menos do que aquilo que dizem que vão lançar. Na realidade, ninguém sabe responder qual é a verdadeira lista de espera para cuidados continuados e qual é a verdadeira necessidade de camas. E isso é gravíssimo e ao mesmo tempo muito triste, porque andamos a gastar dinheiro, recursos e tempo para uma coisa que, se calhar, não é necessária ou não é necessária em tanta quantidade nos próximos anos. É por isso que ajudava muito — e estalando os dedos, tomando uma decisão já hoje, o Governo conseguia resolver parte do problema — aumentar as vagas em serviço de apoio domiciliário. E para isso não é necessário infraestrutura. Bastam pessoas para trabalhar e viaturas para as pessoas se deslocarem para casa dos idosos", diz.
Há pessoas num estado de saúde lastimável e pressionam as famílias para as levarem para casa para não aumentarem a lista de espera
Por outro lado, podem existir casos que não estão registados na lista de espera. "Temos recebido muitas queixas, normalmente por telefone mas de vez em quando há alguém corajoso que o faz por escrito, em que famílias e doentes são pressionados nos hospitais por assistentes sociais, enfermeiros e outros profissionais de saúde, para irem para casa e não se inscreverem para ir para a rede de cuidados continuados. Há pessoas a quem são vedados os acessos aos cuidados continuados apenas porque caducou o cartão de cidadão e não o renovaram. Há pessoas num estado de saúde lastimável e pressionam as famílias para as levarem para casa para não aumentarem a lista de espera", nota.
Mas é necessário olhar para fora dos hospitais. "Também é preciso vagas em lares de idosos e a própria rede de cuidados continuados liberta os casos sociais que lá estão para casa e para lares". Com isto, explica, "abrem-se uma série de vagas e só aí vamos saber quantas camas é que precisamos mesmo em cuidados continuados".
"Tenho receio que se vá construir 5500 camas para ficarem ou todas ou em parte vazias. E isso é dramático, a menos que o governo tenha um outro plano para diminuir os internamentos hospitalares e aumentar o número de camas em cuidados continuados, porque fica muito mais barato e há pessoas que, mesmo precisando de cuidados de saúde, não precisam de estar num hospital. Por isso é que a rede foi criada, inclusive para atender doentes com maior complexidade. Mas isto tem de ser feito a partir da base, com informação, e cruzando tudo isto", justifica.
Cuidados continuados sem medidas no Plano de Emergência para a Saúde
A Associação Nacional de Cuidados Continuados (ANCC) lamentou esta quarta-feira a ausência de medidas para o setor no Plano de Emergência para a Saúde, questionando como será feita a libertação de camas indevidamente ocupadas nos hospitais.
A associação acusa o executivo de dar continuidade à política do anterior e a uma postura em que os cuidados continuados “não interessam para resolver os problemas do setor da saúde, quando são tão fundamentais”, sublinhando que “o Governo não explica como irá resolver estes internamentos indevidos”.
A ANCC critica ainda a referência à valorização dos profissionais de saúde por entender que exclui os do setor privado e social, que “o Governo despreza e discrimina face aos do setor público ao não pagar o suficiente para que estes tenham salários iguais aos funcionários públicos”, que auferem entre 60% e 80% mais do que os do setor social e dos cuidados continuados.
“Há quem atribua a frase a Eça de Queiroz (outros a Mark Twain): ‘Os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente pela mesma razão’. Neste caso, mudaram-se os políticos, mas continua tudo a cheirar mal no que respeita à forma como tratam o nosso setor”, criticou a ANCC.
Ao SAPO24, José Bourdain já tinha referido não ter "esperança na classe política". "Um dos problemas do nosso país, um bocadinho transversal aos partidos todos, é que a classe política normalmente perde imenso tempo em congressos, em inaugurações... estão sempre em propaganda política e deviam passar mais tempo a visitar as organizações e a discutir ideias com quem sabe e com quem trabalha no terreno, para depois tomarem decisões em conformidade. Quando tentamos reunir com a classe política, o que raramente acontece, normalmente as reuniões são sempre à pressa. São sempre a correr e, portanto, nada se resolve. Para além de ser tudo à pressa, também não nos ouvem a sério. Então dificilmente tomam decisões boas, porque muitas vezes nem têm know-how e também nem querem ter. Se nos ouvissem e olhassem para a matemática, provavelmente chegavam a uma solução muito mais rápida e mais barata".
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