“Definitivamente, 2020 e 2021 têm sido anos muito desafiantes para toda a indústria da restauração, mas a maioria dos restaurantes conseguiu resistir bem à tempestade”, comentou Gwendal Poullennec, em entrevista à Lusa em Valência, cidade espanhola que acolheu este ano a gala de apresentação do Guia Michelin Espanha e Portugal 2022.
O responsável do Guia Michelin considerou “bastante impressionante” a “resiliência, a criatividade, a forma como [os chefes de cozinha] se adaptaram à situação, sendo muito mais flexíveis na forma como operam os seus próprios restaurantes e no que oferecem aos clientes”.
Um restaurante pode, por exemplo, ter simplificado o menu, “mas sem comprometer a qualidade da experiência que oferece aos clientes”.
Por outro lado, destacou, “o cliente está agora mais ansioso que nunca por ir a restaurantes”, o que se nota na dificuldade de reservar mesa em muitos locais.
A própria Michelin e os inspetores do guia também tiveram de adaptar-se às novas circunstâncias.
“Mudámos o planeamento para nos adaptarmos, para garantirmos que estamos no terreno todos os dias, para sermos realmente o mais flexíveis possível, para sermos capazes de avaliar com justiça os restaurantes, mas também para reconhecer todas as novas aberturas e todos os novos projetos”, comentou Gwendal Poullennec.
“Apesar da covid-19, continuamos a destacar todos os talentos da indústria, dando particular destaque aos novos talentos, continuando a descobrir novos lugares e a partilhar endereços com a comunidade de amantes de comida”, acrescentou, salientando que essa é “a forma mais eficaz de apoiar a recuperação” deste setor.
O Guia Michelin também tem apostado no digital, outra consequência da pandemia.
“Todo o guia é totalmente digital e graças a isso podemos estar atualizados em permanência”, salientou.
A transmissão online da gala anual de apresentação do guia, desde o ano passado, fez também alargar o público que assiste ao evento. “Temos cada vez mais pessoas a seguir-nos e dispostas a saber quando algo está a acontecer dentro da indústria da restauração”, destacou.
Apesar de o guia ser ibérico, na internet Portugal e Espanha têm espaços diferenciados, com as referências escritas em português, destacou.
“O futuro da gastronomia portuguesa parece muito risonho”
Gwendal Poullennec destacou também o “dinamismo” atual da gastronomia portuguesa e admitiu que o país poderá conquistar uma ou mais distinções máximas, antecipando um “futuro muito risonho” para o setor.
“Há um verdadeiro dinamismo e, de um ano para o outro, vemos que o nível do panorama gastronómico local, a criatividade, a diversidade estão realmente a aumentar”, afirmou.
Na edição de 2022 do Guia Michelin Espanha e Portugal, apresentado esta semana em Valência, cinco restaurantes portugueses conquistaram a primeira estrela Michelin (‘cozinha de grande nível, compensa parar’’).
No total, Portugal conta agora com sete restaurantes com duas estrelas (‘cozinha excecional, merece o desvio’) e 26 com uma estrela.
“São 33 restaurantes. Para Portugal, isso é muito”, considerou, acrescentando: “O futuro da gastronomia portuguesa parece muito risonho”.
Questionado se Portugal poderá receber num futuro próximo a distinção máxima (três estrelas – ‘cozinha de nível excecional, justifica a viagem’), algo que nunca aconteceu, respondeu que “tudo é possível”.
“Espero que haja um dia um restaurante de três estrelas e talvez não apenas um”, comentou.
“Basta ver a rapidez com que a cena culinária local se está a desenvolver, a sua criatividade, diversidade, muito foco nos produtos locais, ‘chefs’ a abraçar novas tendências ou a serem criadores de tendências”, completou.
Poullennec salientou que a consistência é um dos fatores determinantes para a decisão de atribuir as três estrelas – em Espanha são 11 os restaurantes nesta categoria.
“[A distinção] três estrelas é realmente a derradeira experiência culinária e temos visto muitos progressos em Portugal ao longo dos últimos anos. E, novamente, o que importa é a dinâmica. Tem a ver com a qualidade dos produtos e o domínio das técnicas culinárias, o sabor, a personalidade do cozinheiro”, frisou.
Mas, salientou, “no fim de contas, também uma questão de consistência e é importante que haja uma experiência realmente consistente ao longo do tempo e ao longo do menu como um todo”.
Instado a comentar críticas do meio gastronómico português de que o país é, de alguma forma, negligenciado, quando comparado com Espanha, Gwendal Poullennec garantiu que o Guia Michelin tem “muito cuidado quando trabalha a seleção portuguesa que figura na publicação” e os inspetores, que fazem as avaliações de forma anónima, veem o “potencial” da alta cozinha portuguesa de uma forma “muito séria”.
“Penso que prova disso é a nova seleção, um novo estilo de restaurantes a ser promovido, duas estrelas verdes a serem reconhecidas”, ilustrou.
Na edição de 2022, a estrela Michelin foi atribuída aos restaurantes “Al Sud” (Lagos), “A Ver Tavira” (Tavira), “Cura” (Lisboa), “Esporão” (Reguengos de Monsaraz) e “Vila Foz” (Porto). Já a 'estrela verde', que distingue boas práticas ambientais, foi entregue ao "Esporão" e ao "Il Gallo d'Oro" (duas estrelas Michelin, Funchal).
Gastronomia sustentável é tendência em crescimento também em Portugal
O Guia Michelin quer destacar os restaurantes que estão na “linha da frente” de práticas sustentáveis, uma tendência em crescimento e já em evidência em Portugal, que conquistou este ano duas 'estrelas verdes', disse também o diretor internacional da publicação.
“A ideia principal por detrás da estrela verde é, sem dúvida, a de pôr em destaque modelos a seguir, aqueles que lideram a mudança dentro da indústria, promovendo iniciativas e inspirando não só todos os chefes de cozinha, mas também o cliente”, afirmou Gwendal Poullennec.
A ‘estrela verde’ foi lançada no ano passado e, atualmente, há “pouco mais” de 300 restaurantes em todo o mundo com esta distinção, que reconhece “uma experiência verdadeiramente sustentável, não só no produto, mas também na forma como o restaurante funciona e o modo como a equipa partilha o compromisso do restaurante com a sustentabilidade”, explicou.
Na edição do próximo ano do Guia Michelin, dois restaurantes portugueses figuram nesta seleção: “Il Gallo d’Oro” (duas estrelas Michelin, Funchal) e “Esporão” (uma estrela, Reguengos de Monsaraz).
Espanha conquistou mais seis ‘estrelas verdes’ na edição do próximo ano, num total de 29 restaurantes ibéricos com esta distinção.
“O que realmente temos visto, especialmente em Portugal, são as novas tendências emergentes com muito mais cuidado com a sustentabilidade e quando se trata de adquirir o produto para respeitar as comunidades locais”, comentou Poullennec.
Segundo o diretor internacional do Guia Michelin, que é editado em 30 países, os inspetores avaliam os estabelecimentos de acordo com “a mesma metodologia” para garantir consistência na atribuição da ‘estrela verde’.
A qualidade da comida é importante, salientou, mas é preciso ter a “mente aberta”.
“O importante é sermos capazes de reconhecer as iniciativas dos restaurantes, quer se trate de restaurantes de luxo ou de restaurantes muito simples. Não depende do número de estrelas. Não está apenas relacionado com a qualidade da comida”, afirmou Gwendal Poullennec.
Para obter uma estrela verde, sublinhou, “é preciso ser definitivamente um modelo a seguir, estar na linha da frente dentro da indústria em termos de práticas sustentáveis”.
Práticas essas que passam pela qualidade do fornecimento do produto, a rastreabilidade, a transparência, o respeito pelas estações ou a redução do desperdício alimentar e do consumo de energia.
Poullennec sublinhou que hoje em dia há muitos restaurantes a inovar e a aplicar novas práticas sustentáveis.
“Eles estão a experimentar e temos de reconhecer o desafio que é. Não há um retorno imediato. A Michelin quer reconhecer [esse trabalho] para que possamos impulsionar uma verdadeira dinâmica positiva”, comentou.
Os resultados, garantiu, já são visíveis. “Começámos com a ‘estrela verde’ há dois anos, e de um ano para o outro, já vemos o impacto. E sabemos que haverá cada vez mais no próximo ano”.
*** Joana Haderer (texto) e Hugo Fragata (vídeo), enviados da agência Lusa ***
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