O fim de semana de 10 e 11 de novembro foi de agitação para Alexandra Nascimento. Não foi o mau tempo ou as notícias na televisão, muito menos os resultados desportivos, que lhe inquietaram dias normalmente de repouso e tranquilidade. Foi um documento do Ministério da Educação (ME).

Alexandra é uma das mães que optaram pelo Ensino Doméstico (ED) para os seus filhos, tipo de ensino definido pelo ME como “aquele que é lecionado, no domicílio do aluno, por um familiar ou por pessoa que com ele habite”. Não indo à escola nem sendo acompanhada pelo corpo docente, a criança tem o seu percurso formativo ao cargo dos encarregados de educação, normalmente os pais. Como tal, a jurista fez os ajustes necessários para conseguir conciliar a sua carreira profissional com a responsabilidade que assumiu pela educação dos quatro filhos.

No entanto, apesar poderem ser ensinados em casa durante toda a escolaridade obrigatória, os educandos não só necessitam de estar matriculados no agrupamento de escolas mais próximo, como não deixam de ser avaliados nessas mesmas instituições, para demonstrar que têm sido alvo de uma educação consonante com o programa curricular. Por isso mesmo, fazem provas de equivalência a todas as disciplinas a cada final de ciclo, ou seja, no 4.º, no 6.º e no 9.º ano, sendo que neste caso algumas dessas avaliações são substituídas por provas finais de ciclo (Português e Matemática). Quanto ao Ensino Secundário, vão a exames nacionais com o estatuto de autopropostos e também têm de prestar provas de equivalência para cada cadeira prevista no curso que escolheram na matrícula, seja ele científico-humanístico, artístico ou tecnológico.

Desde o pequeno Tomás, que nas suas cinco primaveras ainda está em idade pré-escolar, até Vicente, que com nove anos já "fará o exame do final de ciclo para o ano", passando pelos gémeos Eva e Mateus, com sete anos, Alexandra Nascimento tem conseguido dar resposta ao desafio de fazer as vezes de professora e de preparar os rebentos para as avaliações. Contudo, 2019 permanece para si uma incógnita.

Procurando modernizar o aparelho educacional e dar respostas às diferentes necessidades dos alunos, o Governo promulgou dois diplomas, os Decretos-Lei 54/2018 e 55/2018, no sentido de tornar a escola mais inclusiva e de dotá-la de autonomia e flexibilidade na forma como gere os currículos, respetivamente. Contactada pelo SAPO24, fonte do Ministério da Educação explica que o segundo foi criado tendo “como objeto o estabelecimento do currículo dos ensinos básico e secundário, os princípios orientadores da sua conceção, operacionalização e avaliação das aprendizagens, de modo a garantir que todos os alunos adquiram os conhecimentos e desenvolvam as capacidades e atitudes que contribuem para alcançar as competências previstas no Perfil dos Alunos à saída da Escolaridade Obrigatória”.

O Ministério defende que o intuito do documento é garantir “equidade entre todos os alunos através de Aprendizagens Essenciais”, e que o mesmo respeita “a decisão dos encarregados de educação que optam pelo Ensino Doméstico”. É por isso que, nesse mesmo diploma, vinha prevista a regulamentação do ED através de uma portaria [acto do poder administrativo, que a Constituição atribui exclusivamente ao Governo, que é aprovado por um ou mais ministros e que regula em pormenor um determinado assunto], agora revelada pela Secretaria de Estado da Educação e em fase de audição. Esta contém diligências a serem implementadas só no próximo ano letivo, mas que, apesar da aparente boa vontade do ME, mereceram uma reação negativa imediata por parte das famílias por serem consideradas atentatórias quanto à própria natureza do Ensino Doméstico.

Educação Doméstica em Portugal
Educação Doméstica em Portugal créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

A portaria que tudo muda

No documento da portaria a que o SAPO24 teve acesso, são várias as medidas patentes que denotam uma regulamentação mais restritiva em relação ao Ensino Doméstico. Aquela que promete trazer maior discórdia é a que pretende alterar as condições de acesso a esta modalidade. Atualmente, para optar pelo ED, os pais precisam apenas de assinalar a opção no boletim de matrícula, mas o Governo propõe agora ser necessário que o diretor da escola da área de residência da criança autorize a decisão, tendo o poder de indeferir o pedido e fazer com o aluno se matricule no ensino regular.

Os critérios para aceitar ou negar a solicitação das famílias não se encontram completamente claros, mas o documento menciona algumas condições de acesso. No ato de matrícula, será necessário explicitar quais as razões que levaram à opção pelo ED, quem é o encarregado de educação e quem é o responsável educativo, ou seja, quem fará de professor - papéis frequentemente tomados pela mesma pessoa mas quem têm de ser declarados -, somando-se ainda “uma entrevista ao aluno, na presença do encarregado de educação, mediante convocatória do diretor”.

A estas justificações, acrescerá a obrigatoriedade do responsável educativo de ter, pelo menos o grau de licenciatura - não sendo obrigatoriamente em Educação -, verificado na apresentação de um certificado de habilitações. Esta representa outra profunda alteração, já que, conforme vem sendo legislado desde 1977, para ensinar os filhos é preciso ter, pelo menos, o ciclo de ensino seguinte. Ou seja, para ensinar os filhos no ensino primário os pais precisam de ter o 6º ano, para lecionar até ao 2º ciclo precisam de ter concluído o 9º ano, para formar crianças no 3º ciclo necessitam de ter o secundário e só para ensinar neste último patamar é que precisam de ter formação superior.

Para além destas contingências, todo o processo estará dependente da “celebração de um protocolo de colaboração entre a escola de matrícula e o encarregado de educação”. Neste acordo, a ser renovado anualmente, têm de ficar definidas as aprendizagens essenciais para o aluno e as formas que a escola terá de as acompanhar, o que inclui sessões presenciais com aluno e o encarregado de educação e a apresentação de um portfólio com o trabalho desenvolvido em casa, que será avaliado por um professor-tutor designado. Este novo modelo vem complementar todas as provas de avaliação já acima referidas e, em contrapartida, o protocolo permite às famílias em ED utilizar espaços da escola, como o centro de recursos educativos e a biblioteca.

A portaria refere ainda que caso o protocolo de colaboração não seja cumprido ou se se verificar “insucesso continuado do aluno, por incumprimento das condições que garantam a aprendizagem”, o diretor do agrupamento tem autorização para “proceder ao cancelamento da autorização de matrícula”. Para tal, tem um prazo de 10 dias. A fazê-lo, o encarregado de educação é notificado que o aluno passa a ser obrigado a frequentar o ensino presencial. O que não é explícito no documento é se este parecer pode ser tomado a qualquer altura do ano letivo, sendo que, se sim, os alunos podem estar a estudar em casa e no dia seguinte terem de ir para escola pois o texto prevê que a decisão tem efeitos “a partir do dia útil seguinte ao da respetiva receção”.

“Querem acabar com o Ensino Doméstico de forma encapotada”.

Este pacote de medidas já mereceu uma reação das famílias em ED, nomeadamente da Associação Nacional de Pais em Ensino Doméstico (ANPED), que disse estar “disposta a combater esta proposta com todas as suas forças”. Numa nota enviada ao SAPO24, a associação, da qual Alexandra Nascimento faz parte enquanto vice-presidente, considera que a portaria representa “a total ausência de cooperação e apoio” ao propor “uma extensa lista de mecanismos sancionatórios e penalizadores, que não respeitam nem os direitos das famílias, nem salvaguardam o superior interesse da criança.”

Posto que a legislação atual fiscaliza terceiros - de escolas a instituições - e não famílias, a ANPED denuncia que “inverter esta premissa é considerar que os pais não são idóneos” e que são "potenciais abusadores”, passando as famílias a serem encaradas como “um grupo de risco que precisa de ser fiscalizado”. Esta situação, para a associação, significa “não só um enorme retrocesso na liberdade e nos direitos há muito consolidados, como admite que o Estado se pode substituir à família, o que viola os princípios constitucionais que dão primazia à família no direito à escolha na educação dos filhos”.

As maiores críticas que a ANPED apresenta centram-se na ausência de critérios definidos para as decisões dos diretores e dos professores-tutores, tanto na apreciação das matrículas como na avaliação do trabalho efetuado pelos alunos. Para além disso, denota a associação que a portaria demonstra uma natureza contrária ao projeto de autonomia do Decreto-Lei 55/2018, pois “retira ao Ensino Doméstico toda a flexibilidade que o caracteriza, acrescendo às avaliações já previstas, procedimentos obrigatórios como: entrevistas, protocolos, visitas presenciais à escola, sujeição a pareceres e relatórios que podem determinar a passagem coerciva do aluno ao regime presencial.”

Outra questão legal que a ANPED aponta é a “atribuição de caráter excecional ao ED”, o que associação declara não respeitar a vontade dos prévios legisladores que a consideraram uma opção de base, tal como optar pelo ensino público ou particular. A mesma fonte do Ministério da Educação confirmou ao SAPO24 que o Ensino Doméstico é encarado como “uma modalidade de ensino de caráter excecional, disponibilizada na sequência de solicitações de famílias, que pretendem escolher os métodos de ensino para os seus filhos, dispensando a frequência de estabelecimentos de ensino disponíveis para todas as crianças e jovens em Portugal”.

Educação Doméstica em Portugal
Educação Doméstica em Portugal créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

“Eles querem acabar de forma encapotada com o Ensino Doméstico”, diz Alexandra Nascimento ao SAPO24. Falando a título pessoal, a jurista acusa o Governo de “tentar esvaziar o projeto de ED”. No seu entender, se antes as famílias tinham uma certa liberdade, porque apenas precisavam de se preparar para as provas, o que lhes permitia “respeitar os ritmos e fazer aprendizagens de acordo com a maturidade e os seus interesses [da criança]”, isso deixa de ser possível, pois passa a ser necessário fazer um acompanhamento periódico.

Para além da mudança dos métodos, o que mais a assusta no novo diploma é estar “nas mãos de um professor e de um diretor de agrupamento”, ambos dotados de “poder discricionário” e que “a qualquer momento, se considerarem que não está a correr bem, podem anular a matrícula e mandar a criança no dia seguinte para a escola”. A jurista assume que o processo nunca poderia ser imediato porque existem mecanismos de recurso, mas teme o choque na mudança, pois defende que “uma família que se prepara para fazer ED não passa pelo mesmo que alguém que tem o filho na escola, porque é preciso ter a vida estruturada e organizada, e não se pode estar todos os anos na dependência de saber se se vai continuar ou não o projeto educativo.”

Sendo parte da ANPED, a vice-presidente da associação tem sido uma das figuras a interceder junto da Direção-Geral da Educação para aproximá-la do ED. Todavia, Alexandra Nascimento considera esta portaria uma “desonestidade intelectual” que pretende “passar por cima de todo o regime legal que até então vigorou”, sendo que “o mais justo seria que fosse feita por lei e que tivesse o respetivo debate parlamentar.”

O SAPO24 contactou o Ministério da Educação para averiguar em que trâmites se deu a construção desta portaria. A fonte do órgão ministerial respondeu que a tutela “entendeu ser vantajoso ouvir todos aqueles que se constituíram como interessados no procedimento, garantindo assim uma auscultação alargada sobre o conteúdo”, acrescentando que “a regulamentação está assim em fase de audição das entidades que se constituíram como interessadas no procedimento”. De resto, a mesma fonte reitera que “o ME, através dos serviços competentes da Direção-Geral da Educação, tem estado sempre recetivo, quando solicitado, a ouvir as associações de pais e movimentos em torno do ensino doméstico”. Contudo, Alexandra Nascimento não foi a única interveniente a considerar o processo pouco transparente.

Tendo o Governo lançado em julho o processo de consulta pública que antecedeu a portaria, Inês Peceguina estranhou que neste não constasse já um documento com as medidas programadas. Investigadora doutorada em Psicologia de Desenvolvimento, vice-presidente da Associação Movimento Educação Livre (MEL) e mãe de três crianças em ED, Inês diz que esta “não é uma situação habitual” porque “quando há um período de discussão, tendencialmente há um documento sobre o qual se discute".

O resultado foi que, segundo a investigadora, as partes interessadas em participar no processo não sabiam exactamente para o que estavam a contribuir porque não conheciam "quais as questões que iam constar na portaria". Assim, conclui, não foram dados “poder ou voz às famílias neste processo”, o que resultou num “desfasamento entre a proposta e a realidade da prática do ED”. A seu ver, as novas regras “vêm prejudicar, fragilizar, pôr em causa, e, de certa forma, elitizar a situação, com a questão da licenciatura”.

Entretanto, esta não é a única prática dúbia denunciada pela investigadora, neste momento a concluir um pós-doutoramento no ISCTE. Segundo Inês, “muitas das questões que estão agora na portaria já vinham sendo pedidas pelos diretores”, crendo a investigadora que “as escolas já tiveram acesso a algumas informações”. De base a esta tese estão múltiplas denúncias à MEL de famílias que já este ano “assinaram protocolos a achar que eram obrigatórios” ainda antes do documento ser revelado, considerando Inês que tal situação “não pode acontecer antes das coisas estarem claras”, porque “independentemente das intenções, a forma como está a ser efetivada no terreno não é positiva nem democrática”.

Inês Peceguina espera, no entanto, que venham a ser consideradas as reações à portaria dos encarregados de educação que optam por ED para a promulgação. "Nós [MEL] fomos à Direção-Geral da Educação para entregar um documento com a nossa reação. Eles registaram-no e anotaram as questões que salientámos na entrega desse documento". A investigadora diz saber que houve uma “grande adesão das pessoas, quer através da associação, quer individualmente, com um discurso muito alinhado”, pelo que espera “que isso tenha algum efeito".

Quer seja encarada como uma iniciativa necessária ao correto enquadramento desta modalidade educativa pelos legisladores ou como castradora pelos seus praticantes, é inegável que esta portaria vem trazer mudanças significativas ao Ensino Doméstico. Mas o que é que estas alterações vêm colocar realmente em causa? O que caracteriza este tipo de ensino e o difere dos restantes?

Uma alternativa, não uma negação da escola

O Ensino Doméstico não é uma invenção moderna, estando previsto numa lei de 1949, vigorava então o Estado Novo, que o isentava de fiscalização estatal. No entanto, a adesão a esta modalidade tem tido um movimento em crescendo. Segundo o ME, matricularam-se 909 crianças em Ensino Doméstico neste ano letivo de 2018/19. Uma gota num oceano, é certo, já que apenas representam 0,05% da população matriculada na escolaridade obrigatória - eram 1653740 alunos em 2017, segundo os dados do PORDATA. Contudo, são uma gota cada vez maior: no ano de 2012/13, eram apenas 63 os alunos registados neste tipo de ensino, ou seja, hoje há aproximadamente 14 vezes mais o número de matrículas.

Os motivos para a adesão variam também, como refere Álvaro Ribeiro, investigador na Universidade do Minho, que há dez anos se dedica a acompanhar a temática do Ensino Doméstico. A sua experiência levou-o a conhecer mais de 100 casos, estudando-os através de entrevistas, questionários e observação. Com esta bagagem, Álvaro Ribeiro diz ser possível identificar três grupos principais, com diferentes abordagens para o mesmo fim.

De um lado, o investigador aponta para famílias “progressivo-libertárias”, que seguem uma forma de ensino mais livre porque encaram a criança como “um adulto em miniatura e tentam protegê-la ao máximo na lógica da autodeterminação da pessoa”, ou seja, é ela que vai construindo o seu projeto escolar através de “livre experimentação”, enquanto os pais estão lá mas “observam à distância e agem apenas quando entendem que devem agir”.

Do outro, estão famílias “tradicionalistas, de caráter religioso, essencialmente cristão”. Estas seguem uma “doutrina guiada, mas não imposta” onde “defendem que é um direito dos pais assumirem a educação dos filhos”, fazendo-o de forma estruturada com textos e exercícios, e ensinando normas e condutas.

Há ainda todo um espetro de casos “ecléticos”, que recorrem a métodos mais ou menos próximos aos da escola, onde se procura “estimular os conflitos cognitivos”, não doutrinando mas confrontando com conhecimento, e dando “uma maior ênfase à criatividade”.

Alexandra Nascimento atesta esta diversidade, mencionando que no lado libertário existe o “unschooling”. Esta prática, como o nome indica, é uma vertente que pouco ou nada segue a escola, que não usa manuais e baseia-se no ensino livre. A jurista admite que gostava de chegar a esse ponto, mas não tem coragem porque, sendo mãe de quatro, tem de observar os diferentes ritmos dos seus filhos e não consegue estar descansada se “não der alguma estruturação ao trabalho”.

Porém, independentemente das crenças religiosas e/ou ideológicas que separem estas famílias, Álvaro Ribeiro menciona um ponto em comum: todas consideram que a escola “não educa [a criança] para o tipo de pessoa que entendem que devia ser”, e que encara os alunos "como a linha [de produção] de uma fábrica”. Então, decidem “desenvolver um projeto educativo próprio”.

Inês Peceguina vai mais longe e identifica um dos grandes problemas do atual aparelho escolar, que com o tempo que ocupa às crianças, as monopoliza, descurando outras dimensões de vivência. “A sociedade assume que a criança quando chega aos 6 anos deixa de ser criança e passa a ser aluno, mesmo dentro de casa”, diz a investigadora. De resto, a leitura que Inês faz da escola é de “uma sala de aula que está montada de uma forma tradicional, com um professor enquanto transmissor de conhecimento e os alunos enquanto recetores”, mantendo-se uma “visão muito passiva da pessoa que aprende”. Para além disso, a investigadora considera que “há um foco muito grande, não na aprendizagem ou no conhecimento, mas nas classificações”.

Será então o aumento de matrículas em ED resultante de uma insatisfação crescente com o atual modelo de escola? Para Alexandra Nascimento, não necessariamente. Apesar de criticar uma “aprendizagem muito expositiva”, que “não dá igual importância às várias componentes da criança”, a jurista frisa que o objetivo “nunca é comparar a escola com o ED, até porque não são realidades comparáveis, são apenas escolhas alternativas”. Ao invés, a vice-presidente da ANPED pensa que a razão seja talvez “a procura, por parte das famílias, de um modelo que seja mais flexível, que permita aos miúdos uma aprendizagem mais natural”.

Fazendo uma caracterização mais lata do que é o método do Ensino Doméstico, Álvaro Ribeiro observa que este “busca estímulos lentos e estáveis, profundos, de longa duração”. A esta lógica é central o conceito de “aprendizagem informal”, em que — considerando que “dois terços das aprendizagens que fazemos na vida são feitas informalmente e tendencialmente de forma inconsciente” — as famílias procuram que as crianças aprendam a brincar, e que essa informalidade “seja rica e muito estimulante”. Entretanto, o investigador refere também que mesmo nos casos de famílias que seguem um modelo mais próximo ao da escola, estas ainda assim tentam que as “aulas” sejam mais plurais e procuram vários currículos estrangeiros para complementar o português. 

Outra característica de base ao Ensino Doméstico, refere Alexandra Nascimento, é o respeito pelos ritmos das crianças pois “não existe aprendizagem coerciva. Eu só posso aprender quando estou interessada ou sinto necessidade de aprender sobre um tema”. É nesse sentido que, no seu percurso na Psicologia do Desenvolvimento, Inês Peceguina veio a verificar que, para as crianças, “a janela temporal para um conjunto de competências é muito maior do que aquela que está relatada”. O que isto significa é que, por exemplo, há crianças que aos cinco anos têm mais à vontade com matemática e outras com a alfabetização. Em cada caso, o Ensino Doméstico procura então incentivar o tema que mais lhes interessa, sem esquecer os outros. Durante esse processo, a investigadora evidencia o papel dos pais “não enquanto professores, mas orientadores”, o que obriga a estar “disponível, atento, observar e ouvir as perguntas que eles fazem”. “Eles fazem uma pergunta e nós não damos só a resposta, vamos com eles explorar, ampliar e trazer mais questões - esse é o papel”, descreve Inês.

Educar a criança respeitando a sua individualidade e atendendo às suas várias dimensões é algo que a escola não consegue fazer, defende a investigadora, já que, tendo um docente mais de 20 alunos a quem ensinar, “é humanamente impossível fazer um trabalho individualizado”, o que resulta em “miúdos que não estão a aprender, mas a memorizar e a reproduzir”, tornando-se “padronizados”. Mas se há largas críticas a fazer à escola, mesmo com todas as suas tentativas de atualização, será que o ED é isento de problemas? Não, reconhecem.

Educação Doméstica em Portugal
Educação Doméstica em Portugal créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

A socialização e outros fantasmas

Independentemente das virtudes descritas do Ensino Doméstico, os seus praticantes reiteram que a decisão é sempre fruto de uma grande ponderação. "Não há pai ou mãe que não pense tanta vez antes de tomar essa decisão”, pois é “assustador", confessa Alexandra Nascimento. Grande parte dos pais, refere Álvaro Ribeiro socorre-se de leituras para se informarem quanto a esta modalidade. "É de uma enorme responsabilidade quando nós tomamos na nossa mão a educação dos nossos filhos”, reitera a jurista. Por essa razão, tanto a Alexandra Nascimento como Inês Peceguina tendem a concordar que o Ensino Doméstico é por vezes representado sob um filtro cor-de-rosa, com histórias de filhos geniais orientados por super pais, parecendo uma panaceia para maus resultados escolares.

A investigadora afirma-se “completamente contra” a escolha de “pessoas tão excecionais para dar como exemplo de casos de ED”, porque considera que tanto no ensino regular como no doméstico seriam alunos bem-sucedidos. Além disso, diz que a consequência pode ser “muito perigosa”, pois leva “alguns pais a pensarem, até em retrospetiva, que os seus filhos seriam brilhantes se tivessem feito isto [Ensino Doméstico], mas que foram para a escola e não correu bem".

No entanto, Inês Peceguina tem conhecimento de que há vários casos onde a opção pelo ED é fruto de más experiências dos discentes na escola - seja, por exemplo, bullying ou abandono intelectual. Do seu conhecimento, a investigadora sabe que “há muitos pais, sobretudo de crianças classificadas com necessidades educativas especiais, a experimentá-lo”, situação corroborada por Alexandra Nascimento, que fala de pais com filhos a sofrer de autismo ou Asperger, entre outras patologias, e “que realmente não encontram na escola o cuidado que precisam”. De acordo com a jurista, esses pais “não estão preocupados que os filhos saibam ler na idade ‘X’, mas sim com o bem-estar e com a segurança que a criança possa sentir no seu percurso, e essas crianças precisam dessa segurança para irem avançando”.

Aqui fala-se de casos de fragilidade, mas uma das críticas mais prevalecentes - tida não só por leigos, mas também por profissionais de saúde - é de que, geralmente, as famílias em ED são muito protetoras dos seus filhos e que, ao não colocá-los na escola, os inibem das práticas de socialização com os seus pares nessa arena. Porém, as figuras entrevistadas rejeitam essa visão.

Realçando que a sua postura é enquanto observador e não praticante, Álvaro Ribeiro afasta a ideia de que o ED não permite uma socialização rica e simultaneamente retorque que a escola não é o garante da mesma.

“As pessoas partem do pressuposto de que a socialização é quando nós estamos num meio onde há muita diferença de pessoas, como a escola”, diz o investigador, e depreendem que o ED é praticado em isolamento e que “que o aluno está fechado em casa", sendo que, em ambos os casos “isso não é verdade”. Na sua década a estudar o fenómeno, o investigador reporta que, tanto as famílias mais liberais como as mais conservadoras “interagem com pessoas da comunidade e fora da comunidade”, e que, no reverso da moeda, a escola não permite tanta interação quanto isso.

Salienta por sua vez Inês Peceguina que há estudos que demonstram que as crianças em pré-escolar não beneficiam em termos de socialização por estarem “num contexto de pares”, ou seja, com pessoas da mesma idade, mas sim misturados com outras idades. A investigadora destaca que é esse o tipo de ambiente homogéneo que caracteriza as escolas, onde as crianças passam demasiado tempo, especialmente tendo em conta que Portugal tem “a taxa de trabalho a tempo inteiro mais elevada da Europa nas mulheres com filhos pequenos, sobretudo até aos dois anos”.

Para além disso, Inês Peceguina defende que a escola não é um garante da celebração da diferença e que  as crianças e jovens agregam-se por aquilo que os une e não por aquilo que os difere. ”A escola pública, à partida, recebe toda esta diversidade de pessoas, mas o que acontece na realidade?”, pergunta a investigadora. A resposta foi encontrada ao observar casos de pré-escolar onde verificou “que as crianças que são mais parecidas umas com as outras - até do ponto de vista físico - organizam-se em pequenos grupos”, fazendo-o “de forma inconsciente”.

Na escola, os seus intervenientes juntam-se tendo apenas em comum as idades e a proveniência geográfica, mas o Ensino Doméstico, defendem os seus praticantes, acaba por esquivar-se a esta segregação artificial. “Nós temos grupos organizados de convívio com famílias em ED”, menciona Alexandra Nascimento, que considera o problema da socialização “um mito” por haver “preconceito”, fruto do “desconhecimento” perante uma “realidade residual” na sociedade. Para além disso, no seu caso, os seus filhos fazem diferentes atividades com diferentes grupos - da capoeira aos Escoteiros - , ou seja, “estão constantemente em contacto com crianças que não são de ED, que estão nas escolas e que são de muitas classes sociais”.

Álvaro destaca que uma das virtudes que descobriu no ED é o facto das crianças estarem não só “mais em contacto com adultos”, como também este dar-se numa maior relação de igualdade. Inês Peceguina indica que tal cenário ocorre na sua família, pois os seus filhos começaram a ficar habituados à ideia de que as relações não se limitam “à divisão entre os papéis do adulto que sabe e que instrui ou cuida [e da criança, que aprende]. O adulto passa a ser encarado como o parceiro do dia-a-dia, e isso modifica o estilo de comunicação”. Segundo Alexandra Nascimento, que também corrobora esta situação, esta dinâmica prepara melhor as crianças para a idade adulta, onde vão ter de tomar decisões e interagir de igual para igual com os outros.

No entanto, para que tudo corra bem, é imperativo o princípio da comunidade. Apesar de não ser frequente, Inês Peceguina assume que o maior risco da Educação Doméstica é o potencial isolamento das famílias que pensam conseguir levar avante este projeto sozinhas. A investigadora considera necessária a criação de “uma rede de suporte”, com “o apoio de outras pessoas à nossa volta, sejam elas famílias com quem partilhamos as experiências ou outros técnicos, ou pessoas do desenvolvimento infantil”. A investigadora lembra que a maioria dos pais, com uma formação na escola tradicional, “não está habituada a este registo [do Ensino Doméstico], mas sim focados no seu trabalho, enquanto as crianças estão no seu domínio próprio [o da escola tradicional]".

Da sua parte, Álvaro Ribeiro já identificou algumas situações de “estigmatização social” a que as famílias em ED são sujeitas por outras famílias, mas, regra geral, os maiores problemas ocorrem por falta de experiência. “Quando as coisas não são fáceis, as pessoas apertam, protegem e exigem mais do que deviam, porque têm receios, mas isto vai se diluindo com o tempo”, comenta o investigador, que acrescenta: “se me perguntar se conheço algum caso de pais que recorrentemente tenham praticado isolamento ou super proteção, não”.

Sendo uma opção potencialmente exigente e que requer não só preparação como também disponibilidade dos encarregados de educação, não são todos os pais que querem ou conseguem seguir as práticas do ED. Existe, entretanto, uma opção que se apresenta como o meio termo: os centros de aprendizagem.

Skool
Skool créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Centros de aprendizagem: pontes no Ensino Doméstico entre escola e casa

Saindo de Mafra e seguindo-se pela Nacional 116 chega-se ao Sobreiro, aldeia que, para além de albergar a obra de José Franco, acolhe também a SKOOL - nome cuja fonética remete para "School", escola em inglês. Apesar do nome, esta não é uma escola, mas sim um centro de aprendizagem constituído enquanto associação e que recebe crianças matriculadas em Ensino Doméstico. O seu nome é um acrónimo para denominar uma associação “Sobre Krianças Orientadas em Open Learning”, segundo o seu presidente, José Borralho. Presidente da Associação Portuguesa de Turismo de Culinária e Economia (APTECE) e CEO da Escolha do Consumidor e da Brandstory, José é um dos 27 associados, entre pais e educadoras, que fundaram a SKOOL em maio deste ano, no espaço de uma semana, a tempo do final do terceiro período escolar, depois de abandonarem outra instituição cujo rumo não lhes agradava.

Situada no pavilhão polivalente do Sobreiro, esta foi uma solução alcançada junto do município de Mafra porque o edifício tinha pouca utilização — e José Borralho confessa que andam “a ver outros espaços com a autarquia, mas quanto mais sítios novos encontramos, mais gostamos deste”. Aqui os sapatos ficam sempre à porta, o grosso da ação educativa passa-se numa antiga zona de bar, onde, por entre decorações com obras das crianças e jogos ainda se veem as tradicionais ventoinhas de teto. Todavia, o que chama a atenção é a quantidade de trabalhos e iniciativas espalhadas, como um cartaz afixado na parede que possibilita aos alunos fazerem sugestões para celebrar festividades ou iniciar projetos para o grupo. São várias as ideias dadas, mas nenhum dos seus autores se encontra na sala.

Sexta-feira é dia habitual para as crianças aprenderem fora de portas e foi numa destas datas que o SAPO24 se deslocou à SKOOL, onde apenas Cátia Zeferino, coordenadora pedagógica e tutora na instituição, se encontrava a trabalhar. Os alunos estavam nas redondezas a dar um passeio, aproveitando o bom tempo para aprender pelo caminho, já que a envolvência o permite. Encontramo-las no fundo de uma ladeira, sentadas numa roda à sombra, a escutar uma história contada por Lídia, outra das orientadoras. Mais do que apenas apreciar o ar livre, há o cuidado de usá-lo para aprender coisas que, através dos livros e das explicações orais, não seriam tão fáceis de sistematizar, como a diferença entre plantas espontâneas e cultivadas.

Apesar de ser destinada a crianças do primeiro ciclo, a SKOOL aceita alunos em fase pré-escolar, sendo que neste momento conta com 16 com idades entre os cinco e os oito anos. Entre eles está Maria, uma das filhas de José. Apesar de não ser ED praticado em casa, o projeto pedagógico da SKOOL não difere muito daquilo a que se propõe o ED, onde o foco está “na individualidade do processo de aprendizagem de cada criança”, como descreve Cátia Zeferino.

Na SKOOL não há aulas tradicionais nem professores, o regime é de educação livre, orientado pelas “tutoras”. Mesmo tendo os mesmos conteúdos curriculares, cada criança tem autonomia para ir “fazendo o seu próprio percurso e, mediante as suas características pessoais, vai tendo uma componente e um modo de trabalhar diferentes”, explica a pedagoga. As tutoras gerem essa autonomia consoante as idades, dando cada vez mais arbítrio às crianças à medida que estas vão aprendendo a ser independentes no seu estudo, mas também consoante o seu perfil. 

“No fundo”, esclarece Cátia Zeferino, “não é a criança que se tem de adequar à metodologia, a metodologia é que vai ser adequada à personalidade daquela criança”. Por outro lado, não sinalizam crianças com necessidades educativas especiais porque, consideram, todas as têm, havendo “o mesmo critério para qualquer criança, o de atender às suas necessidades específicas”, diz a educadora. Só mesmo nos casos mais difíceis, em que determinada criança não está a conseguir lidar com uma matéria, é que são dadas sessões individualizadas, mais parecidas com o conceito de “aula”, para ajudar. É que, em todo o caso, sendo destinada especialmente a crianças no 1.º ciclo, a SKOOL tem o objetivo de prepará-las para os exames de equivalência do 4.º ano para depois seguirem para o ensino regular.

Esse processo dá-se na sala, onde cada um vai trabalhando nos seus projetos, usando diferentes ferramentas, desde fichas, livros, jogos, o computador e uma série de roteiros multidisciplinares que vão aumentando o nível de dificuldade para ajudar a sistematizar conteúdos. É por isso que, quando questionamos os menores sobre o que tinham estudado naquele dia, Sebastião debruçou-se sobre Matemática, ao passo que Vicente preferiu Estudo do Meio. E como se apela aos miúdos para aprendam num contexto social de entreajuda? Artur convidou Vicente para juntos aprenderem nomes e adjetivos.

Outro valor que é incutido na SKOOL é o do “aprender fazendo”, indica Cátia Zeferino, acrescentando José Borralho que essa componente prática se nota num ambiente que “não parece, mas é de trabalho. E é por isso é que muitos dos miúdos dizem ali que o que gostam de fazer na SKOOL é brincar e trabalhar”. O empresário dá um exemplo: quando as tutoras repararam na má caligrafia de uma das crianças, não a colocam a fazer exercícios repetitivos, mas a treinar em rótulos para decorar a sala e os seus objetos. “É mais fácil meter um miúdo a fazer uma coisa divertida, em que sinta que está a ser útil, do que agarrado a um caderno a ver quando é que chega ao fim da página para se livrar do trabalho”, defende José. “Se ninguém gosta da rotina do trabalho, porque desumaniza, agora imaginemos uma criança, com os níveis de alerta para o mundo e para o que quer desenvolver, e que de repente é fixada ali numa tarefa que é cansativa”.

É com tipo de postura que a SKOOL se distancia da escola regular, cujo maior problema, de acordo com Cátia Zeferino, é de aplicar “o mesmo método para todos os alunos”. Porém, tomando uma atitude semelhante à das famílias em ED, os responsáveis da associação preferem evitar comparações com a escola, não só porque se apresentam como uma alternativa, mas porque “todas as metodologias podem ser boas”, diz a pedagoga, dependendo da criança.

Apesar de seguirem práticas semelhantes às das famílias, nem toda a comunidade do Ensino Doméstico está de acordo com este tipo de centros de aprendizagem. A ANPED, por exemplo, manifesta uma posição contra elas, considerando-os “escolas informais que utilizam a figura de Ensino Doméstico como guarda-chuva”, considerando a associação a esta modalidade um “uso indevido e abusivo” da mesma, que a organização “não pode, de forma alguma, apoiar, visto desvirtuar esta opção tão nobre e acarinhada pelas famílias que a vivem.”

Alexandra Nascimento, sendo parte da ANPED, oferece uma opinião semelhante, mas explica mais detalhadamente quais as suas razões pessoais para a discórdia. A jurista compreende que há pais que “não querendo ou não podendo fazer ensino doméstico, também não se identificam com nada do que encontraram, nem no [ensino] público, nem no privado, nem no cooperativo”, optando pelos centros. Contudo, defende que o que oferecem “não é ensino doméstico” e que não é possível “olhar para eles e dizer que não são escolas”.

A controvérsia vem desembocar no Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, presente no Decreto-Lei n.º152/2013. Este refere que são “estabelecimentos de ensino particular e cooperativo as instituições criadas por pessoas singulares ou coletivas, com ou sem finalidade lucrativa, em que se ministre ensino coletivo a mais de cinco alunos ou em que se desenvolvam atividades regulares de caráter educativo ou formativo”. Todavia, no mesmo documento é referido que “o presente Estatuto não se aplica ainda ao ensino individual e ao ensino doméstico.”

Com base nestas condições, é possível abrir centros de aprendizagem destinados ao ED com o estatuto legal de associações e não escolas formais - algo que a SKOOL fez. Na sua qualidade de jurista, Alexandra acredita não se trata de um “vazio legal” e sim de “um contorno à lei”. A jurista considera que “o que importa é o fim a que se presta [este tipo de associações], que quando se licenciam e legalizam fazem-no como uma coisa, mas que no fundo o que fazem é outra. Temos uma deturpação”, conclui. Os centros são “um sistema de ensino privado” que “não consegue ou não quer corresponder às exigências que o Ministério da Educação faz para que se legalizem enquanto escola privada”. No entanto, Alexandra não deixa de ressalvar que reconhece méritos nas instituições. Por um lado, compreende que as exigências do ME "são demasiados rígidas, para um universo de poucas crianças”. Por outro, apela a se procure estabelecer um enquadramento que as salvaguarde e a si e às famílias, pois são os pais “os responsáveis, teoricamente, já que o seu filho está em ED”.

A ideia de Inês Peceguina também vai neste sentido, reconhecendo que falta “algo a meio-caminho”, pois “há famílias que não se identificam com o Ensino Doméstico no sentido de estarem ali disponíveis para estar a acompanhar as crianças, o que é perfeitamente legítimo, mas também não se identificam com esta coisa de ir despachar os miúdos de manhã e ir buscá-los à tarde [à escola]”. A investigadora também não considera o que o serviço que os centros prestam é ED, mas pensa que uma solução de compromisso podia ser encontrada junto do Ensino Individual - que é ministrado por um professor habilitado a um único aluno fora de um estabelecimento de ensino - ao criar estruturas legais para que profissionais possam lecionar para pequenos grupos.

José Borralho responde a estas apreciações, admitindo que “não é um tema pacífico”, mas que as críticas “serão muito mais daqueles que se dizem representantes dos pais do que dos próprios pais". Na opinião do empresário, o acompanhamento feito nos centros de aprendizagem é “mais profissionalizado” e o sistema “tem vantagens porque se sabe o que se passa lá dentro, como é que o acompanhamento é feito, qual o tipo de ensino". Para acautelar a SKOOL, José diz que a sua primeira preocupação “foi ir ter com o vereador da área da educação da Câmara de Mafra e apresentar-lhe o projeto".

Para o empresário, instituições como a SKOOL “vivem e sobrevivem enquanto houver uma comunidade de pais que, independentemente de apreciarem a modalidade do ED e a reconhecerem enquanto mais adequada aos seus filhos, não tem, contudo, a disponibilidade para lecionar”. José Borralho assume enquadrar-se nesse grupo, sendo um um pai que olha para o ED como “um risco muito maior” do que ter os filhos em instituições como a SKOOL, pois não se julga capacitado para preparar “os miúdos para um exame da quarta classe”.

O empresário adianta, contudo, que a SKOOL é apenas “uma entidade de apoio ao ED” e que, como tal, “é da opção dos pais uma maior intervenção ou não" na formação dos menores, sendo que “podem combinar com os tutores para pedir trabalhos de casa para acompanhar os filhos”. De qualquer das formas, José deixa uma pergunta no ar: de todos os alunos matriculados em ED, "quantos é que efetivamente estão no modelo puro em que estão em casa dos pais e quantos estão em instituições como a SKOOL?"

Enquanto a polémica não desvanece, a procura continua a aumentar: o empresário disse estar a receber contactos não só de famílias, mas também de professores interessados em replicar o modelo, de Espinho a Faro, passando pelas Caldas da Raínha. A SKOOL, lembra José, nasceu com “um objetivo muito específico, que foi preparar os miúdos para o meio trimestre que faltava” com “ensino de qualidade”. O empresário não esconde que, mesmo sem objetivos lucrativos, há um desejo em que a instituição cresça e sirva de modelo a outras.

Contudo, a portaria também poderá ter um efeito nefasto para os centros de aprendizagem. Para além de considerar a necessidade de aprovação de um diretor “uma aberração”, pois “cada cabeça a sua sentença”, o empresário sabe que a SKOOL poderá “eventualmente ter menos alunos”, porque vão ter “menos procura, especificamente no caso dos pais que não tenham licenciatura e que deixam de poder ter as crianças nesse regime”. A seu ver, com medidas como estas, a política educativa no que toca ao Ensino Doméstico “em vez de estar a avançar, está a regredir”, sendo que o Ministério “pecou por não ter ouvido as instituições do setor”. Mas se tivesse ouvido, o que é que poderia ter aprendido?

Educação Doméstica em Portugal
Educação Doméstica em Portugal créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

O que é que a escola pode aprender com o Ensino Doméstico?

Mesmo tendo diferentes perspetivas quanto ao Ensino Doméstico e à educação em geral, os entrevistados convergem na convicção de que a escola e o Ministério da Educação não só deveriam procurar entender o Ensino Doméstico como aprender em conjunto, sendo que este também não é suposto existir em vácuo. Essa ideia foi identificada por Álvaro Ribeiro, que refere que as famílias dos mais variados âmbitos do ED “ao olharem para a escola e para os seus problemas, entendem que a sua opção, se for levada em frente, vai melhorar a sociedade”.

Tendo apenas obtido mais aderentes nos últimos anos, ainda é cedo traçar conclusões definitivas quanto aos ganhos que o Ensino Doméstico traz. Inês Peceguina recorda que a maior parte dos praticantes “ainda está no primeiro ciclo”, não havendo “ainda muita população a chegar ao final do secundário e a entrar para a faculdade”. O dados deste ano do ME comprovam-no: no primeiro ciclo estão matriculadas 447 crianças, ao passo que no ensino secundário esse número se fica pelos 32 jovens. Porém, Álvaro constata, a partir da sua recolha, que as crianças em ED “tiram notas acima da média da escola pública. Isso é inegável”. O SAPO24 contactou o ME afim de apurar se existem diferenças entre o aproveitamento escolar de alunos de ensino doméstico e do ensino regular, mas não obteve resposta.

Mas a noção de aproveitamento escolar é diferente no que toca ao ED. Esta é uma das áreas onde o modelo aparenta ser verdadeiramente disruptivo, devido à sua aproximação holística à educação. É por isso que Álvaro enuncia que, no que toca a ED, “não se fala de sucesso escolar, mas sim de sucessos educativos”, sendo que estes abrangem “o desenvolvimento pessoal, a emancipação do aluno, a capacidade de criticar e de ser criativo”.

Todos os entrevistados que praticam ED concordam com esta visão: se Alexandra Nascimento questiona a “classificação quantitativa do aluno” porque “se perde uma série de informação”, Inês Peceguina afirma que a escola não só monopolizou os alunos em relação à família, como afetou-lhes a autoestima pois “habituou-os a construir a sua ideia de pessoa baseada só numa dimensão” e que “se há alguma falha nessa componente, isso põe tudo em causa”. A seu ver, José Borralho diz faltar “coragem para deixar as crianças serem felizes ao ritmo delas”, dando o seu exemplo, de que nunca foi “um aluno brilhante” e que chumbou duas vezes por vontade própria, mas que hoje é bem sucedido. “Temos de deixar os miúdos serem miúdos”.

Essa rejeição das notas e dos resultados choca com a preparação que os menores têm de fazer para todas as provas a que são sujeitos - acrescentando-se às provas de equivalência a frequência e a possibilidade de terem de fazer também provas de aferição. Para Alexandra Nascimento, a nova portaria demonstra ser um retrocesso para a modalidade de ED, não só porque a jurista defende menos regulação para os pais, mas também no que toca aos métodos de avaliação, sendo que gostaria que o ED tivesse “um percurso muito mais livre, em que se pudesse realmente oferecer à criança flexibilidade, sem a pressão constante de avaliações e de testes”. José Borralho é da mesma opinião, salientando que existe “uma necessidade para criar competitividade logo desde que se é criança, o que não faz sentido” e que, em vez de boas notas, prefere “um filho que seja crítico e que se questione, que não entre no bando dos carneirinhos que não fazem perguntas”.

A escola é uma instituição basilar das sociedades modernas e é praticamente impensável concebê-las sem ela. Mas Álvaro atenta que “a escola não é uma instituição muito antiga”, tendo sido criada como a conhecemos no século XVIII, enquanto que a “Igreja e a conceção de família têm milénios”. Ou seja, a “escola pública representa a vitória do Estado sobre outras instituições, o monopólio da educação tomado ao ensino que era praticado familiarmente e pelas igrejas”.

Neste momento, os praticantes de ED dizem ser preciso reverter a questão e pensar como é que a escola pode aprender com os grupos a quem captou o domínio do ensino. Inês Peceguina, parafraseando o pensador austríaco Ivan Illich, indica que as estruturas de poder não devem olhar para quem propõe alternativas ou aponta falhas como adversários, pois “quando há momentos de conflito, podemos ver os obstáculos como oportunidades de melhorar ou então podemos fingir que estas coisas não acontecem e punir estas pessoas”. Na sua opinião, o mesmo se passa entre a escola e o ED. 

Já Alexandra Nascimento pensa que existe uma questão de raiz que impede o diálogo, a ideia de que em Portugal, país que durante séculos teve uma elevada taxa de analfabetismo, “resistir à escola ou fazer um percurso que não passa por aí é quase visto como a negação de uma conquista”. Ou seja, as pessoas sentem-se atacadas. Da sua parte, a jurista diz não viver num registo de negação da escola, antes pelo contrário: como tem quatro filhos, não sabe se a ED vai ser recomendável a todos, e antevê que se algum deles quiser ir para escola, “é respeitar essa vontade”. Se isso vier a acontecer, Alexandra gostava de ver o professor “transformado num orientador”, e diz que a noção de socialização nas escolas tem de ser mais do que os intervalos entre aulas e os furos nos horários. Para tal, seria necessário acabar com o modelo da Era Industrial das crianças viradas para o professor e defende que essas "mudanças não seriam assim tão difíceis de implementar porque não têm grandes custos em recursos humanos ou de equipamento para as escolas, [é preciso] apenas alguma vontade”, diz.

Os praticantes de Ensino Doméstico prometem continuar a pensar as questões da educação e a promover alternativas, independentemente do que acontecer relativamente à portaria. Inês Peceguina lamenta que as famílias não se manifestem mais e em grupo, pois gostaria que estas “gerassem um movimento mais coesivo, porque as minorias coesas são os geradores das mudanças”. Alexandra Nascimento completa-lhe o pensamento: “A função de todos nós, a nossa responsabilidade enquanto pais que têm os filhos em ED ou nos centros de aprendizagem, dos que têm os meninos na escola, é promover coletivamente um debate sério na praça pública, sobre como nós podemos contribuir para que a escola mude. É a responsabilidade social de todos nós, não só enquanto pais, mas enquanto cidadãos”.