O presidente norte-americano indicou no início de janeiro a pretensão de colocar sob controlo dos Estados Unidos a Gronelândia e o Canal do Panamá, não descartando uma intervenção militar.
Devido à relação entre Açores e EUA, será que o mesmo poderia acontecer com este arquipélago português? São "situações completamente diferentes", explica o Major-General Isidro Pereira ao SAPO24.
Em tempos, "o grande interesse estratégico nos Açores" estava relacionado com a localização das ilhas, que não ficam propriamente "a meio caminho entre a América do Norte e a Europa", mas sim "um bocadinho mais próximos da Europa do que propriamente dos EUA".
"Na Guerra Fria, os Açores assumiram uma importância grande porque a maioria dos aviões das esquadras de transporte estratégico necessitavam de fazer escala algures no Atlântico para conseguirem chegar à Europa", começa por dizer.
"Hoje em dia, com o aumento da frota de reabastecedores em voo dos Estados Unidos da América, os Açores perderam a importância estratégica que tinham. Claro que continuam a conservar alguma, porque são uma zona mais longínqua e mais difícil de atingir e onde há alguma segurança relativamente a uma ofensiva protagonizada pela Federação Russa", adianta.
Além disso, nunca vão perder importância "como zona de repouso, como zona de descanso das tripulações, como zona de apoio logístico, onde se podem concentrar grandes quantidades de combustível".
Por outro lado, os Açores também podem ser "uma zona de retaguarda de recuperação de militares que possam ter estado em combate", pela "localização de instalações sanitárias ou hospitalares".
Contudo, o major-general não tem dúvidas: "Que é uma importância estratégica como era antigamente não é, não vale a pena estarmos aqui a dourar a pílula".
Contudo, desistir das Lajes também não deverá ser opção. "À partida eu creio que os Estados Unidos não vão sair dos Açores".
"Quando os Estados Unidos, aqui há uns tempos atrás, puseram a possibilidade de abandonar por completo a Base das Lajes, houve logo uma vontade da China em ocupar aquele espaço. Não têm interesse nenhum em ter a China ou uma potência chinesa ou um potencial bélico chinês no Atlântico Norte. Portanto, os Açores não deixam de ser importantes, mas não têm a importância em que tinham outrora", remata.
À agência Lusa, o especialista em relações internacionais Luís Andrade adiantou considerar “prematuro” antecipar até onde vai a “imprevisibilidade” de Trump, mas acredita que o cenário em relação à Base das Lajes e a Portugal não vai sofrer “alterações”.
“Havendo um acordo bilateral, e ainda por cima Portugal sendo membro da Aliança Atlântica, não vejo que se corra o perigo, digamos assim, de Trump querer comprar os Açores”, afirma o especialista, numa analogia face ao que se está a passar em relações às pretensões norte-americanas na Gronelândia.
De acordo com o especialista, a administração Trump “veio alterar radicalmente a ordem mundial desde o final da segunda guerra mundial”, desenvolvendo “atitudes semelhantes às de [Vladimir] Putin (Presidente russo) e China”.
“É um teocrata que não reconhece a ordem e direito internacional que existe neste momento. Há quem fale em desordem mundial”, afirma Luís Andrade.
Nesta “nova ordem internacional em que o estado natural é de guerra, em que não há normas”, adianta, os países-membros da União Europeia “têm que estar muito unidos relativamente às respostas a dar aos Estados Unidos”, bem como na Aliança Atlântica.
Por sua vez, o especialista em relações internacionais António José Telo defende que o “discurso da força” da administração Trump obrigará Portugal, aliado dos EUA e membro da NATO, a “repensar” a ligação a Washington e na Aliança Atlântica.
Em entrevista à Lusa, António José Telo afirmou que “há uma alteração, sem dúvida”, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, na forma como se enquadram no contexto global Portugal e a consequente posição geoestratégica dos Açores.
O professor catedrático e doutorado em História sublinha que existe uma “importância muito significativa dos espaços marítimos”, a par da rota do Norte, “onde cada vez mais navios passam durante mais tempo” e que, “se Trump levantar a Gronelândia em termos internacionais”, esta é uma via “muito mais rápida entre o Pacífico e o Atlântico”.
O SAPO24 contactou a Força Aérea Portuguesa e o Ministério da Defesa sobre este tema, mas não obteve resposta até ao momento de publicação deste artigo.
Gronelândia e Panamá são melhores apostas
"A Gronelândia tem vários aspetos a considerar do ponto de vista geopolítico. Primeiro, a posição que ocupa e que cresceu de importância porque a calota polar está a derreter a um ritmo como nós não conhecíamos. E isso permite, eventualmente, a navegação do Ártico", realça ao SAPO24 o Major-General Isidro Pereira.
Com isto, o "trânsito marítimo passaria a ser feito pelo Polo Norte, portanto vindo da Ásia para a Europa ou vindo da Ásia para a América, o que encurta imenso". Ou seja, "permite o controlo de parte das rotas".
"Depois, outra parte importante é o rastreio e o seguimento, em termos geoestratégicos, de lançamentos de mísseis pela rota polar, eventualmente vindos da Rússia sobre os Estados Unidos", nota ainda.
Com este território na sua posse, os EUA poderiam apostar na colocação de "radares de longo alcance para detetar de forma oportuna os movimentos ou os lançamentos desse tipo de mísseis balísticos".
Mas não é só: com o derretimento do gelo, importa o que se torna acessível. "Os estudos geológicos dizem que a Gronelândia é rica em determinado tipo de minerais que são hoje comummente designados por terras raras, que são fundamentais para o desenvolvimento das tecnologias emergentes, ligadas ao desenvolvimento de outras formas de motorização, a utilização do lítio e para a construção das baterias".
Por outro lado, a Gronelândia é uma região autónoma que "já goza de uma grande autonomia", frisa. "Pertence ao reino da Dinamarca, mas tem um estatuto especial, é uma região autónoma que tem uma autonomia até superior às nossas regiões autónomas da Madeira e dos Açores".
Quanto ao Canal do Panamá, em causa está também o transporte marítimo. "A forma mais barata de fazer transportar mercadorias produzidas na costa leste dos Estados Unidos para a costa oeste ou daí para a Ásia sempre foi atravessando o canal", recorda.
Todavia, o interesse americano vem mesmo desde a sua construção. "Quem começou a construir o canal do Panamá foram os franceses. Só que naquela altura havia muitas doenças que não eram controladas porque havia muitos pântanos e a malária começou dominar e os franceses desistiram. Depois, quem tomou conta da construção do canal do Panamá foram os americanos".
Desde aí e até aos anos 70, "foi sempre utilizado e foi controlado pelos Estados Unidos da América", até que Jimmy Carter, "num acordo celebrado com a altura o presidente do Panamá, transferiu o controlo dos movimentos da navegação comercial através do canal para o próprio governo do Panamá".
"Hoje em dia Donald Trump diz que o controlo passou a ser dos chineses, mas o Panamá nega, não é. E ainda diz que os EUA estão a pagar demasiado por cada navio que passa no canal", nota.
Mas nunca podem deixar de lá passar. "Se os navios não passarem pelo canal do Panamá, têm que ir ao Estreito de Magalhães. E isso é uma enormidade de dias a mais, o que é muito também traduzido em despesa".
"A utilização do canal do Panamá é fundamental para que esses produtos sejam mais baratos, porque senão o preço de transporte cresce muito. E a navegação através do Estreito de Magalhães é uma navegação difícil, com mares com grandes tempestades e gelados, já próximos da Antártida", remata.
Outros interesses de Trump
Quanto a outros territórios, o Major-General Isidro Pereira frisa que os Estados Unidos vão continuar de olhos postos "na questão do controlo da expansão da China".
"A China começa a pretender controlar o mar do sul da China e a considerar como seu o próprio estreito de Taiwan. Com isso os Estados Unidos não concordam, como é óbvio, no sentido de conter a expansão do país como uma superpotência no futuro", nota.
Por outro lado, também há interesse no Médio Oriente. "O que está na mente de Donald Trump é conseguir que a Arábia Saudita e Israel restabeleçam relações diplomáticas e políticas estáveis. Acho que é o próximo piscar de olho. É conseguir que a Arábia Saudita reconheça Israel como um Estado soberano e normalize relações entre os dois Estados. No fundo, isso arrasta consigo 80% daquilo que são os países do Médio Oriente".
Já quanto à Europa, nomeadamente ao caso da Ucrânia e Rússia, os interesses são outros — e em causa está a afirmação de uma superpotência. "Havia muita gente que pensava que agora a Ucrânia ia sucumbir, que a Rússia ia tomar conta da Ucrânia. Não é verdade, não é o que vai acontecer, de certeza absoluta. Donald Trump, neste momento, é o presidente da única superpotência a nível mundial. É apenas o país mais poderoso do mundo, o mais rico do mundo".
"Portanto, Donald Trump olha para si mesmo, neste momento, como o dono o senhor diz tudo, não é? E achamos que o dono e senhor disto tudo vai ceder, assim por dá cá aquela palha, aos caprichos do Vladimir Putin? Claro que não vai. Até por uma questão de afirmação interna e a nível mundial", reflete.
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