Revisitar o último ano não é tarefa fácil. Começamos por isso pelo dia três de agosto, a última data em que o boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde não registou qualquer óbito relacionado com a covid-19. Nessa segunda-feira, numa conferência em que abordava os dados mais recentes da pandemia, António Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, emocionou-se.

Nos sete meses que se seguiram, Portugal passou por outras duas vagas. Morreram mais de 14.500 pessoas.

Depois dos últimos meses de luta contra números que não paravam de subir, Lacerda Sales diz-se “feliz” pela “esperança” que o país conseguiu recuperar através de um novo confinamento. Mas não descansa, é por isso que defende que até à Páscoa, data que como o Natal gera “grande mobilização social”, “as coisas devem ficar como estão neste momento”. Acredita que só assim, e após um desconfinamento gradual e faseado, a que seguirá uma estratégia de testagem “massiva” e “maciça”, é que podemos voltar a “ter um dia como esse três de agosto, o mais rapidamente possível".

Numa conversa em que admitiu erros, sem concretizar quais, Lacerda Sales desmonta as notícias sobre a queda dos níveis de testagem e sobre o papel do setor privado e social no combate à pandemia. Aliás, os hospitais privados e do setor social, afirma, entram no plano do Governo para a retoma da atividade programada não covid. Em 2021, já estão garantidas mais de 950 mil consultas, de cuidados primários, e mais 83 mil cirurgias em relação a 2020, ano em que, até novembro, foram realizadas menos 121 mil cirurgias e 1,2 milhões de consultas nos hospitais.

Pessoalmente, o secretário de Estado diz que a pandemia o aproximou ainda mais dos seus colegas de profissão. Sales, que foi médico ortopedista no Hospital de Santo André, do Centro Hospitalar de Leiria, garante que percebeu como nunca a importância do papel da Saúde Pública para um país. Sobre desafios futuros, quando questionado relativamente a uma eventual saída de cena de Marta Temido, responde com a “capacidade de trabalho” da “excelente” ministra da Saúde. Se se vê a ocupar o cargo? Por agora não, mas garante que nunca recusará nada que o país lhe peça.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

No dia três de agosto de 2020, durante a conferência de imprensa da Direção-Geral da Saúde, emocionou-se ao anunciar que não havia qualquer óbito a registar. Não voltou a existir um dia assim. Conseguia imaginar que Portugal ainda iria sofrer com duas novas vagas, cada uma mais mortífera do que a outra?

Não, claro que não. Mas quando olho para trás e para o presente, e nos vejo a aproximar outra vez de números como os de então, fico feliz, porque há aqui de facto uma situação de esperança. Diria que, neste momento, temos um confinamento com esperança. É nisso que estamos a investir, é nisso que neste momento todos os portugueses estão a investir, em podermos ter um dia como esse três de agosto, o mais rapidamente possível. Os portugueses estão a encarar este confinamento com grande adesão, com grande responsabilidade e já perceberam que somos capazes de, quando queremos, atingir os nossos objetivos. E os nossos objetivos passam por chegar a esses números.

E que objetivos são esses?

Diminuirmos a pressão sobre os serviços de saúde, nomeadamente os internamentos em enfermarias e em unidades de cuidados intensivos. É necessário proteger aquelas que são as faixas mais vulneráveis, dos mais idosos, salvar vidas, evitar óbitos, para chegar ao número do dia três [de agosto] e para mais tarde pensarmos no desconfinamento, um desconfinamento seguro, gradual, progressivo, que nos dê alguma segurança.

Esse desconfinamento já está a ser preparado?

Nós planeamos e preparamos o que fazemos sempre com ponderação e com cautela. De 15 em 15 dias fazemos uma reavaliação com suporte técnico, com suporte científico, com base naquilo que é a melhor evidência científica. É um planeamento feito em função e com esse suporte. Mas sim, estamos a planear.

"Sabendo que não fizemos tudo bem, acho que temos feito uma gestão adequada da pandemia e os portugueses percebem isso"

António Costa assumiu que foram cometidos erros no combate à pandemia. Onde é que acha que o Governo errou?

O Governo, como todos os governos na Europa, toma decisões com base naquilo que é a informação mais consolidada possível e aquela que é a evidência mais científica possível. Todos os governos têm de gerir a pandemia nesse cenário de incerteza porque esta pandemia não traz manual de instruções. Não trazendo manual de instruções, é natural que tenha de ser feita uma avaliação sempre muito cautelosa, muito progressiva, muito gradual.

O maior problema foi gerir a informação em tempo real?

O maior problema foi gerir essa informação e aquilo que são os imponderáveis que não estão nessa informação, as variantes, a prevalência dessas variantes, o frio que não controlamos e também os níveis de mobilidade em cada uma das épocas. Mas eu acho que normalmente temos feito isso, ao longo deste processo, que é de aprendizagem constante. Sabendo que não fizemos tudo bem, e com a humildade governativa de saber que não fizemos tudo bem, acho que temos feito uma gestão adequada da pandemia e os portugueses percebem isso.

Um inquérito divulgado esta semana pela COSMOS dá conta da dificuldade que muitos portugueses têm de entender as restrições. A comunicação foi um dos problemas?

A comunicação, em política, é sempre um dos problemas porque impacta naquilo que são as perceções sociais e isso é importante. Nós tentamos comunicar, principalmente, com verdade e com transparência. Admito que também, em determinados momentos, porque não somos todos especialistas em comunicação, podemos comunicar melhor ou pior, mas temos feito o nosso esforço. A senhora ministra comunica muito bem e com muita frequência, nós, secretários de Estado, tentamos colaborar com a senhora ministra nesse processo também. Os presidentes dos organismos, quer a senhora Diretora-geral da Saúde, quer o senhor presidente do INSA, quer o senhor presidente do INFARMED, quer o senhor presidente da STMS, quer a senhora presidente do IPST, todos os presidentes dos organismos têm feito um esforço por comunicar nas suas áreas respetivas e têm-no feito muito bem. Acho que o nível de comunicação, não sendo perfeito, parece-me a mim que é bom, porque os portugueses percebem e a prova de que percebem é que neste confinamento aderiram.

Mas no Natal, por exemplo, não perceberam.

Pois, no Natal não perceberam porque também houve aqui uma ligação entre as medidas tomadas e a própria perceção dos portugueses. No fundo, em função, como lhe disse, da informação que nos era dada e dos imponderáveis com que não contávamos, porque não sabíamos que iam existindo, percebemos também que em função de um ano de fadiga pandémica era normal que quiséssemos fazer um contrato de confiança com os portugueses para poder aliviar, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista físico, essa fadiga. Houve, de facto, essa tentativa que hoje já reconhecemos, e o senhor primeiro-ministro já reconheceu, que teve os resultados que teve, que foi uma nova vaga. De qualquer das formas fizemos a nossa aprendizagem.

É por isso que não se pensa em desconfinamento antes da Páscoa? Há um medo de que a Páscoa seja o novo Natal?

Sim, a Páscoa, como o Natal, são sempre épocas de fluxos de grande mobilização social. Devemos evitá-los, mas, como digo, essas decisões serão tomadas de 15 em 15 dias, com o respetivo gradualismo. Mas sim, pessoalmente penso que a Páscoa, tal como o Natal, tal como outras épocas de grande mobilização... Nesta fase, as coisas devem ficar como estão neste momento.

"A testagem não baixou porque houvesse menor oferta ou menor capacidade de resposta. Não é por isso que a testagem baixou. A testagem baixou porque os números baixaram"

 

Numa nova norma divulgada recentemente pela Direção-Geral da Saúde determinou-se que a testagem ia ser alargada também aos contactos de baixo risco. Porque é que depois disto os níveis de testagem baixaram?

A testagem não baixou porque houvesse menor oferta ou menor capacidade de resposta. Não é por isso que a testagem baixou. A testagem baixou porque os números baixaram, a incidência baixou, as pessoas estão mais confinadas, há menos mobilização, há mais assintomáticos - o que é um bom sinal -, e portanto há menos procura.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Não é um problema de oferta, é um problema de procura.

Não é um problema de oferta, é um problema de procura. A procura baixou. Nós somos um dos países que mais testa na Europa, somos o sétimo país que mais testa na Europa, temos mais de oito milhões de testes efetuados no país, testamos mais de 780 mil por milhão de habitantes. E portanto, sendo um dos países que mais testa na Europa, queremos continuar a testar porque temos a perceção de que com a evolução epidemiológica a decorrer como está a decorrer, a velha máxima do testar, testar, testar deve colocar-se. Só testando muito é que podemos apanhar na rede, por assim dizer, o maior número possível de pessoas positivas, para que possamos depois isolar, identificar, tratar, proteger.

Qual é que é o plano até atingirmos a imunidade de grupo? Imagino que o plano não possa ser confinar e desconfinar até lá chegarmos.

Os portugueses já perceberam que o confinamento não pode ser um período entre duas vagas. O confinamento tem que ser um período ao qual temos que aderir com responsabilidade e com consciência para que possamos resolver o problema, para que possamos evitar óbitos, salvar vidas, diminuir a pressão sobre os serviços de saúde e para que depois possamos reativar o tecido económico e o tecido social, o que também é muito importante.

Portanto o plano passa, essencialmente, pelo alargamento da testagem.

O plano passa por um rastreio, que eu costumo dizer, que é massivo, pela quantidade, e maciço, pela solidez. E passa também por termos rastreios capazes identificar casos, para isolar os casos positivos, como aliás estamos a fazer, isolar os coabitantes.

Quando desconfinarmos vamos voltar a ter de saber conviver com vírus e manter proteção. A aplicação STAYAWAY COVID em que o governo colocou grande empenho está afastada face à falta de adesão como meio de monitorização? Foi um falhanço?

O SNS24 e os meios digitais foram duas das maiores conquistas desta pandemia. Associado a isso, a própria aplicação também me parece que é uma conquista. Depois estas conquistas também dependem da maior ou da menor adesão. Repare que a adesão dos portugueses à aplicação em causa foi um pouco em linha com aquilo que foi a adesão em outros países da Europa também a essas aplicações. Reconheço que a nossa adesão à aplicação foi menor do que aquela que poderia ser a expectativa, mas não foi só em Portugal. Continuamos ainda assim a promover a aplicação e a tentar que os portugueses, e é importante que o façam, adiram a ela.

"A prova de que temos planeado é que muitas das alterações que fizemos ao longo desta pandemia (...) foram feitas devido a uma conjutura, mas muitas delas vão ficar para o futuro e, portanto, deixam de ser conjunturais e passam a ser estruturais"

 

O Governo é acusado de ter falhado no planeamento desta terceira vaga, seja na saúde, seja na educação. Ao mesmo tempo, temos vários especialistas a dizerem-nos que será mais comum no futuro lidar com novas pandemias, devido a fatores como as alterações climáticas e a globalização. Portugal sai destes meses tão difíceis melhor preparado para lidar com uma nova pandemia?

Como lhe disse há pouco, nenhuma pandemia traz manual de instruções. É sempre difícil responder-lhe a uma questão destas porque as pandemias vão variando, as variações dos vírus também são sempre muito diversas... dar uma resposta honesta, séria, a isso é sempre difícil. O que lhe posso garantir é que fazemos sempre todos os esforços para fazer uma aprendizagem relativamente a essa matéria. É claro que em relação a esta pandemia estamos muito mais preparados hoje do que estávamos há um ano. E temos planeado. A prova de que temos planeado é que muitas das alterações que fizemos ao longo desta pandemia, desde a nossa capacidade de testagem à duplicação de capacidade das nossas unidades de cuidados intensivos, do aumento das nossas capacidades de enfermaria, do uso nossos meios digitais são alterações que foram feitas devido a uma conjutura, mas muitas delas vão ficar para o futuro e, portanto, deixam de ser conjunturais e passam a ser estruturais.

Pode traduzir isso em números?

Termos introduzido mais de 8.400 profissionais no Serviço Nacional de Saúde, termos convertido mais de 1.300 profissionais de saúde, conversão de contratos a termo em contratos sem termo, é sinal que de que estes profissionais são necessários e que vão ficar no sistema. São também transformações estruturais porque esses profissionais vão ser necessários no futuro, tal e qual como as 9,4 camas por 100 mil habitantes nos cuidados intensivos vão ser estruturais, tal e qual como stretch capacity que temos em termos de enfermaria, mais 19 mil camas. Hoje temos mais de 160 especialistas para cuidados intensivos, mais de 440 enfermeiros para cuidados intensivos, e temos concursos abertos: como se sabe, em 2020 foram abertos concursos para 48 intensivistas e este ano, para mais 47 intensivistas.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Isto são números para ficar, ou seja, não são números de realocação de meios?

São números que vêm para ficar. É evidente que são números que em função da evolução de um conjunto de condicionalismos, da possibilidade de aparecimento de novas pandemias ou não, podem ter de ser reajustados. Os números são sempre reajustáveis em função das condições. O que é certo é que as capacidades e os limites das capacidades vieram para ficar. Hoje temos mais de 1.300 camas de cuidados intensivos, podemos alocar mais ou menos camas a uma determinada pandemia ou a uma determinada patologia. Um dos problemas com que nos vamos debater agora no futuro é a atividade não-covid. Temos objetivos e já temos planos traçados para atividade.

Quais?

Já contratulizámos, nos acordos modificativos de contratos de programas com os respetivos hospitais, com as entidades empresariais, mais 9,5% de consultas externas do que em 2020, são mais de 950 mil consultas, isto nos cuidados primários. Depois contratualizámos mais 22% de cirurgias programadas, que são cerca de mais 83 mil cirurgias, em relação a 2020. Temos que perceber que estamos a fazer um esforço no sentido de recuperar atividade assistencial não programada que tivemos que suspender por força do foco na pandemia.

Porque se há números que pesam tanto como os da covid são os do dano que esta doença causou aos doentes não covid.

Sim. Para além deste plano de recuperação, com estes objetivos e com estes números, temos também atividade convencionada com o setor privado e com o setor social, nomeadamente na lista de inscritos para cirurgia, que vamos dar continuidade. Temos também um conjunto de incentivos — que já eram incentivos de 2020, quer remuneratórios, quer ao nível de alargamento de horários para atividade assistencial — que é prorrogado para o ano de 2021. Temos alguns programas na área da oncologia para recuperação de cirurgia e para recuperação de rastreios que atrasámos durante o ano de 2020, temos também programas ao nível do HIV/SIDA, da Hepatite C, da hospitalização domiciliária, vamos apostar muito na hospitalização domiciliária, e também na telemonitorização, nomeadamente experiências que tivemos, ao nível dos sistemas telemáticos, do acompanhamento de doentes à distância. É evidente que vamos aproveitar essa aprendizagem.

"Nós cumprimos a Lei de Bases da Saúde e a Lei de Bases da Saúde diz que devemos utilizar o sistema privado e social de forma supletiva e de forma complementar. (...) Não houve atraso porque o sistema privado e o sistema social sempre se disponibilizaram. E nós, desde muito cedo, que começámos a contratualizar"

Falava da relação com o setor privado e com o setor social. Parece-me que houve duas ideias opostas nesta última vaga: a de que o setor privado chegou tarde no combate à pandemia, que estava indisponível para ajudar a não ser nos seus termos e até que não queria, a certo ponto, receber doentes covid; e, por outro lado, a ideia de que o Governo não usou a ajuda dos privados por razões de índole ideológica e de pressão política. A gestão da covid-19 tem sido também uma gestão ideológica da saúde e do papel do estado?

Nós cumprimos a Lei de Bases da Saúde e a Lei de Bases da Saúde diz que devemos utilizar o sistema privado e social de forma supletiva e de forma complementar. Foi isso que fizemos, utilizámos o sistema privado e social de forma supletiva e de forma complementar. E não houve atraso porque o sistema privado e o sistema social sempre se disponibilizaram. E nós desde muito cedo que começámos a contratualizar com o sistema privado e social.

Desde quando?

Não lhe consigo localizar nem o mês, nem o dia certo, mas logo na primeira vaga. Relembro, por exemplo, o contrato muito precoce que fizemos com a Universidade Fernando Pessoa, que foi das primeiras a aderir. Depois com o grupo Trofa, depois com o grupo Luz, com a CUF, com os grupos privados que fizemos quer no Norte, quer na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde era mais predominante a atividade e incidência epidemiológica. Chegámos a mais de 90 convenções ao longo da pandemia. Não houve atraso nenhum, desde cedo que quer o setor privado, quer o setor social colaborou connosco. Ainda agora a relação que tivemos internacional, com a colaboração alemã, foi na Luz.

Porquê na Luz e não noutro hospital?

Houve uma razão especial que foi fazer com que estas pessoas pudessem estar num local em que pudessem trabalhar em conjunto, porque já estavam habituados a trabalhar em equipa, e no Hospital da Luz havia cerca de 19 camas que permitiam esse trabalho integrado. Mas repare, logo a seguir, quer os franceses, quer os luxemburgueses, foram para hospitais do setor público, os luxemburgueses foram para Évora, para o interior, para uma zona de menor densidade populacional, e os franceses foram para o Garcia de Orta.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Uma das conclusões que ficou patente neste último ano é que há uma necessidade de reformular o SNS?

Não só com este Governo, como já com o anterior, desde 2015, acho que nunca houve um investimento tão grande no SNS. Esse investimento é um sinal de reforma, é um sinal de reforço do Serviço Nacional de Saúde. Particularmente, neste último ano, por razões imperiosas e por razões conjunturais, mas como disse, que poderão ficar como razões estruturais, houve de facto um grande investimento quer em termos orçamentais, quer em termos de meios. É importante dizer que nunca houve falta de recursos orçamentais para aquilo que era necessário. O setor das Finanças sempre disponibilizou todos os recursos que eram necessários, quer ao nível de contratações para recursos humanos, quer ao nível de recursos materiais. Agora o sistema nacional de saúde é algo que se renova e que se reinventa a cada dia em função daquilo que são as circunstâncias.

Sobre questões ainda de gestão, desde que Francisco Ramos deixou a liderança da Task Force e que o vice-Almirante Gouveia Melo assumiu a coordenação da equipa que deixámos de ter notícias de vacinas mal administradas e que a comunicação parece ter ficado até mais clara. O que é que se estava a passar?

O dr. Francisco Ramos é um homem que tem um currículo extraordinário e é uma pessoa de grande mérito em termos de saúde em Portugal. Não é pela função que exerceu na questão da vacinação que esse mérito não existe. Bem pelo contrário, ainda assim mostrou que tem carácter e que tem personalidade porque para além de ter organizado numa fase inicial, sempre difícil, em função de algo que tinha acontecido na organização onde estava, a Cruz Vermelha, entendeu que devia demitir-se. O senhor vice-almirante Gouveia Melo é uma pessoa de altíssima qualificação dentro da sua área que são as Forças Armadas, neste caso a Marinha. As Forças Armadas têm sempre aquela perspetiva de rigor, de disciplina e de estratégia que são muito importantes em qualquer plano que se faça. Diria que o senhor Almirante está a fazer um excelente trabalho e que está a dar continuidade ao excelente trabalho feito pelo dr. Francisco Ramos. Só assim se compreende que o plano esteja a ser bem sucedido e que hoje tenhamos mais de 850 mil pessoas já vacinadas, 8% por cento da população já, com pelo menos, uma dose, mais de 250 mil pessoas já com duas doses e portanto que esteja a ser um plano bem sucedido, em função daquilo que é o número de vacinas e do processo a montante que está a chegar.

Moderna, Pfizer e Astrazeneca têm falhado com o que foi contratualizado, não acha que os diferentes Estados e a União Europeia deviam ter tido pulso mais firme neste processo?

Alguns dos atrasos que surgiram da aquisição de vacinas por parte de algumas casas, também não foram todas, é bom que se entenda isso, rapidamente poderão ser compensados com um aumento de produção e isso vai permitir-nos de alguma forma, com pequenas diferenças no tempo, atingir aquilo que é importante que é a imunidade de grupo. Vai permitir-nos vacinar o maior número de pessoas possível no menor número de tempo possível, e é isso que queremos e é por isso que o senhor vice Almirante tem dito que um objetivo seria no final do verão termos a imunidade de grupo com cerca de 60%-70% da população vacinada.

Mas estes atrasos interferem diretamente com os prazos do nosso plano.

No plano inicial, creio que tínhamos cerca de 11 milhões de vacinas programadas para o final do primeiro semestre. Iremos ter à volta de 8/9, que dará para vacinar à volta de 3,5 milhões de pessoas e depois no segundo semestre, será, por assim dizer, a vacinação massiva da população, o que dará para atingir, no final de setembro, portanto no final do verão, muito provavelmente a imunidade de grupo dos 60 a 70% que seria aquilo que era importante.

Olhando para o futuro, também na sequência deste pós-vacinação, quando é que acha que poderemos voltar a ir a um supermercado sem máscara?

Para saber Isso era preciso ter o tal manual de instruções...

Acha que estamos assim tão longe de isso ser uma realidade?

Acho que sim, acho que isso ainda está longe porque mesmo após a vacinação nós temos que perceber que temos de manter um conjunto de regras: máscara, higienização, álcool gel, distanciamento físico... Toda esta aprendizagem vamos ter de manter mesmo depois de estarmos vacinados, porque temos que pensar nos outros. Acho que esta pandemia também nos trouxe esta capacidade de fazermos uma sociedade mais solidária. Percebemos que não existimos sozinhos e que somos muito dependentes uns dos outros e que, por isso mesmo, depois da vacinação, mesmo depois de atingirmos com algum sucesso a possibilidade de evitarmos que estas faixas mais vulneráveis possam ter maus desencadeamentos, conseguimos perceber que temos de ser solidários. Acima de tudo, acho que esta pandemia é uma oportunidade para aproximar gerações. Repare o cuidado com que hoje um neto vai a casa de um avô porque percebeu que precisa de proteger o avô. O cuidado com que se vai a um lar visitar alguém num lar, é porque se percebe que é preciso proteger estas gerações.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Diz que a pandemia mudou a sociedade, mas e a si? Como é que o mudou como político e como médico?

Como sabe, enquanto governante tive que ter uma suspensão da minha atividade médica, mas é curioso porque este último ano ainda me aproximou mais dos meus colegas. Havia áreas da medicina que nós, mesmo profissionais, não conseguimos perceber às vezes o real significado. Por exemplo, a Saúde Pública. Sabíamos algumas das coisas que a Saúde Pública fazia, a qualidade das águas, da legionella, a questão do reconhecimento dos óbitos... tudo isso nós sabíamos, mas não tínhamos a noção da dimensão da importância da Saúde Pública. Isso, como médico, fez-me aproximar muito mais daquilo que é a dimensão da profissão, daquilo que são os meus colegas em determinadas áreas, de Saúde Pública, da unidade dos cuidados intensivos, a importância que tem a medicina interna enquanto especialidade que integra grande parte das outras especialidades, da cardiologia, da pneumologia, da neurologia... Como médico fez-me garantidamente estar muito mais próximo, até porque há aqui uma questão muito importante: tive muito contacto com os meus colegas durante as fases de maior pressão em que quer a senhora ministra, quer eu e o senhor secretário de Estado, quer os Presidentes das Administrações Regionais de Saúde tivemos de contactar muito para transferir doentes, para melhorar e expandir a rede do Serviço Nacional de Saúde. Houve uma grande aproximação ao SNS e aos seus profissionais.

E como político?

Enquanto político, amadureceu-me para a vida. Amadureceu-me pensar que a visão de um político deve ser a de defender os seus cidadãos e de ter uma visão holística, integrada. Acima de tudo [precisa] de sentir que não é o próprio que importa, mas que é o país e os seus cidadãos que importam. É isso que deve interpretar um político, não é a imagem própria — até porque as pessoas passam, mas o legado está naquilo que se faz e se fez em função do país, em função dos cidadãos.

"Nunca recusarei nada a qualquer nível de missão pública. Acho que qualquer político deve estar com sentido de missão pública, portanto qualquer político deve estar disponível para qualquer coisa que lhe seja pedida a qualquer nível"

 

A ministra da saúde tem sido dos elementos mais escrutinados ao longo desta pandemia, questionando-se por vezes se não estaria à beira da demissão. Aceitaria substituí-la caso isso acontecesse?

Deixe-me dizer-lhe o seguinte: a senhora ministra da Saúde é uma excelente ministra da Saúde. Acima de tudo, pela sua grande capacidade de trabalho. Eu acho que nós devemos ter sempre as nossas expectativas em função do que é a nossa vida real, só assim é que somos felizes. As minhas expectativas atuais são equilibradas com o meu nível de atuação atual e por isso estou feliz, estou motivado e estou empenhado naquilo que faço. Estou com ambição de colaborar com a senhora ministra, de forma coesa, para levarmos a bom termo esta perceção. Nunca recusarei nada que o meu país me peça. Nunca recusarei nada a qualquer nível de missão pública. Acho que qualquer político deve estar com sentido de missão pública, portanto qualquer político deve estar disponível para qualquer coisa que lhe seja pedida a qualquer nível.