As câmaras para a gestão de trânsito espalhadas pela cidade do Porto podem ser usadas para outros fins que não este, como sugeriu o presidente da autarquia, Rui Moreira. A legislação em vigor permite a recolha de imagens para a prevenção e a segurança das pessoas relativamente a crimes que possam ocorrer numa determinada zona com risco objetivo, explicou ao SAPO24 Inês Camarinha Lopes, assistente convidada da FDUP.
A autarquia defende que a vigilância pode ser uma consequência de as câmaras de gestão de trânsito já estarem nos locais sensíveis. A jurista diz que a leitura da lei permite afirmar que tal uso é admitido, “se se tratar de fins de proteção de pessoas e investigação e repressão penais. Se a primeira finalidade for lícita, se o tratamento de dados for lícito, pode haver tratamento — pelo mesmo ou por outro responsável —, se a segunda finalidade se tratar de investigação, repressão e detenção de infrações penais”.
A lei 59/2019, que transpõe uma diretiva europeia para a legislação portuguesa, permite “a recolha de dados pessoais para determinados fins, que estejam previstos em lei, e, depois, a utilização para uma segunda finalidade, sendo que essa segunda finalidade será a prevenção, repressão, detenção e investigação penais”, esclarece a jurista.
Esta interpretação da lei 59/2019 significa que o sistema do Centro de Gestão Integrada (CGI) do Porto pode ser usado para o controlo do tráfico de droga, mas não contra o consumo de estupefacientes.
Agora em causa está a lei 30/2000: desde então que o consumo de droga não é crime. Contudo, “não é um comportamento lícito, é uma contra-ordenação que está sujeita a um processo contraordenacional e pode haver a aplicação de uma coima ou de outra sanção não pecuniária”, esclarece Inês Camarinha Lopes.
Assim, para o combate ao crime, podem ser usadas câmaras, conforme prevê a lei 1/2005, que “prevê que um dos fins compatíveis para instalação e autorização da existência dessas câmaras é precisamente a proteção da segurança de pessoas e bens, para prevenção de factos qualificados pela lei como crimes.”
“Portanto, a sua instalação é permitida, só que, sendo permitida não é discricionária”, explica a docente da FDUP. “Implica que, nomeadamente, haja autorização do membro do governo que tutela a força ou serviço de segurança, o pedido pode ser feito pelo presidente da câmara”.
A isto acrescem ainda “uma série de condições de instalação”, para além da obrigatoriedade de se “verificar um risco objetivo para a segurança e ordem pública. Não basta um risco subjetivo, é preciso que objetivamente haja um risco para a segurança”, explica.
“Acho que este requisito é especialmente restritivo”, defende a jurista. “A utilização dessas câmaras é excecional, ainda que nalguns locais, desde que se verifiquem estes requisitos, possam existir”.
Depois, “a lei é especialmente cuidadosa com a questão de distinguir um espaço público que decorre na via pública, do espaço privado e que já poderia contender com a vida privada”. Ou seja, a legislação “veda a utilização de câmaras de vídeo quando captem imagens e sons que possam abranger o interior de casas de habitação ou sua dependência”, diz Camarinha Lopes.
“Isto salvo consentimento das pessoas interessadas, os proprietários, ou, na falta de consentimento, pode haver autorização judicial”, acrescenta.
No caso das câmaras de trânsito do Porto, existem máscaras digitais que automaticamente ocultam os edifícios nos pisos acima do rés-do-chão, sempre que existe algum movimento de ampliação que os mostre.
A lei impõe ainda que quando haja captação de alguma imagem que possa ser considerada intromissão na vida privada, na habitação “ela seja imediatamente destruída”.
No concelho da Amadora, distrito de Lisboa, existe um sistema de vigilância com uma rede de câmaras ligadas à PSP, cujo fim principal é a segurança e não a gestão da mobilidade. São mais de uma centena de câmaras espalhadas por vários pontos do território identificados pela polícia como aqueles onde havia maiores índices de criminalidade, nomeadamente furtos e roubos.
A aplicação de sistemas deste género é possível após a verificação de vários requisitos e pressupostos, lembra Inês Camarinha Lopes, “nomeadamente a autorização tem de ser deferida, tem de haver este risco objetivo, tem de haver salvaguarda e medidas técnicas e organizativas que salvaguardem a captação de imagens no interior de habitações, ou, por exemplo, no interior de prédios. Tem de haver proporcionalidade, um juízo de necessidade, adequação e proibição do excesso: se só for necessário captar um determinado local onde se verifica o risco, não se deve captar de forma mais ampla, aí há uma restrição.”
Se as imagens recolhidas cumprirem todos os requisitos legais, quando houver registo da prática de factos com relevância criminal — no caso, mais uma vez, tráfico de droga e não o consumo — as autoridades policiais podem “elaborar auto de notícia e remetê-lo ao Ministério Público”, explica Inês Camarinha Lopes. Ou seja, “estas imagens servem como aquisição de notícia de crime e podem servir para dar conhecimento ao Ministério Público do auto de notícia”, esclarece.
Tal não deverá ser possível com o sistema atual da autarquia, que não guarda as imagens. A portaria 372/2012 define que “se deve garantir que a visualização, o controlo e a gestão das câmaras de vigilância se passe em tempo real e o acesso às imagens deve ser possível até ao máximo de 60 minutos após a captação”, ou seja, deve permitir recuar 60 minutos para ver o que se passou anteriormente, diz a jurista ao SAPO24.
A legislação “em lado algum impõe que haja obrigatoriamente gravação daqueles dados: prevê tão-só que essa gravação seja entregue ao Ministério Público, no caso da prática de algum crime, para fins de investigação criminal”.
Não sendo isso possível, “o sistema torna-se menos intrusivo do que se houver captação e gravação”, já que “cada operação destas, quer a recolha, quer o armazenamento constituiria um processamento de dados e, neste caso, só haveria um deles, só haveria a recolha”.
“Eu prometi pisar o risco”
Na reunião do executivo camarário de 7 de outubro, Rui Moreira anunciou estar disponível para permitir que o ministério da Administração Interna (MAI) tenha acesso às imagens das câmaras do CGI.
“Neste momento existem na cidade cerca de 150 câmaras de controlo de trânsito. Não estão nem podem ser usadas para questões de segurança. Nomeadamente, elas ocultam automaticamente a identificação de pessoas. As imagens não são gravadas e não podem ser usadas como prova. Foram um investimento municipal e estão controladas pelo Centro de Gestão Integrada da Câmara do Porto”, admitiu o independente.
“Contudo”, acrescentou, “querendo, pode a PSP e qualquer outra instituição de segurança ou investigação requerer esse meio. Estamos prontos a ceder. Está à distância de um clique e custa zero ao Estado Português. Foi investimento municipal.”
Na altura, Rui Moreira disse que atualmente “estas câmaras estão maioritariamente instaladas em vias de grande tráfego automóvel”, mas que a nova expansão vai “avançar para zonas novas, nomeadamente para os bairros municipais […] como é o caso do Pinheiro Torres e Pasteleira Nova”, onde estão a surgir novas vias.
Isto mesmo foi explicado ao SAPO24 por Manuel Paulo Teixeira, diretor de Mobilidade e Transportes da autarquia portuense, que justifica a colocação de câmaras de vigilância junto a estes bairros municipais com a abertura e requalificação de novos arruamentos.
“Estamos constantemente a fazer a expansão da rede que já temos, para gestão de tráfego". É no contexto desta expansão que surge o alargamento às zonas dos bairros. Manuel Paulo justifica o "interesse do ponto de vista da gestão rodoviária" com novos arruamentos, novas ligações entre artérias.
Atualmente, estão previstas dez câmaras para a ligação da zona da Marechal Gomes da Costa e Boavista, até Diogo Botelho e a zona do Fluvial, "porque também vamos abrir aí alguns arruamentos", esclarece Manuel Paulo.
Questionado sobre se é o interesse rodoviário que justifica as câmaras previstas nos bairros da Pasteleira Nova e Pinheiro Torres, Manuel Paulo diz que sim: "há aqui uma coincidência em termos de localização face aos outros assuntos que têm vindo a ser discutidos, mas efetivamente é."
"Isso é visível porque estão neste momento a decorrer obras para abrir novos arruamentos nesse local. Estamos a estudar a alteração de algumas posturas de trânsito, para permitir também uma ligação pela rua de Grijó direta ao nó de Bessa Leite", exemplifica.
“Eu prometi pisar o risco. Estamos a ficar a um passo do risco”, disse Rui Moreira. “O ministério da Administração Interna pode não querer investir ou não poder investir. Mas nós investimos nos meios. Investimos nos carros que vamos oferecer à Polícia”, conclui.
“O expediente político não deve pesar mais que a saúde e a segurança”
Foi também nesta reunião de 7 de outubro que Moreira esclareceu a posição sobre a vontade de criminalizar o consumo de drogas: “O que temos pedido é a criminalização do consumo quando este atenta à liberdade, ao pudor ou afeta diretamente a formação individual das nossas crianças”, disse o autarca.
“Não se fale de pôr pessoas na cadeia. Fale-se de desincentivar efetivamente o consumo, pelo menos, em determinadas circunstâncias que, está à vista, perturbam o normal funcionamento de uma comunidade”, defende o independente eleito pela primeira vez em 2013.
"O consumo não deve ser crime, a menos que, com ele, estejamos a normalizar junto da sociedade um comportamento que, para nós, constitui um problema grave”, conclui, em declarações que mereceram a reprovação de partidos e organizações.
Há quase duas décadas, Portugal deixou de criminalizar o consumo de drogas. “Na altura Portugal foi criticado, mas hoje é precisamente o contrário e essa norma é aplaudida”, conta Inês Camarinha Lopes. A jurista lembra que se verificou “uma melhoria e um aumento do tratamento de pessoas que eram toxicodependentes” com a passagem de crime para contraordenação.
Para além disso, sublinha, “a lei parece ser bastante benevolente, por assim dizer, porque há muitas possibilidades de afastar o procedimento contraordenacional — suspensão do processo, afastamento da sanção — mediante o tratamento do sujeito em causa; a lei privilegia o tratamento daquela pessoa relativamente à aplicação de uma coima, que não seria o mais importante para aquele indivíduo, aqui a lei também se preocupa com esse aspeto”.
Na semana passada, a Harm Reduction International, organização que se dedica a reduzir os impactos negativos do uso de drogas e a respetiva regulamentação, condenou as declarações de Rui Moreira, que defendeu a criminalização do consumo no espaço público, dizendo que se trata de “um passo atrás na política portuguesa de drogas”.
“Desde que a descriminalização entrou em vigor [em 2000], as mortes por overdose e as infeções de VIH entre pessoas que usam drogas em Portugal diminuíram significativamente, tal como as prisões por ofensas relacionadas com drogas. Reintroduzindo as penalizações criminais pelo uso de drogas, arrisca-se a reversão destas tendências positivas”, defende a organização não governamental.
Naomi Burke-Shyne, diretora executiva da organização, considera “extremamente desapontante” que as autoridades do Porto estejam a considerar reintrodução da criminalização do consumo de drogas. “Os indícios mostram claramente que a criminalização é ineficaz na redução do uso e drogas, servindo apenas para colocar pessoas e comunidades em maior risco de perigos sociais e de saúde”.
Burk-Shyne sublinha a incoerência da posição de Moreira com a vontade mostrada no início do ano quando, na conferência da organização, precisamente no Porto, o autarca anunciou a abertura da primeira sala de consumo assistido na cidade.
“Que esta afirmação tenha sido feita por um presidente de câmara que no passado demonstrou apoio para uma abordagem às drogas centrada na saúde é particularmente preocupante. O expediente político não deve pesar mais que a saúde e a segurança das pessoas que usam drogas no Porto.”
Veja os outros trabalhos desta série:
Droga no Porto. Os olhos que veem... Até podem ver, mas não são para ver
Comentários