No início desta semana um incêndio deflagrou na Calheta, Madeira, e foi dado como extinto dois dias depois. Mas ainda na quarta-feira, ao final da tarde, um novo fogo no mesmo concelho fazia os bombeiros sair dos quartéis e obrigava à evacuação de um hotel. As chamas não tardaram a alastrar até Porto Moniz. Ontem à noite, a Proteção Civil dava a situação como controlada, depois de uma "noite terrível". Ao SAPO24 confirmou que "não houve registo de danos diretamente na Floresta Laurissilva", considerada Património da Humanidade em 1999 pela UNESCO.
"A Laurissilva não precisa de nós para se defender", congratula-se Rui Nelson, técnico de engenharia e autoditada naturalista, fã confesso desta floresta húmida que ocupa 15 mil hectares na costa norte da Madeira, em conversa com o SAPO24.
É ele que nos dá em primeira mão a informação de que o fogo andou ali a rondar, mas sem sucesso, o que depois foi corroborado pela Proteção Civil.
"Podemos ver que há uma linha em que o incêndio avançou por 20 quilómetros. De um lado estava a Laurissilva e do outro lado a floresta introduzida pelo homem". Fala-nos da "fronteira entre a mata criada pelo homem e a mata original da Madeira. E quem ganhou foi a mata original porque ali não houve intervenção humana".
Diz-nos que a Laurissilva "autogere-se", e que a forma como manteve as chamas longe de si é mais uma prova do "espírito próprio" de uma floresta "tão inteligente". "Estou extremamente feliz", confessa.
Tudo se deve à "humidade característica" deste tipo de floresta, que remonta ao Terciário, um intervalo de tempo geológico cujo início ficou marcado pela extinção dos dinossauros e de grande parte dos invertebrados marinhos, passando a fauna a ser dominada pelos mamíferos.
A Laurissilva "é uma floresta que existia em toda a Europa, desde o Mediterrâneo, e que com a era glaciar desaparece de grande parte do território e se refugia na macronésia, ou seja, na região formada pelos arquipélagos da Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde", explica.
Agora, "a maior mancha de Laurissilva do mundo está aqui na Madeira".
Rui caminha todas as semanas na floresta e conhece-a como a palma da sua mão. Quando alguém se perde nas matas da Madeira é a ele que chamam. Ontem foram resgatados 13 turistas que ficaram retidos numa levada na quinta-feira, no concelho do Porto Moniz. Rui não foi com os bombeiros, "que arriscaram entrar na floresta ainda na fase de rescaldo para resgatar estas pessoas". "Eu só dei umas indicações", atalha.
"Os turistas estavam numa unidade hoteleira do concelho de Porto Moniz e tinham ido dar um passeio. Ficaram encurralados pelas chamas e protegeram-se com a levada, que é um canal de água com túneis. Eles abrigaram-se nos túneis e deram o alerta, pediram ajuda ao 112", conta.
Segundo a Proteção Civil, a operação de resgate ficou a cargo de seis operacionais da Equipa de Salvamento em Grande Ângulo dos Bombeiros Voluntários Madeirenses.
De volta à Laurissilva, Rui defende que temos de olhar para esta "como um tesouro do nosso planeta, da nossa Humanidade. É um orgulho para todos os seres, e sobretudo para os madeirenses, ter a Floresta Laurissilva"
Trata-se, diz, de uma floresta "fundamental para a sobrevivência" da Ilha. É "esta floresta riquíssima que capta a água dos ventos predominantes do Atlântico que vêm do norte e abastece as nascentes, o que por sua vez é a sobrevivência da Madeira em termos de água", explica.
Quando lhe perguntamos o que é preciso para proteger a Laurissilva, sobretudo em contextos como este, diz que o que aconteceu esta semana "é prova de que ela continua a mandar nisto e apenas quer uma coisa, que a deixem quieta".
"Um grande susto"
Os incêndios dos últimos dias foram "um grande susto", assume. "Passei a noite [de quinta-feira] atento às coisas e pensei que ia ser pior do que foi", diz.
Segundo informações enviadas ao SAPO24 com o balanço realizado pela Proteção Civil às 21h00 desta sexta-feira, a situação encontrava-se dominada, ainda que se mantivessem dois focos de incêndio ativos nos concelhos da Calheta e do Porto Moniz, mobilizando mais de 120 operacionais e 36 veículos. Este sábado segue um contingente da Força Especial de Proteção Civil para a Região Autónoma da Madeira para auxiliar no combate aos incêndios rurais.
Contas feitas, os fogos atingiram cinco casas, entre elas, duas habitações devolutas e três habitadas, o que obrigou duas pessoas a ficar em alojamento provisório. Todas as pessoas que se encontravam deslocadas já regressaram às suas habitações. Entre os assistidos contam-se 66 pessoas, por inalação de fumos ou queimaduras ligeiras.
Entretanto, as Forças Armadas e a GNR reforçaram as ações de vigilância e patrulhamento na zona sul e oeste da Madeira, e todos os percursos pedestres classificados nos concelhos da Calheta e do Porto Moniz encontram-se encerrados.
Desde a semana passada que o arquipélago da Madeira está sob aviso laranja devido às altas temperaturas e assim se manterá até ao final deste sábado. O IPMA registou mesmo um novo recorde de temperatura do ar na Madeira: 34,7 °C no Funchal.
Sobre o calor, Rui Nelson lembra "um ditado dos antepassados: 'o leste em outubro quando vem rebenta tudo'".
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