Elvira Fortunato, de 56 anos, que desenvolveu o transístor de papel, é distinguida por "uma carreira de excecional projeção, dentro e fora do país" e pelo "contributo notável para o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação português", afirmou Francisco Pinto Balsemão, que preside ao júri do Prémio Pessoa.
Para o júri, "a ciência e a inovação são sinónimos da carreira de Elvira Fortunato", sublinhando o "trabalho pioneiro na área da eletrónica transparente, usando materiais sustentáveis e com processamento completo à temperatura ambiente, e de grande impacto na indústria eletrónica mundial".
“Fico muito contente por ter ganho este prémio que, no fundo, reconhece o trabalho que tenho feito nesta área em particular e, em geral, na área da ciência”, reagiu a investigadora.
Em declarações à Lusa, Elvira Fortunato sublinhou que esse reconhecimento acontece numa altura particularmente relevante, num contexto de pandemia da covid-19 que se prolonga há mais de um ano, mostrando “a importância da ciência” no combate à crise sanitária.
Por outro lado, destacou ainda o valor especial do prémio que carrega o nome de Fernando Pessoa, um poeta que admira e que a inspira no seu trabalho.
“Há um pedacinho de um poema dele que eu tenho em letras coladas num anfiteatro, que mostra que nunca devemos pensar pequenino, devemos pensar sempre grande e pensar sempre que conseguimos”, contou, citando “Para ser grande, sê inteiro: nada”, da autoria do heterónimo de Pessoa Ricardo Reis.
Para o futuro, a palavra de ordem é “continuar”: “Continuar com os projetos que temos em mãos e agarrar novos desafios”, sublinha.
Cientista, professora catedrática e vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa, Elvira Fortunato é especialista em Microelectrónica e Optoelectrónica, e uma das inovações pela qual se destaca é a do transístor de papel.
"A ideia de usar o papel como um 'material eletrónico' abriu portas, em 2016, para futuras aplicações em produtos farmacêuticos, embalagens inteligentes ou microchips recicláveis, ou até páginas de jornal ou revistas com imagens em movimento", relembra o júri.
O Prémio Pessoa, no valor de 60 mil euros, é uma iniciativa do semanário Expresso e da Caixa Geral de Depósitos, e visa reconhecer a atividade de pessoas portuguesas com papel significativo na vida cultural e científica do país.
O júri deste ano foi composto por Francisco Pinto Balsemão (presidente), Emídio Rui Vilar (vice-presidente), Ana Pinho, António Barreto, Clara Ferreira Alves, Diogo Lucena, Eduardo Souto de Moura, José Luís Porfírio, Maria Manuel Mota, Pedro Norton, Rui Magalhães Baião, Rui Vieira Nery e Viriato Soromenho-Marques.
O Prémio Pessoa é uma iniciativa do semanário Expresso e da Caixa Geral de Depósitos, e visa "representar uma nova atitude, um novo gesto, no reconhecimento contemporâneo das intervenções culturais e científicas produzidas por portugueses".
O anúncio do Prémio Pessoa 2020 deveria ter acontecido em dezembro, mas foi adiado para hoje, por causa da pandemia da covid-19.
Entre os vários galardoados com este prémio, desde que foi instituído, em 1987, contam-se personalidades como José Mattoso, António Ramos Rosa, Maria João Pires, Menez, António e Hanna Damásio, Herberto Helder (que o recusou), Vasco Graça Moura, João Lobo Antunes, José Cardoso Pires, Eduardo Souto Moura, João Bénard da Costa, Sobrinho Simões, Mário Cláudio, Luís Miguel Cintra, Maria do Carmo Fonseca, Eduardo Lourenço, Maria Manuel Mota, Richard Zenith, Manuel Aires Mateus, Rui Chafes, Frederico Lourenço e Tiago Rodrigues.
Elvira Fortunato, a "mãe" do chip de papel e pioneira da eletrónica transparente que não trabalha para prémios
Diz que não trabalha para prémios, mas já perdeu a conta aos que recebeu. Em 2020 a Comissão Europeia que distinguiu-a com o Impacto Horizonte 2020 pela criação do primeiro ecrã transparente com materiais ecossustentáveis. Elvira Fortunato, a mãe do "chip de papel", é um nome incontornável da ciência portuguesa.
Almada. Foi aqui que nasceu e estudou Elvira Fortunato. É também aqui, mais especificamente nos laboratórios da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que a cientista de 56 anos estica os materiais até ao limite para os aplicar de forma nada convencional. É isto que lhe dá prazer.
Foi assim que nasceu o “chip” de papel e foi assim que se tornou pioneira na área da eletrónica transparente. Engenheira que é, não quer 'inventar a roda', prefere focar-se em projetos que sabe que terão sucesso e que podem ser úteis à sociedade. Assim, do seu laboratório saem produtos que se aplicam à vida de todos os dias, num trabalho que se faz ao lado de empresas como a Samsung, a LG, a Hovione, a Merck ou com a Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Elvira Fortunato é vice-reitora da Universidade Nova, professora catedrática no Departamento de Ciência dos Materiais da Faculdade de Ciências e Tecnologia e diretora do Instituto de Nanomateriais, Nanofabricação e Nanomodelagem e do CENIMAT. Desde 2016 que integra o Grupo de Alto Nível para o Mecanismo de Aconselhamento Científico da Comissão Europeia.
Hoje já não dá aulas de Microeletrónica, mas continua a acompanhar alunos e a dar seminários — tal qual olheiro no futebol, diz, em busca de talentos para a sua equipa de sonho.
Quando fala sobre o futuro da ciência em Portugal salienta a necessidade de reduzir a burocracia, essa inimiga da inovação — “só faz confusão e só atrapalha, só perdemos tempo. Nós já temos pouco dinheiro e o pouco que temos, ou aquele que vamos conseguindo arranjar, ainda temos problemas para utilizar”, lamentou em entrevista ao SAPO24, quando a desafiámos para pensar a próxima década.
Com mais de 500 publicações científicas e mais de 18 prémios conquistados, tem especial apreço pelas duas bolsas avançadas do Conselho Europeu de Investigação que granjeou em 2008 e 2018, e que juntas trouxeram quase 6 milhões de euros para Portugal.
Entre as distinções recebidas destaca-se ainda a condecoração com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, o Navegador, em 2010.
Em setembro de 2020, Elvira Fortunato foi distinguida pela Comissão Europeia com o Prémio Impacto Horizonte 2020 pela criação do primeiro ecrã transparente com materiais ecossustentáveis.
“Invisible” é o nome do projeto que deu origem a este ecrã feito a partir de óxido de zinco, um material semicondutor de baixo custo e não degradável que entra na composição de produtos como pomadas para bebés ou protetores solares.
Durante cinco anos, entre 2009 e 2014, a engenheira de materiais e a sua equipa desenvolveram esta tecnologia — patenteada pelo Centro de Investigação de Materiais da Universidade Nova de Lisboa (CENIMAT) e pela Samsung —, hoje aplicada em telemóveis, televisores, computadores e tablets.
“Qualquer um desses mostradores tem píxeis para formar a imagem e cada píxel é comandado por um transístor. Os materiais [que desenvolvemos] são exatamente usados na produção desses transístores, que até então eram feitos com silício. Neste momento, estão a ser feitos com estes materiais sustentáveis à base de óxidos metálicos, como é o caso do óxido de zinco, que se pode encontrar num protetor solar ou num creme cicatrizante”, detalhou em entrevista ao Público.
O resultado traduz-se em imagens de maior resolução, obtidas com recurso a tecnologias amigas do ambiente que não desperdiçam tanta energia. Trata-se, pois, de uma revolução na área dos materiais semicondutores.
O prémio de 10 mil euros está longe de outros já recebidos por Elvira Fortunato noutras ocasiões, mas a visibilidade que a distinção lhe trouxe apanhou-a desprevenida, confidenciou ao Expresso.
O projeto "Invisible" foi financiado em 2,25 milhões de euros pelo Conselho Europeu de Investigação, a agência da Comissão Europeia que apoia a investigação científica, nomeadamente através de bolsas. O Prémio Impacto Horizonte 2020 distingue especificamente os projetos científicos financiados por fundos europeus e cujos "resultados tiveram impacto na sociedade”.
Invisible surge depois de Elvira Fortunato e o investigador Rodrigo Martins, seu marido, apresentarem ao mundo o transístor de papel, em 2008.
”Agarro numa folha de papel e numa das faces coloco (ou imprimo) o material condutor. Na outra face imprimo o material semicondutor. No final, fico com um transístor. É tão simples como isso”, explicou ao SAPO24.
Falar de ciência de forma simples é, aliás, uma das características de Elvira Fortunato, a quem “não interessa falar de coisas muito complexas ou difíceis fora do meio científico porque no fim ninguém entende nada, seria uma conversa de surdos-mudos”, partilhou com o Expresso.
O objetivo da “mãe” do chip de papel (também conhecido por Paper-E ou como transístor de papel) sempre foi trabalhar com materiais sustentáveis, abundantes, não tóxicos e com tecnologias amigas do ambiente.
(De referir que quando se candidatou à universidade, a primeira opção de Elvira Fortunato foi Engenharia do Ambiente, mas não conseguiu entrar, acabando por optar por Engenharia Física e dos Materiais.)
“Temos essa preocupação já há muito tempo no laboratório", contou ao SAPO24. "Andávamos a trabalhar com eletrónica flexível, com coisas leves, então porque não utilizar o papel? Para fazer um transístor, que é a unidade de base de um circuito integrado, ou seja, é a peça lego, tenho de ter sempre três materiais. Primeiro, um material condutor, que geralmente são materiais metálicos; depois, um material semicondutor, e nós também utilizamos um outro material que não é o silício, são óxidos metálicos, nomeadamente à base de óxido de zinco; e, por fim, temos que ter um material isolante. Ora, no que diz respeito ao material isolante, porque não utilizar a celulose, o papel?”
"Os eletrões portugueses não são diferentes dos eletrões japoneses ou americanos"
Fazer. Este é o verbo da cientista portuguesa. "Os eletrões portugueses não são diferentes dos eletrões japoneses ou americanos", diz, portanto "nós não temos de ter preconceitos nem de superioridade nem de inferioridade. Se os outros conseguem, eu também hei de conseguir”.
É neste espírito que nos diz que “se quisermos trabalhar na Champions League [da ciência]” há que concorrer a mais projetos, sejam nacionais ou europeus, e fechar contratos com empresas. O financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia é só uma base.
“As oportunidades existem e nós temos é que as agarrar. Aquilo que ainda falta em Portugal, ao nível da ciência e da investigação, é que os investigadores que estão em Portugal, agarrem [as oportunidades] com mais intensidade”, considera.
Reconhece que “não temos as mesmas infraestruturas ou mecanismos que os colegas [no exterior] têm, mas nós chegamos lá. Se calhar temos é de trabalhar mais um bocadinho”.
Apesar de se dizer “otimista”, aponta a burocracia como um dos maiores entraves para a ciência em Portugal.
“Nós já temos pouco dinheiro e o pouco dinheiro que temos — ou aquele que vamos conseguindo arranjar — ainda temos problemas para utilizar. E na investigação, nestas áreas de ponta, o tempo é fundamental. (…) As ideias não nascem só aqui, estão a nascer em todo o mundo ao mesmo tempo, e aquele que chegar mais depressa é o que ganha, é o que faz história. Nós fizemos isso com o transístor”.
A título de exemplo explicou-nos que parte do valor que ganhou com a segunda bolsa do European Research Council, em 2018, no valor de 3,5 milhões de euros, é para investir num “microscópio eletrónico de transmissão muito poderoso”. No entanto, só em janeiro, cerca de um ano depois do arranque do projeto, é que conseguiram fechar o concurso internacional para a aquisição deste grande equipamento. “Portanto, estivemos quase um ano com burocracias. Está bem que estamos a falar de um equipamento muito caro, que custa cerca de 2 milhões de euros, mas a burocracia em Portugal ainda é um problema”.
Já ao Expresso assumiu mesmo que “no limite até preferia menos financiamento, mas um sistema científico com muito menos burocracia”.
"De qualquer das maneiras, eu sou otimista. No final do ano passado, três ministros indicaram três pessoas, eu sou uma delas, para tentar produzir um documento de simplificação de toda esta parte burocrática e esse documento está na sua parte final. Eu estou muito esperançada que muito em breve esse documento esteja cá fora e parte desta burocracia seja eliminada, porque só faz confusão e só atrapalha, só perdemos tempo", partilhou com o SAPO24.
Aliás, quando olha para o futuro da ciência diz que este "é verde", verde de otimismo, de ambiente... "E eu até sou do Sporting", brinca.
Em outubro, quando a Academia sueca se preparava para anunciar o Nobel da Física houve quem avançasse com a possibilidade de Elvira Fortunato ser a galardoada. "É uma especulação", respondeu ao Expresso. “O maior prémio que me podiam dar neste momento a mim e à minha equipa era deixarem-nos finalizar o laboratório de excelência na área da microscopia e materiais avançados”, acrescentou.
“Eu sou engenheira de materiais. Muitas vezes me têm perguntado qual é o grito do laboratório, se é 'Eureka'. Não, no nosso laboratório o grito é 'Funciona'. Como fazemos dispositivos, eles têm que funcionar, se não estão mortos. E há uma coisa que me dá muito prazer naquilo que eu faço, mais na área da eletrónica e dos materiais semicondutores, que é trabalhar com materiais que nada têm a ver com eletrónica e com tecnologias que nada têm a ver com essa área e poder misturar isso e fazer maravilhas — desde usar impressoras que eram usadas para imprimir livros para imprimir transístores ou usar gelatina para fazer transístores. Isso dá-me um prazer muito grande, porque acabamos por não estar a inventar novos materiais, mas a utilizar materiais convencionais para aplicações nada convencionais”.
Talvez por isso tenha dito ao semanário que não trabalha para prémios, apesar de eles continuarem a aparecer.
(Notícia atualizada às 13:31)
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