A Mesquita dos Omíadas, o quarto lugar mais sagrado para os muçulmanos, foi o ponto inicial das festividades que atravessaram a capital síria ao longo do dia semanal sagrado do Islão, numa rara enchente no Salat al-Jummah, ou a Oração da Sexta-Feira, expressando apoio à rebelião armada cinco dias após o ditador sírio ter abandonado o país.

Com gritos de comemoração e louvando “Alá é grande”, ao fim da manhã, uma multidão ocupava por completo os tapetes vermelhos da também conhecida como Grande Mesquita de Damasco, de 157 metros de comprimento, e uma grande parte do seu grande pátio exterior, recolhendo-se em total silêncio para escutar as palavras do primeiro-ministro interino do governo de transição, num discurso não anunciado, em plena oração do meio-dia.

“População da Síria livre, a vitória é uma grande responsabilidade e é uma responsabilidade de todos nós”, afirmou Mohamed al-Bashir, numa das suas primeiras declarações no novo cargo, após ter cancelado uma conferência de imprensa marcada para quinta-feira.

O líder sírio pediu “mãos livres” no caminho da reconstrução da Síria, como “um país de civilização, dignidade e liberdade” e que só pode ser alcançada através da tolerância e da reconciliação, após mais de cinco décadas sob o regime repressivo de Bashar al-Assad, antecedido pelo seu pai, Hafez.

“A Nação procura recuperar a sua dignidade e glória, é tempo de a noite da tirania acabar e de o sol da liberdade brilhar na Síria”, proclamou Bashir, que anteriormente foi chefe do Governo de Salvação em Idlib, nos territórios libertados no noroeste do país, expressando ainda condenação aos atos de tortura e de humilhação praticados pelo “regime criminoso, chefiado pelo maldito Bashar”.

Após o sermão não programado do político sírio, os fiéis começaram a abandonar o histórico templo controlado por sunitas, que se começou a erguer no século VII sobre uma antiga igreja bizantina (onde se acredita terem sido sepultados os restos mortais de S. João Batista, também profeta do Islão), entoando cânticos de vingança contra os antigos presidentes Assad e a promessa de que ambos “vão arder no inferno”, ao mesmo tempo que pisoteavam cartazes com as suas imagens deliberadamente deixadas no chão de pedra.

À semelhança do novo primeiro-ministro sírio, muitas das pessoas que hoje afluíram à Grande Mesquita são residentes em Idlib, onde se refugiaram durante a brutal repressão lançada por Assad contra os protestos da Primavera Árabe, que na Síria teve início em 2011 precisamente neste local com os primeiros cânticos de fiéis exigindo democracia e liberdade.

“Na altura, os bons muçulmanos manifestaram-se em paz, mas Assad tratou-os como terroristas”, observa Abu Abedkader, 34 anos, que se deslocou nos últimos dias de Idlib para Damasco, pela primeira vez desde há 13 anos, para comparecer hoje na Grande Mesquita acompanhado de dois guerrilheiros tajiques afiliados às forças da Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, HTS), um dos grupos da coligação armada que depôs o regime.

Agora, o gestor ligado aos rebeldes pretende seguir “os ensinamentos do Pai” (no duplo sentido de Deus e progenitor) e, alcançada a libertação, “viver com todos”, porque, insiste, apesar dos cânticos escutados no templo islâmico, os opositores sírios “são pessoas pacíficas, não são terroristas”.

Foi ainda simbolicamente na Mesquita dos Omíadas que, imediatamente após a queda do regime, o líder do HTS , Abu Mohammed al-Jolani, felicitou “o grande povo sírio pela vitória da abençoada revolução” e convidou-o a sair às ruas e praças da capital, na primeira sexta-feira sagrada pós-Assad, “para expressar a sua alegria, sem disparar balas nem intimidar as pessoas”.

Desde as primeiras horas da manhã de hoje, os comerciantes do ‘souk’ de Hamidiyya, que se estende em velhas vielas apertadas pela cidade velha, começaram a remover a antiga bandeira síria, que vigorou durante a dinastia Assad e estava pintada em todos os portões das lojas, e substituíram-no com o novo símbolo nacional tricolor, associado à rebelião, com o verde em lugar do vermelho e três estrelas em vez de duas.

Numa resposta ao pedido de Jolani, os habitantes de Damasco irromperam pelo labiríntico mercado coberto, levando pela mão bandeiras com as novas cores nacionais, que também decoravam carros, motorizadas e bicicletas, num ambiente familiar de júbilo, desprovido de qualquer tensão e sem precedentes nos últimos anos.

“Foi como se hoje tivesse nascido de novo”, desabafa Yusuf, de 70 anos e natural de Deir al-Zur, no noroeste da Síria e ex-refugiado no Líbano, que não guarda memórias do período pré-Assad: “Hoje é um dia de perfeita felicidade, o primeiro de muitos e melhores dias. Rezo muito por isso”.

Enquanto as novas autoridades se esforçam para evitar o colapso das instituições e da vida do país durante os primeiros dias da transição, mantendo os militares revoltosos visíveis nas ruas sem mostrar hostilidade, as celebrações foram crescendo, ao longo do dia de descanso, sem sinais de perturbação ou registo conhecido de incidentes graves.

Todas as artérias do centro da capital ficaram entupidas com engarrafamentos caóticos, num recital de buzinas, que voltaram a confluir para a Praça dos Omíadas, onde imagens aéreas captadas por um drone mostravam uma concentração de largas dezenas de milhares de pessoas no ponto central dos festejos há várias noites.

Com a população de Damasco pacificamente nas ruas, o Governo de transição foi tentando manter a comunicação institucional, ao repetir na televisão síria o discurso de unidade do primeiro-ministro durante a oração do meio-dia, enquanto os clientes das principais redes móveis do país recebiam SMS do remetente Free Syria, reforçando esta mensagem.

“Parabéns ao nosso povo. O futuro da Síria começa hoje, faça parte dele e contribua para a construção da nova Síria. A Síria livre junta todos os cidadãos na base da paz, amor mútuo sem qualquer discriminação ou segregação”, apelava a mensagem transmitida na operadora MTS.

Para Abu Cheich, 19 anos e militar do HTS, presenciar a libertação na cidade velha de Damasco, onde em 2011 tudo começou, “tem um significado bastante especial”, dedicando o dia de hoje ao seu irmão, morto num bombardeamento das forças afetas ao regime e que o levou a apresentar-se ao exército revoltoso mal chegou à vida adulta.

Vestido à civil e de arma automática em punho, o jovem rebelde confessa que pensava que a sua campanha militar de Idlib para Damasco seria bastante mais difícil e surpreendeu-se ao participar nas primeiras vagas do HTS a chegar à capital, que já tinha sido entretanto conquistada pelo Exército Livre da Síria, no final de uma operação relâmpago de apenas 12 dias, embora fosse já claro ao longo do percurso que a adesão popular e a integração de novos combatentes “iriam conduzir à vitória”.

“Tudo aconteceu no ‘timing’ certo”, na análise de outro militar do HTS, Abu Seilane, 33 anos, num momento em que o Irão, o grupo xiita libanês Hezbollah e a Rússia “estavam ocupados com as suas guerras” e com capacidade de intervenção reduzida no seu apoio a Bashar al-Assad, que acabou por partir para Moscovo.

Mas o trabalho, prossegue o rebelde de Alepo, “não acabou”, mantendo a confiança de que as fações rebeldes que se unificaram para depor o regime não vão lutar entre si e que “o tempo vai consolidar” esta vitória: “Hoje vou celebrar, amanhã continuo em prontidão”.