
O produtor João Filipe Mendes, 43 anos, vai na quarta geração de comerciantes de cereja da aldeia de Alcongosta e, devido à emigração, à falta de vontade dos jovens em se dedicarem à agricultura e ao receio de que o dinheiro ganho a trabalhar nas férias interfira com bolsas de estudo, tem tido dificuldade na contratação local.
Nos 35 hectares de cerejal da quinta de Castelo Novo, em 41 pessoas envolvidas na campanha da cereja, 31 são nepalesas.
“Neste momento, se não houvesse imigrantes em Portugal, não havia colheita de cereja, não havia produção de cereja, porque não temos portugueses disponíveis para trabalhar”, constatou o empresário, em declarações à agência Lusa.
Começou por recrutar através de empresas de trabalho temporário, já recorreu ao Centro de Acolhimento de Trabalhadores Temporários do Fundão e, depois ter colaboradores de várias nacionalidades, privilegia os do Nepal e passou a fazer diretamente contratos de trabalho.
“Opto pelo povo nepalês, porque é mais humilde e tem uma destreza maior na colheita da fruta, da cereja, neste caso”, explicou João Filipe Mendes, que durante o ano conseguiu manter 28 trabalhadores e, na campanha, confia nos que trabalham consigo para chamarem compatriotas.
Nas manhãs, o granito da serra da Gardunha não faz sombra, o sol aperta, mas o movimento no pomar, num ano em que a produção está atrasada, segue o compasso habitual, das cestas despejadas para as caixas de plástico, um trator a passar, os ramos a abanar e, pontualmente, o som de aves de rapina que vem do dispositivo sonoro com o objetivo de impedir que os pássaros biquem a cereja.
Há oito anos a trabalhar na João Veríssimo Mendes & Filho, Shiva Pun, 39 anos, com gestos mecânicos, dedos ágeis a deslizar entre os ramos, com as mãos calejadas que carregam a memória do campo a apanhar aquele a que chamam o ouro do concelho, adaptou-se facilmente às tarefas e é um dos apoios do patrão para explicar aos outros o que fazer em cada dia.
No Nepal, Bishnu Kandel, entroncado, de 31 anos, trabalhava num hotel. Desde que veio para Portugal, há seis anos, apanhou melão, castanha, andou por várias latitudes, viveu dificuldades com a agência a que tinha ligação, esteve sem trabalho e encontrou estabilidade no Fundão, onde, com um Português que já permite conversar, contou que gosta do que faz, aprecia as condições que tem e, há três meses, conseguiu trazer a mulher, Mina, 27 anos, que trata os trabalhos agrícolas por tu e comunica por gestos e olhares.
João Filipe Mendes renovou cinco casas na quinta para criar condições dignas de alojamento e vai recuperar uma sexta, em outra propriedade. Têm um salário mensal e casa, água, luz, leva-os uma vez por semana às compras e, quando necessário, ao médico.
É uma relação simbiótica, de que beneficiam ambas as partes, comentou o empresário, que se apressou a dizer que tem retorno desse tratamento, uma vez que são os primeiros a oferecerem-se quando ele precisa de algo.
João vê nos nepaleses apetência para trabalharem na agricultura e a adaptação é fácil, mas a língua é uma barreira em que tropeçam, embora estejam a ter aulas de Português, e há aspetos culturais em que é necessário insistir.
O empresário aguarda que alguns aprendam o Português necessário para poderem tirar a carta de condução e ganharem outras competências.
Três trabalhadores já têm ao pé de si as mulheres, mas a burocracia tem sido um labirinto que angustia, com a dificuldade em fazer marcações na Agência para a Integração, Migrações e Asilo e o assédio de máfias para encurtar caminho.
Shiva Pun quer trazer a esposa e a filha, só que tratar da documentação tem sido o principal pesadelo e o patrão lamenta ter tido de recorrer a um advogado para resolver uma situação a que os serviços deviam dar resposta.
O empresário defendeu que, tendo em conta alguns picos de colheita, devia ser criada uma bolsa de trabalhadores para necessidades de curtos períodos.
João Filipe censurou alguns maus exemplos tornados públicos no país que “mancham a reputação dos agricultores”, pediu fiscalização adequada nesses casos e frisou que quem utiliza a marca Cereja do Fundão está obrigado a cumprir normas relativas não apenas à qualidade do fruto, mas também às condições de trabalho e a um conjunto de boas práticas.
Valorização da cereja do Fundão arrancou há 25 anos e impulsionou um novo concelho
Apadrinhamento de cerejeiras, caminhadas meditativas, aluguer de cestas de piqueniques ou ‘escape game’ são algumas das atividades que durante o mês de junho os visitantes podem experimentar no Fundão a propósito da campanha da cereja, motor de desenvolvimento local.
Quase 25 anos depois das primeiras ações de valorização do produto, o “crescimento turístico no Fundão tem sido fabuloso”, destacou à agência Lusa Olga Nogueira, técnica de turismo do município.
“A experiência mais marcante é, realmente, quando os turistas podem comer a cereja diretamente da árvore. É o que as pessoas mais valorizam. Junho é o mês mais forte turisticamente, nomeadamente com as excursões”, disse Olga Nogueira, que por estes dias assiste os visitantes no posto de turismo.
É o “ouro do concelho”: assim a cereja é caracterizada pela vendedora Ermelinda Costa, que por esta altura assenta arraiais e despacha caixas e mais caixas do fruto numa das entradas do Fundão.
“Mexe com toda a economia, desde quem produz, quem apanha, restaurantes, vendedores, supermercados. É o ouro do Fundão”.
O presidente da Câmara também não tem dúvidas: em 2002 começou a trabalhar-se esta identidade, num plano de marketing territorial. Quase 25 anos depois, o resultado é evidente.
O Europeu de futebol em 2024, em Portugal, foi também determinante para esta evolução, com a campanha “A cereja do Fundão, o fruto da nossa seleção”. Desde aí, num processo que conheceu quatro fases, a cereja passou de um valor agregado de 11/12 milhões de euros para 20 milhões por ano.
A Câmara investe cerca de 100 mil euros por ano nesta história de sucesso, numa média, disse Paulo Fernandes, que aludiu a um estudo que concluiu que houve anos em que, com um investimento de 50 mil euros, o potencial comunicacional chegava aos dois milhões de euros.
Uma tese de doutoramento defendida em 2013 por Maria João Forte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa concluiu que esta operação - iniciada pelo então presidente Manuel Frexes, que tinha Paulo Fernandes como vereador – mudou a paisagem, a toponímia, a cultura e os hábitos. A socióloga destacou também, no seu estudo, o desaparecimento das variedades locais.
“Mas, hoje, o valor que se paga ao produtor é mais do dobro do que se pagava antes de começarmos com a nossa marca. A cereja trouxe a notoriedade e contaminámos positivamente outras atividades que nada têm a ver com a cereja. Hoje, o nosso produto agregado ligado à agricultura estará na casa dos 170 milhões por ano para um município com 27 mil pessoas”.
Os imigrantes são fundamentais para mexer com a economia e Paulo Fernandes destacou, numa conversa com a Lusa, um aspeto inabdicável: “Se alguém for encontrado com práticas não dignas relativamente ao trabalho agrícola, fica proibido de usar a marca ‘Cereja do Fundão’”.
O fim das portagens também tem contribuído, no tempo mais recente, para o crescimento turístico: as dormidas passaram de 80 para 160 mil por ano e o tempo de estada duplicou de 1,5 em média para três dormidas graças aos dois mil hectares de cereja que povoam o território.
João Nuno Rodrigues, presidente da Junta de Alcongosta – a capital da cereja e onde se realiza no segundo fim de semana de junho a Festa da Cereja, lembrou que é, ali, freguesia na qual também se localiza a Casa do Saber – Casa da Cereja, que se localiza o grosso dos produtores.
A aldeia vive praticamente toda em torno da cereja: “Temos aqui famílias, talvez 50% da população, que vive da fruticultura e da cereja. A freguesia é a mais cerejeira de Portugal, como diz o presidente da Câmara. Foi aqui que se começaram a desenvolver os primeiros pomares ordenados. Aqui, estará também em breve, o Centro de Ciência Viva – Quinta das Ideias e da Cereja. Será um espaço mais ligado para a ciência e para o desenvolvimento de novas atividades”.
Numa localidade com 300 e muitos eleitores, cerca de 30 mil pessoas visitam a Casa da Cereja por ano. Já a Festa, este ano em 06, 07 e 08 de junho, tem habitualmente 50 a 60 mil visitantes.
Cereja do Fundão ganha vida todo o ano através de outros produtos
Fora do palco dos pomares do Fundão e da fruta consumida em fresco, a cereja interpreta muitos outros papéis e desdobra-se em vários produtos que prolongam o seu ciclo de vida durante todo o ano.
Da fruta são produzidos licores, compotas, cosméticos, bolos, gelados, cerveja, gim, kombucha, chá e outros produtos que demonstram as múltiplas vocações do fruto que é bandeira do Fundão e que ajudam a criar valor em torno do ecossistema da cereja.
Há dois anos, Miguel Caniça, 50 anos, pesou o facto de a Cereja do Fundão ser “uma marca consolidada, reconhecida, que facilita a entrada em mercados”, quando decidiu investir cerca de dois milhões de euros numa fábrica de ultracongelados que também tem o exclusivo da produção do pastel de cereja do Fundão, no distrito de Castelo Branco.
A Cerenata da Gardunha, com 30 trabalhadores, quis primeiro sedimentar-se e, agora que vende empadas no país e estrangeiro, tem a intenção de este ano multiplicar a comercialização do pastel de cereja, até agora sazonal.
Em 2024, entre maio e junho, foram vendidas 30 mil unidades, mas o empresário vê potencial num “produto diferenciador, endógeno” para este ano já conseguir vender anualmente 200 mil pastéis feitos com polpa de cereja e tê-los disponíveis o ano inteiro.
A ideia é colocar o pastel de cereja do Fundão à venda em aeroportos, estações de serviço, pastelarias e pontos turísticos, mas também utilizar os canais habituais da empresa para a venda do pastel, ultracongelado, em superfícies comerciais e restauração.
Inicialmente, foi testada uma empada de cereja, mas o resultado não foi o esperado, por o fruto não ser o principal ingrediente, e estão a ser desenvolvidos outros produtos, como um pastel com requeijão e cereja do Fundão.
“Estamos a trabalhar para que, em 2025, o pastel de cereja do Fundão já seja comercializado o ano inteiro e não seja um produto sazonal”, adiantou à agência Lusa Miguel Caniça.
Luís Martins, 69 anos, teve com a mulher, Helena, a Sabores da Gardunha, empresa que começou por produzir compotas e licores de cereja e que venderam, mas, na reforma, perceberam que não conseguiam estar em casa.
Pegaram numa ideia antiga e começaram a pesquisar e a testar o casamento do chocolate artesanal com várias formas de trabalhar a cereja que produzem em Alcongosta, aldeia “berço da cereja” e onde criaram há quatro anos a Casa da Ponte.
Na espécie de laboratório com a mesma temperatura todo o ano usam a pedra de mármore para, com o secador ao lado, temperarem o chocolate, encontrarem os cristais pretendidos e criarem “produtos de excelência para nichos de mercado”.
O que apanham do pomar, tudo é aproveitado. Dos pés, para colocar nos bombons, às passas, para a tablete de chocolate negro com pasta de cereja e ginja liofilizada.
Começaram por uma caixa com seis tipos de bombons: com licor de cereja; com recheio de cereja e chocolate negro; recheio de cereja e chocolate de leite; com recheio de doce de ginja e o flor de cerejeira.
O casal de Alcongosta, “capital da cereja”, aproveitou o entusiasmo em torno do chocolate do Dubai para também produzir e inspirou-se no conceito para fazer experiências que resultaram na nova tablete, a apresentar durante a Festa da Cereja, que se realiza entre 06 e 08 de junho, certame que tem sido uma montra para vários tipos de produtos em que a cereja se pode transformar e múltiplas formas como pode ser utilizada na gastronomia.
“Pensei que, se tenho um produto tão nobre, como é a cereja do Fundão, juntando-a ao chocolate, só teria a ganhar”, realçou Luís Martins, que não tem a intenção de massificar a produção, artesanal, e referiu que gostava de ter “mais tempo e menos vinte anos” para explorar “o muito potencial da cereja”.
Os hotéis e alojamentos locais são mercado preferencial, mas os turistas também lhes batem à porta, por onde passam nas rotas ligadas à cereja, “a âncora do negócio”.
Custos elevados inibem produtores de cereja de investirem em túneis nos pomares
A imprevisibilidade da meteorologia tem afetado a produção de cereja no Fundão nos últimos anos e a instalação de túneis é uma solução para mitigar o problema, embora os custos avultados inibam o investimento.
João Filipe Mendes, 43 anos, é um dos poucos produtores que tem uma pequena parcela de cerejeiras cobertas e, em 2024, quando a chuva danificou muito o fruto, percebeu a diferença que pode fazer.
“Em árvores da mesma variedade, nas que tinha dentro da cobertura, colhi cereja, com uma quebra até 10%. Nas que estavam fora, não colhi cereja. Foi uma perda de quase 100%”, ilustrou o produtor de Alcongosta, com 1,5 cobertos dos cerca de 35 hectares de cerejal na quinta em Castelo Novo.
Os túneis no primeiro hectare foram instalados há três anos e tiveram um custo de 62 mil euros, mais duas máquinas para fazer a manutenção e abrir e fechar os plásticos manualmente, que representaram um investimento de 18 mil euros cada.
“É um custo brutal”, considerou João Filipe Mendes, que esta campanha, com as temperaturas desfavoráveis e a chuva persistente, viu muita cereja protegida pelos túneis apodrecer com a humidade formada debaixo das estruturas.
O projeto inicial era cobrir 18 hectares, mas recuou, perante os custos. Seria mais prático os plásticos poderem ser amovíveis com mecanismos automáticos, até através de um comando no telemóvel, para arejar facilmente as áreas e não criar humidade e o fendilhamento da cereja, mas, com essas estruturas elétricas, os orçamentos duplicam.
“Era benéfico ter maior área. O problema é o valor do investimento. Os agricultores não têm capacidade para criar essas estruturas”, lamentou João Filipe Mendes.
Da sua experiência, observou que os túneis reduzem o risco e tornam a fruta menos dependente dos humores do tempo.
“Tem a vantagem de reduzir a quebra de produção, conseguir produzir mais, ter maior calibre, protege dos escaldões e das queimaduras, enquanto tem a desvantagem de a fruta ficar mais mole debaixo dos plásticos”, elencou.
O presidente da Câmara do Fundão, Paulo Fernandes, informou que, dos dois mil hectares de cereja em produção no concelho, apenas seis têm cobertura, manifestou o desejo de ver 10% dos pomares com túneis, o equivalente a 200 hectares, e afirmou ter a garantia da tutela de que os valores de referência para a instalação das coberturas adequadas à cereja vão aumentar para cerca de 50% do custo.
O autarca salientou que os apoios para as coberturas antigranizo cobrem apenas cerca de 10% do custo de instalação, as estruturas para a cereja têm de ter características que protejam também da chuva e espera que, assim que o Governo tome posse, as linhas de apoio sejam atualizadas, para permitirem a “viabilidade do investimento”.
Gonçalo Batista, 45 anos, com cerca de 13 hectares de cerejeiras, viu as chuvas prolongadas e as temperaturas afetarem a polinização e os vingamentos, o que se traduziu numa quebra da produção.
Face ao que tem constatado nos últimos anos, defendeu que os agricultores devem ter medidas que lhes permitam enfrentar a imprevisibilidade meteorológica.
“Temos de nos adaptar ao que está a acontecer. Precisamos de políticas que nos ajudem a tentar contrariar esta aleatoriedade do clima, por exemplo com a proteção dos pomares, mas também a atualização dos riscos dos seguros agrícolas”, advogou.
O sócio-gerente da Cerfundão, Filipe Costa, mencionou o “investimento bastante avultado” de um equipamento que, para a cereja, não pode ser apenas uma rede antigranizo, mas um plástico que obriga a uma estrutura de ancoragem mais robusta e que, em zonas menos planas, aumenta os custos de instalação.
Há dois anos a então ministra desafiou os produtores a montarem túneis com filmes fotovoltaicos, um “ganho de produtividade e de produção de energia limpa”, mas, sem apoios proporcionais, os agricultores não equacionam essa opção.
*Por Ana Ribeiro Rodrigues, Sérgio S. Soares (texto) e Paulo Novais (fotografia) da Agência Lusa
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