João Guerreiro chegou à presidência da A3ES - Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior há três anos e garante que "o bigode não é critério de seleção" [o antigo presidente, Alberto Amaral, usava barba, bigode e cabelo comprido].
Licenciado em Geografia, mestre em Ordenamento do Território e o doutoramento em Economia Regional, foi reitor da Universidade do Algarve, onde lecionou diversos anos, durante dois mandatos. E aceitou o desafio do conselho de curadores da Agência para se manter ativo no seio do ensino superior, "que representou quase 30 anos da minha carreira profissional".
Neste momento, o trabalho maior é a avaliação das 97 instituições de ensino superior, públicas e privadas, universidades e politécnicos, a decorrer até final de novembro. Os resultados deverão ser conhecidos ainda em dezembro, no máximo, em janeiro do próximo ano. O ideal, diz João Guerreiro, é que estas instituições tivessem já implementado sistemas de garantia de controlo de qualidade tão assertivos que não precisassem mais da vigilância da Agência.
Nos últimos três anos a A3ES recebeu uma média de 300 pedidos de novos cursos por ano e chumbou cerca de um terço. Ainda assim, há em Portugal 4.400 cursos superiores. Espanha, cinco vezes maior, tem 3.700 cursos e perto de 70 instituições de ensino superior, entre público e privado.
Este ano, 38 cursos ficaram vazios, ou seja, não tiveram um candidato que fosse. Este é um tema preocupante, mas a agência não dispõe de mecanismos para travar o aparecimento de licenciaturas e mestrados, a menos que estes não cumpram os mínimos. Se agora é mau, o pior está para vir. O número de alunos no ensino superior bateu o recorde em 2022/23, com 446.028 inscritos (Espanha ultrapassa os 2,5 milhões), mas vai haver uma inversão da tendência dentro de uma década e algumas destas instituições terão de procurar públicos alternativos para sobreviver.
Mas há outras realidades e foi também sobre elas que falámos, as andanças e mudanças do ensino superior em Portugal, a ligação do ensino secundário com o ensino universitário e do ensino universitário com o mercado de trabalho.
Este ano houve 38 cursos sem um único candidato, uma única inscrição. Que significado atribui a isto?
Esse é um tema que nos preocupa muito, o número de cursos em Portugal. Neste momento, de acordo com o último levantamento que fizemos, temos cerca de 4.400 cursos no país, uma brutalidade.
"Não há estudantes para todos estes cursos [...] Alertamos, mas não temos instrumentos para intervir"
Como é que comparamos com a Europa?
Só tenho, neste momento, a comparação com Espanha, que tem cinco vezes a dimensão de Portugal e tem 3.700 cursos. Portanto, temos um número de cursos excessivo. Esta é a opinião da Agência, mas a A3ES não pode intervir na regulação deste número. O que a agência faz é analisar a qualidade dos cursos e sancionar ou não a sua existência.
Mas pode dar essa nota ao mercado, de que há cursos a mais.
E temos dado. Uma das últimas vezes que fomos chamados à Assembleia da República alertei para isto. A Assembleia da República achou a situação incrível, mas na realidade não há instrumentos para disciplinar isto.
A primeira consequência é que não há estudantes para todos estes cursos. Depois, nota-se alguma concorrência entre as instituições, quer dizer, quando um curso tem êxito num lado as outras instituições tendem a definir cursos nessas áreas, porque percebem que há procura.
No fundo, há um conjunto de situações que nos cabe identificar e, de certa maneira, colocar na praça pública, como as dificuldades e incongruências que esta situação gera. Mas não temos instrumentos para intervir a este nível. Portanto, alertamos.
E o que faz o governo com estes alertas?
Nas licenciaturas públicas a disciplina, de certa maneira, é feita de forma administrativa, através de numerus clausus. Há aqui um princípio de regulação; pode dizer que nos cursos de Filosofia não devem entrar mais do que 'xis' alunos ou que os cursos de Educação Básica devem ser alargados porque vamos precisar de professores no futuro ou que a Medicina pode alargar porque vamos precisar de médicos. E fá-lo dentro daquilo que é a estratégia da própria Administração.
Pode identificar, dos 4.400 cursos, os que existem em maior número?
Dos 4.400 cursos que existem em Portugal, mais de 50% são mestrados. É um mundo e não há alunos, porque se sobrepõem mestrados sobre mestrados e não temos capacidade para os suportar, não temos professores e não temos estudantes.
"Não se justifica que apareça uma média de 300 novas propostas de cursos por ano"
Nestes três anos em que está à frente da A3ES quantos cursos fecharam?
Os cursos em funcionamento dificilmente têm uma decisão do nosso lado para fechar. Normalmente intervimos no sentido de chamar a atenção para eventuais falhas e melhorar. Se quiser encontrar uma taxa de encerramento ou de suspensão, ela é muito marginal, nestes três aos não sei se chegará a uma ou duas dezenas de cursos encerrados por deficiências de funcionamento.
No mesmo período, quantos novos cursos foram submetidos e, desses, quantos foram indeferidos?
Nestes três anos tivemos entre 280 e 320 pedidos de autorização por ano. Mas, admitindo que o sistema de ensino superior estava estabilizado, não se justifica que apareça uma média de 300 novas propostas de cursos por ano.
Mas analisamos todos e acreditamos os que são para acreditar. Aí é que a taxa de não acreditação é elevada; entre os 25% e os 40% não são acreditados. É um valor dessa ordem de grandeza. Mas, para mim, é um espanto continuarem a aparecer tantos novos cursos.
Pedir uma autorização é caro? As universidades são muito ambiciosas e pouco ciosas, é isso?
É, custa 4.500€. Penso que a submissão de novos cursos tem muito a ver com as dinâmicas internas das instituições. As instituições acham que em determinado domínio há um mestrado que não está oferecido e que provavelmente vai ser um êxito e avançam. Muitas vezes têm dificuldade em se disciplinar, em sistematizar aquilo que deve ser submetido ou não.
O que pode levar a Agência a não autorizar um curso?
Os aspetos centrais desta primeira avaliação para os cursos abrirem é a solidez do corpo docente, a sua qualificação, a componente científica desse mesmo corpo docente, as instalações e tudo o que tem a ver com equipamentos e o processo pedagógico: do ponto de vista curricular quais os objetivos daquele ciclo de estudos e que importância tem.
As comissões de avaliação externa avaliam, emitem as suas opiniões, e nós decidimos em função das propostas que emitem.
Concordam sempre com o veredicto das comissões?
Nem sempre concordamos. Nos dois sentidos; quando há propostas que dizem que o curso não deve andar (e nós achamos que tem condições), ou quando dizem que o curso está muito bem (e nós achamos que há deficiências). Não são muitas as vezes que divergimos, mas tem de haver diálogo.
Temos um cuidado extremo na seleção dos professores que fazem parte das comissões de avaliação externa, um elemento crítico da ação da agência, porque não somos nós que estamos no diálogo com as instituições, são colegas nossos.
Por ano, devemos mobilizar cerca de 1.200 avaliadores para os cursos que estão em funcionamento e para os cursos propostos.
"As instituições têm de estar preparadas para abrir as suas portas a outros públicos: idosos, trabalhadores ativos, estudantes de outras nacionalidades"
Os últimos números publicados dizem-nos que há 446.028 alunos inscritos no ensino superior.
Por um lado isso é bom, mas, pelas características demográficas da população portuguesa, temos de ter atenção, porque vai haver uma altura, talvez daqui a dez anos, em que podemos ter uma inversão no que respeita ao número de jovens que vêm do ensino secundário.
A demografia é uma condenação? Como é que as instituições de ensino superior se podem defender?
Não, a demografia não é uma condenação. Não é o facto de a demografia portuguesa ter este cutelo que impossibilita as instituições de alargar os seus horizontes e de compensar essa quebra com outros públicos. Mas têm de se preparar para isso.
"Uma das nossas linhas de discussão com o mundo do ensino superior é essa: se não têm capacidade, associem-se"
As instituições têm de estar preparadas para abrir as suas portas a outros públicos: idosos, trabalhadores ativos que precisam de voltar à escola para melhorar/atualizar as suas competências e conhecimentos, estudantes internacionais de outras nacionalidades.
Penso que há um esforço da parte das instituições, particularmente dos docentes, no sentido de entender de que maneira podem desenvolver as suas opções de formação com novos públicos. E isso não é fácil, mas é fundamental que assim seja, para acompanharmos um pouco aquilo que vai ser a evolução social.
Poderia existir um movimento de fusões ou uma espécie de parcerias publico-privadas, como na saúde?
Transformava a questão na possibilidade de haver consórcios entre as universidades públicas e as privadas. Uma das nossas linhas de discussão com o mundo do ensino superior é essa. Quer dizer, se não têm capacidade, associem-se. É difícil, porque não é uma questão das universidades, é da nossa sociedade. É sempre muito complicado haver associações disto e daqueloutro, pretendemos sempre fazer prevalecer as nossas opiniões, muitas vezes sem tentarmos uma aproximação. Mas isso é uma característica do português e está presente na forma como lidamos com os nossos assuntos.
No último ano letivo havia perto de 70 mil estrangeiros a estudar em Portugal. Não sei quantos portugueses estão no ensino superior lá fora, mas sei que há cada vez menos bolsas.
Para o estrangeiro há bolsas de doutoramento.
Falo de licenciatura e mestrado.
Pois, mas dado o panorama do sistema de ensino superior português...
A justificação é que hoje não há grandes diferenças entre os cursos nacionais e estrangeiros. No entanto, um aluno lá fora consegue estudar e trabalhar para financiar os estudos, fazer contactos para o futuro e estar mais perto de grandes instituições. Dizer que é igual estudar cá e lá fora é um eufemismo.
Está bem, mas está a referir-se à empregabilidade.
E podemos ou devemos dissociar uma coisa da outra, o ensino superior do mercado de trabalho?
Não somos o paraíso, naturalmente que há deficiências e há áreas de ensino que ainda não estão suficientemente desenvolvidas. Por exemplo, a expressão na área interdisciplinar no sistema português é ainda muito diminuta. Temos alguns cursos relativamente interessantes, mas muito poucos.
Porque, digamos, a tradição nas universidades é ter faculdades de áreas temáticas muito segmentadas, o que significa que as inter-relações entre os diversos domínios da ciência têm sido muito pouco explicitadas em novos cursos, em novas opções de formação.
"O Reino Unido é essencial para completar a estrutura de investigação científica de formação superior na Europa. Nos rankings que andam por aí as universidades inglesas aparecem sempre nas primeiras posições"
E isso é bom?
Não temos capacidade de fomentar junto das instituições a criação desses cursos. Mas quando esses cursos aparecem, temos um cuidado especial na sua avaliação e na sua acreditação, se for caso disso.
Não é fácil, porque somos o núcleo que organiza a avaliação. Contratamos professores das instituições todas para formarem comissões de avaliação externa e são esses professores que avaliam que nos propõem uma decisão.
Já vamos avançar neste tema, mas antes queria perguntar-lhe qual o impacto do Brexit no ensino superior, agora que passaram dois anos (um, na prática, por causa da pandemia)?
Penso que num primeiro momento dificultou a cooperação entre as instituições portuguesas e as do Reino Unido. Mas julgo que o próprio Reino Unido está num percurso de tentar ultrapassar as restrições que o Brexit introduziu. Por exemplo, a medida imediata foi a adesão do Reino Unido ao Programa Horizonte Europa, o grande programa de fomento da investigação científica e da inovação da União Europeia.
O Brexit obrigou o Reino Unido a sair e, há uns meses, o Reino Unido negociou a sua reentrada. E a Liga de Universidades Europeias de Investigação fez uma declaração a saudar a reentrada do Reino Unido. Todos nós saudamos, porque há uma capacidade de investigação instalada no Reino Unido que é essencial para, de certa maneira, completar aquilo que é a estrutura de investigação científica de formação superior na Europa. Aliás, nos rankings que andam por aí as universidades inglesas aparecem sempre nas primeiras posições, como as universidades americanas.
O Reino Unido era o destino mais procurado pelos portugueses para estudar no estrangeiro.
Agora o ensino é mais caro e a questão dos vistos é premente. Mas, é o que dizem as sondagens que têm sido feitas no Reino Unido, a maior parte dos cidadãos acredita que o Brexit foi um mau negócio, e não sei se no futuro não poderá haver uma reavaliação da sua posição e a reentrada na União Europeia. Até pelos conflitos gerados na Irlanda do Norte.
"Enviamos para o exterior metade dos estudantes que recebemos"
Que conselho daria a um jovem que está indeciso entre estudar em Portugal ou no estrangeiro?
O que posso aconselhar é que na primeira fase dos seus estudos, licenciatura e mestrado, fique em Portugal. Aí, claramente, temos muito boas instituições, públicas, privadas, politécnicos e universidades.
Não obstante, aconselhava a que explorassem bem os mecanismo que há para fazerem estágios intercalados no estrangeiro. O Programa Erasmus é um potencial enorme que é colocado à disposição dos alunos. Mas temos ainda uma fraca adesão, quando comparada com os estudantes que escolhem vir para Portugal.
Enviamos para o exterior metade dos estudantes que recebemos. Também porque há aqui questões de ordem económica, a bolsa que o programa Erasmus dá não chega, tem de haver uma bolsa familiar e nem todas as famílias conseguem isso. Por isso é que há muitas instituições que têm elas próprias bolsas de complemento à bolsa Erasmus para fomentar essa ida para o estrangeiro.
Portanto, o meu conselho é fazer licenciaturas e mestrados em Portugal, mas fazer estágios de seis meses fora na licenciatura e seis meses fora no mestrado. Depois, no doutoramento, isso vão para o mundo, onde normalmente encontram soluções mais interessantes, uma mistura de nacionalidades e de culturas, que também contribui para a formação dos jovens.
"A forma como os estudantes são integrados nas atividades de formação e investigação no seio das instituições não estava a ter um desempenho satisfatório"
O ensino superior evoluiu desde o 25 de Abril ou continuamos a ensinar da mesma maneira, como se não tivéssemos entrado na era digital, não houvesse Internet ou inteligência artificial?
Posso, talvez, voltar atrás e dizer que temos uma carga tradicional muito pesada na estruturação das instituições de ensino superior. Isso sim. Está a ser difícil encontrar soluções transversais que possam de certa maneira simplificar, sobretudo nas velhas universidades, as tais que têm faculdades muito segmentadas e muito especializadas. Mas tudo o que são instituições novas, mesmo institutos politécnicos, já aparecem com outra dinâmica.
A A3ES fazia uns estudos prospetivos. Ainda faz? O que indicam?
Sim. Publicámos o último em 2022. Posso dizer-lhe que identificámos nos últimos anos questões do foro pedagógico, dos métodos de ensino. A forma como os estudantes são integrados nas atividades de formação e investigação no seio das instituições não estava a ter um desempenho favorável e satisfatório, do nosso ponto de vista. E lançámos uma discussão pública sobre inovação pedagógica.
Pedimos a um conjunto de colegas nossos que fizessem um levantamento, referenciando os casos de sucesso em Portugal e no estrangeiro. Fizemos uma discussão em torno disto, publicámos o relatório que eles produziram e, sobretudo, porque era aquilo que nos interessava, identificámos critérios para poder avaliar as instituições e os cursos de acordo com esta temática e incorporámos estes critérios nos guiões das avaliações que fazemos.
Porque, além dos cursos, a A3ES avalia as instituições de cinco em cinco anos, a última foi em 2017.
Fazemos a avaliação dos cursos ao longo de cinco anos e no fim desses cinco anos avaliamos as instituições. A última avaliação tinha sido feita em 2017 e iniciámos na última semana de setembro a nova avaliação institucional, que está agora na rua. Temos à roda de 100 instituições de ensino superior, 97, para ser preciso, e a nossa expectativa é que a avaliação termine a 30 de novembro.
Teremos resultados em dezembro/janeiro, que nos vão dar, de certa maneira, uma fotografia daquilo que é a estratégia de desenvolvimento do sistema de ensino superior. Isto para dizer que no domínio da inovação pedagógica já há nos guiões de avaliação uma componente importante relativamente aos estudantes e aos processos e métodos de ensino seguidos nas instituições. Porque isso parece-me central.
Há diferenças entre quem faz a avaliação de cursos e quem faz a avaliação institucional?
No caso da avaliação institucional os avaliadores são pessoas que tiveram experiência de gestão de instituições de ensino superior ou que estiveram comprometidas em projetos de avaliação de qualidade das instituições de ensino superior. E há critérios de incompatibilidade, de igualdade de género, de distanciamento - por exemplo, um professor de uma instituição do Porto não entra na avaliação de outra instituição do Porto. Mesmo com a escolha dos membros internacionais temos muito cuidado, porque a cooperação internacional é muito intensa.
Enfim, este mundo é muito pequeno, na realidade, e o mundo português ainda mais pequeno é. Portanto, é difícil conseguirmos aplicar estritamente estas regras, mas tanto quanto possível não tem havido conflito de interesse. Enfim, há casos. Quando nomeamos uma comissão externa a instituição tem o direito e o dever de nos dizer se há elementos que podem estar em conflito por 'xis' motivos. E nós pesamos as razões e aceitamos ou não aceitamos.
"Não somos a ASAE do ensino superior"
As instituições não gostam muito de ser avaliadas. Porquê?
Pois... Temos um processo de avaliação consensual, as instituições sabem quais são os instrumentos que utilizamos, porque quando os criamos discutimo-los com elas. E os avaliadores são professores, docentes universitários ou do politécnico, estamos no mesmo meio.
Todas as comissões de avaliação externa têm um membro internacional, que nos casos das instituições maiores é normalmente também o presidente da comissão, para haver maior distanciamento.
O que pedimos aos avaliadores é que, tendo em atenção as suas experiências e, sobretudo, tendo em atenção o projeto particular de cada instituição de ensino superior - não queremos normalizar as instituições, queremos é valorizar aquilo que de específico cada uma tem no seu ADN -, a avalie.
Mas a avaliação dos cursos e das instituições faz-se pelo mundo, não é uma característica portuguesa. E tem uma caráter muito pedagógico, no sentido de pôr o dedo na ferida no funcionamento das instituições, chamar a atenção para os aspetos que não estão a funcionar bem. Isso é uma ajuda que prestamos às instituições no sentido de melhorarem o seu desempenho.
A A3ES é a ASAE do ensino superior?
Não tem um sentido de fiscalização, não somos a ASAE do ensino superior. Não queremos perverter o programa de desenvolvimento de cada instituição, o que queremos é saber de que maneira está a cumprir esse programa nos aspetos típicos: formação de docentes, produção de conhecimento, internacionalização, relação com as comunidades, projetos com as comunidades, abertura ao meio envolvente. A avaliação tem um sentido construtivo.
Aliás, a Agência também está num processo de avaliação. Tivemos cá uma comissão de avaliação externa da Federação Internacional do Ensino Médico. A partir de 2024 os estudantes e diplomados dos cursos de medicina só terão entrada livre nos Estados Unidos da América se a A3ES for reconhecida pelo organismo internacional que faz a avaliação das agências. Estamos na fase final, eventualmente há uma ou outra características que poderão ainda não estar dentro dos critérios deles.
Ainda sobre a empregabilidade, volto a perguntar se as saídas profissionais são importantes e se universidades têm isso em conta nos cursos e na relação com a comunidade e as empresas?
Acredito que o estudante que passa numa universidade ou num politécnico tem capacidade suficiente para se refazer, para se reformatar e encontrar a sua linha de orientação e de inserção na sociedade, eventualmente diferente daquilo que foi a sua formação base.
Não há regras, mas o que a formação do ensino superior permite é dar justamente essa abertura de espírito e essa inserção no mundo moderno que permite encontrar soluções, explorar aspetos da sua formação. Se negarmos esse papel, estamos de certa maneira a perverter ou a negar aquilo que é a função das instituições de ensino superior, que é dar formação, mas é também orientar os jovens para poderem pensar pela sua cabeça, dar-lhes essas ferramentas.
Cada vez mais há nas instituições de ensino superior - aqui indistintamente universidades e politécnicos -, disciplinas de empreendedorismo, de ética, de inserção social, de liderança, de outro tipo de componentes e competências transversais que podem ser fundamentais na vida do estudante quando se lança na vida ativa.
"Estudamos, estudamos e depois mete-se na gaveta e nunca mais ninguém vai buscar os resultados desses estudos"
Esta vertente também é tida em conta pela A3ES na avaliação das instituições?
Quando fazemos a avaliação de cursos e, sobretudo como agora, das instituições, avaliamos justamente a abertura que as instituições têm ao exterior. Porque achamos que as instituições têm como função a formação dos estudantes, mas também a produção e disseminação de conhecimento. Isto é claro.
E isso tem a ver com projetos conjuntos, os projetos financiados, internacionalização. Tem a ver com a forma como as instituições integram os estudantes nesses processos, que é fundamental. A tradição é ter umas aulas e acabou-se. Mas é fundamental que a instituição tenha a abertura para captar os estudantes e depois dinamizar aquilo que é o mundo hoje, os relacionamentos com o mundo empresarial, com o mundo autárquico. Não estamos a inventar nada. Até o governo recorreu às instituições de ensino superior para definir a localização do novo aeroporto, por exemplo.
Mas se há coisa que não falta são estudos sobre a localização do novo aeroporto, 50 anos de estudos.
Pois, acontece fazerem-se estudos e meter tudo na gaveta. Estudamos, estudamos e depois mete-se na gaveta e nunca mais ninguém vai buscar os resultados desses estudos, que são normalmente fundamentais para haver uma sequência. Esquecemos tudo o que está para trás e começamos de novo. Mas isso é quase um desporto nacional [ri].
Há hoje uma diferença entre ensino superior privado e público?
Diria que há uma diferenciação grande no seio do ensino privado, onde há instituições muito fortes, que se podem equiparar com as instituições públicas e há instituições públicas que se podem comparar com as instituições privadas.
Agora, no seio do ensino privado há um segmento de muito pequenas instituições que tem dificuldade, pela sua escala, em singrar neste ambiente do ensino superior. Porque uma instituição de ensino superior não é só o edifício e professores com doutoramento, eventualmente. É investigação científica, é ambiente de prospetiva para equacionar problemas, discutir com os estudantes aquilo que está a acontecer no mundo, é fazer projetos com a comunidade e começar a integrar os estudantes nos problemas da comunidade e também nos seus projetos de investigação interna. As instituições muito pequenas, pela sua dimensão, não têm capacidade para desenvolver as atividades que as maiores têm.
"Universidades e politécnicos têm de ter cursos diferenciados [...] Ambos terão de ir adaptando os seus currículos, isto não é uma decisão administrativa"
Acontece o mesmo em relação às instituições que estão nas grandes cidades e as que estão mais no interior?
O país é muito desigual. Temos valorizado em excesso - a culpa é nossa, da sociedade - a concentração nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto; pessoas, atividades desportivas, lúdicas, culturais, até de projeção internacional. Há uns anos falava-se na macrocefalia de Lisboa, hoje tem de se falar na macrocefalia de Lisboa e do Porto.
Há pouco falava do numerus clausus... Se for abolido, temos um fluxo de jovens que agora está a estudar em Castelo Branco, Covilhã, Portimão, Beja que, provavelmente, vai querer optar um uma das grandes áreas metropolitanas, onde as solicitações são enormes. Isso pode esvaziar o interior.
As instituições de ensino superior fazem um grande esforço nas áreas do interior. Há cidades que se calhar não teriam tido o desenvolvimento que tiveram se não tivessem um instituto politécnico ou uma universidade nessa cidade.
Mas a solução do problema não passa só por aqui, as instituições sozinhas não conseguem inverter esta tendência. Tem de haver da parte das autarquias, dos privados, incentivos à instalação de atividades, tem de haver também serviços públicos de qualidade. Tem de haver bom senso e mobilização global de públicos e privados para que estas instituições tenham êxito.
As universidades, ou o Conselho de Reitores, querem que os seus cursos sejam diferenciados dos politécnicos. Faz sentido, os cursos do ensino politécnico têm menos qualidade, o ensino é pior?
O ensino é bom e tem qualidade, porque é acreditado por nós, e se acreditamos os cursos é porque são bons.
A minha posição é que universidades e politécnicos têm de ter cursos diferenciados, o politécnico mais profissional, para resolver problemas de funcionamento mais prementes da sociedade, e a universidade mais ligados à investigação científica e conceção de soluções no sentido mais lato.
O aspeto central do meu comentário é que a sociedade portuguesa tem necessidade de perfis diferenciados, não precisa de cursos padronizados, mas é importante ter todos.
Isso não é ter nas universidades cursos de primeira e nos politécnicos cursos de segunda?
Não, essa é uma discussão que já foi feita há vinte anos, hoje não faz sentido. O que faz sentido é universidades e politécnicos reorientarem a sua formação. Porque da mesma maneira que alguns politécnicos enveredaram por áreas de ensino mais científicas - e há politécnicos com centros de investigação com classificação de excelente -, também as universidades enveredaram por cursos em áreas mais profissionais.
"Os dois níveis de ensino [superior e secundário] deviam comunicar e colaborar muito mais intensamente do que estão a fazer"
E como é que isso se disciplina?
Para mudar, ambos terão de ir adaptando os seus currículos e métodos de trabalho. Isto não é uma decisão administrativa, tem de haver uma reorientação de ambos, mas todos são importantes.
"[Nos gastos com a Educação] Portugal está numa posição muito baixa em relação a outros países"
Como convivem o ensino superior e o ensino secundário em Portugal, existe ou devia existir uma ligação mais forte entre os dois?
Esse é um problema real, o sistema de ensino superior e de ensino secundário não convivem, não se relacionam intensamente. Designadamente a componente profissional do ensino secundário. Se verificar, as relações que há entre os dois graus de ensino são muito pontais. Fazem-se dias abertos para os estudantes do secundário irem às universidades e ponto final. E não devia ser isso. Os dois níveis de ensino deviam comunicar e colaborar muito mais intensamente do que estão a fazer.
Existe um problema de financiamento no ensino em Portugal?
Existe. É um problema transversal aos diversos países da Europa. Há problemas em França, há problemas no Reino Unido, há problemas sobretudo nas instituições que são financiadas quase exclusivamente através de fundos públicos, através dos orçamentos dos respetivos Estados. Mas, comparando os dados da OCDE sobre gastos com a Educação, Portugal está numa posição muito baixa em relação a outros países.
"Pretendemos distinguir as instituições que nos últimos anos não tiveram cursos chumbados, que têm grupos internos de avaliação de qualidade"
Qual o seu grande desafio para a Agência?
O meu grande desafio é reduzir ao máximo o número de propostas de cursos que não são positivamente avaliados. Isto quer dizer que fomentamos, no nosso diálogo com as instituições, a definição de critérios e a adoção pelas instituições desses critérios. Não é um processo de imposição, é um processo de consensualização.
O ideal era que, num estado avançado, a agência deixasse de existir, porque as instituições assumiam para si essa função de avaliar e validar as suas produções. Esse seria o objetivo.
Na avaliação institucional que estamos a fazer pretendemos distinguir as instituições que têm essa capacidade, que nos últimos anos não tiveram cursos chumbados, que têm um conjunto de cursos estabilizados, que têm grupos internos de avaliação de qualidade, que têm instrumentos específicos e sistemas internos para garantir a qualidade do seu funcionamento.
O nosso objetivo é que essas instituições possam ter um relacionamento diferente com a Agência e que não precisemos de manter esta vigilância, este acompanhamento. Há muitas agências que só fazem esta avaliação institucional e, quando acreditam a instituição, a instituição passa a ter autonomia para fazer o seu desenvolvimento. Isso era o ideal.
Para terminar, quem foi o pior ministro da Educação desde o 25 de Abril?
Ui, sei lá. Posso dizer alguém do início dos governos democráticos, talvez.
Alguém que já não seja vivo e não possa levar a mal... É difícil fazer esta avaliação?
Não. Acho que os ministros da Educação, ou aqueles que tiveram incidência no Ensino Superior, tiveram iniciativas positivas e negativas. Se fizer a pergunta ao contrário, quem foi o melhor ministro da Educação, declaradamente dizia o professor Mariano Gago.
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