George Bogdanov nasceu em Plovdiv, na Bulgária, a 14 de novembro de 1969. Os pais divorciaram-se quando tinha 7 anos e a irmã 5. Conta que na Bulgária em 1977, ser filho de pais divorciados era extremamente raro e não era visto com bons olhos pelas comunidades e pela sociedade. No seu caso admite que talvez tenha sido por isso que começou o seu interesse pela área dos direitos humanos e pelos direitos da criança em particular.

No final da adolescência começou por estudar gestão ligada às artes. Trabalhava paralelamente num Centro Juvenil onde desenvolvia atividades comunitárias, diversas artes e trabalho criativo com crianças e jovens, particularmente para uma organização caritativa direcionada para o apoio a lares para crianças abandonadas. Foi aí que nasceu a motivação para trabalhar como assistente social vocacionado para o apoio a crianças e famílias. Ingressou por isso no curso de Serviço Social e posteriormente concluiu o doutoramento em Antropologia Social com uma dissertação em torno da relação das redes sociais com a discriminação das comunidades ciganas através da edição de notícias falsas e da desinformação.

Assume-se como um humanista que procura auxílio para as suas preocupações na leitura, “principalmente naquelas que revelam a existência humana” e que poderão servir de ferramenta para a transformação como “The New Peoplemaking, de Virginia Satir, ou “The Skills of Helping Individuals, Families, Groups, and Communities”, de Lawrence Shulman, ambos sem tradução para o português.

É um defensor acérrimo dos direitos da criança que sente ameaçados no mundo, tal como os direitos humanos em geral. Foi com os direitos da criança e a pobreza das crianças na Bulgária que começamos.

George, não tenho bem a certeza sobre quando nos conhecemos, mas creio que foi em 2009, quando assumiste o lugar de Diretor Executivo da National Network for Children (NNC). Quais achas que foram os principais impactos dessa rede no teu país, a Bulgária, particularmente na promoção dos direitos da criança e no combate à pobreza infantil?

Fui diretor executivo da NNC durante quase 15 anos, dirigi a NNC desde o tempo em que era uma iniciativa voluntária até ao momento em que se tornou a rede mais forte para a promoção dos direitos da criança, tanto na Bulgária como nos Balcãs. Quando comecei na NNC em 2009, eram 12 instituições na organização e hoje são 130 organizações e indivíduos. Apesar das limitações para as ONG na Bulgária e dos recentes ataques contra ativistas dos direitos da criança, a NNC catalisou algumas das reformas mais importantes nas políticas para a infância na Bulgária, como a desinstitucionalização de crianças, a reforma da educação e a reforma da justiça de menores. Em média, a NNC elabora anualmente mais de 70 pareceres, cartas abertas e comunicados sobre temas importantes para as crianças e para as famílias.

"Era comum a justiça punir os pais através dos filhos e muito facilmente algumas dessas crianças e jovens acabavam em internatos."

De que forma a história da Bulgária no século XX impactou a situação das crianças até 1989, altura em que caiu o Muro de Berlim?

Antes da queda do Muro de Berlim, não existiam problemas na Bulgária, ou pelo menos era o que se dizia. Não haviam órfãos ou crianças abandonadas. Em novembro de 1989, descobriu-se que afinal existiam 30 000 crianças distribuídas por mais de 300 grandes instituições para crianças. Algumas dessas casas localizavam-se em locais remotos e escondidos, longe dos olhos do grande público. Era comum a justiça punir os pais através dos filhos e muito facilmente algumas dessas crianças e jovens acabavam em internatos. Quando comecei a trabalhar nessa área, em 1995, vi muita dor; as crianças que eram separadas dos pais e andavam de casa em casa. Para as crianças abandonadas pelos pais, ninguém procurava famílias adoptantes porque não existia ainda um sistema de proteção de crianças. O sistema de proteção começou a ser desenhado apenas a partir de 2001. Até então não se sabia claramente qual era o papel do técnico social e daquilo que trataria a ação social.

Em 2007, a Bulgária aderiu à União Europeia – quais eram as principais expectativas de adesão e que balanço fazes hoje?

Sem dúvida, a entrada da Bulgária na União Europeia foi um grande sucesso para a classe política búlgara. Contudo, por outro lado, o nosso país não estava totalmente preparado para entrar na União. A Bulgária assumiu demasiados compromissos com a UE. Por exemplo, ao nível do Estado de direito, e ainda hoje, a Bulgária tem problemas enormes relacionados com a corrupção e convulsões políticas. No entanto, os benefícios da adesão da Bulgária são enormes, tanto em termos de projetos de infra-estruturas como em termos económicos e sociais.

"Na Bulgária existiam cerca de trinta mil crianças em lares de infância e juventude, hoje são menos de duas mil."

E relativamente ao sistema de acolhimento de crianças e jovens, a adesão teve um impacto claro no modo como são prestados os cuidados às crianças que por algum motivo não possam estar aos cuidados dos pais biológicos? Quais foram as principais mudanças?

A Bulgária iniciou o sistema de acolhimento para crianças em 1998 na sequência de um empréstimo do Banco Mundial, acompanhado por uma série de reformas legislativas. O sucesso, indiscutível, deste processo foi o facto das Organizações Não Governamentais (ONG’s) que prestavam serviços financiadas por diferentes doadores privados serem também incluídas como prestadoras de serviços. A possibilidade das ONGs transformarem-se em prestadoras de serviços, beneficiárias de fundos públicos, foi um exemplo de boas práticas para os países da Europa Central e do Leste.

A adesão à UE empurrou o governo para a tomada de medidas no sentido de encerrar grandes instituições que prestassem “cuidados” a crianças e adultos. Em 1998, com a adopção da Lei da Assistência Social (SAA) e dos seus regulamentos, foi introduzido o conceito de “serviços centrados na comunidade”. Segundo a SAA, os serviços sociais poderiam ser prestados em instituições especializadas e na comunidade. Seriam fornecidos pelo estado, pelos municípios e por outros prestadores mencionados na Agência de Assistência Social. Ao adoptar esta lei, as autoridades locais passaram a desempenhar um papel melhor delimitado no processo de prestação de serviços, tornando-se assim atores fundamentais, por exemplo, no processo de desinstitucionalização. Embora a descentralização fosse uma pré-condição muito positiva para alternar o sistema de acolhimento, existem ainda um grande número de instituições antiquadas financiadas pelo governo. As respostas centradas na comunidade começaram a ser desenvolvidas lentamente durante os últimos 15 anos.

Como referi, na Bulgária existiam cerca de trinta mil crianças em lares de infância e juventude, hoje são menos de duas mil. Lançaram-se projectos enormes que favoreceram a desinstitucionalização e que passaram pelo encerramento de grandes instituições de acolhimento residencial de crianças e jovens, criaram-se casas para pequenos grupos, promoveram-se serviços na comunidade para apoiarem as famílias e as crianças em risco.

Como funciona o sistema de proteção para as crianças privadas de cuidados parentais?

O sistema de proteção da criança é centralizado e liderado pela Agência de Assistência Social, que criou Departamentos de Proteção da Criança (DPC). Os DPCs tratam dos casos de crianças sem cuidados parentais ou de todas as crianças sinalizadas por estarem em risco. Os técnicos sociais do DPC encaminham as crianças e as famílias para serviços sociais específicos de acordo com as suas necessidades. Podem ser casas vocacionadas para pequenos grupos, famílias de acolhimento, centros de emergência ou centros de acolhimento para crianças com deficiência/incapacidade. Os casos são reavaliados a cada 6 meses.

"Em todas as campanhas de propaganda, as crianças são utilizadas como ferramenta. Isto é especialmente evidente em países como a Bulgária, a Polónia, a Hungria, a Sérvia e muitos outros países onde a propaganda russa é particularmente forte".

És muito ativo na Eurochild, e também nas regiões dos Balcãs e do Mar Negro, que assumem as políticas de protecção da criança como um investimento e não como uma política de assistência social. Como vês o teu papel e que lições poderão outros Estados-membros europeus tirar deste modelo de coligações - de ONGs a funcionarem em rede?

Em geral, penso que hoje em dia todos os defensores e organizações dos direitos da criança deveriam unir-se. Há uma ampla frente aberta contra os direitos da criança, aos quais os detratores opõem os direitos dos pais. Além disso, em todas as campanhas de propaganda, as crianças são utilizadas como ferramenta. Isto é especialmente evidente em países como a Bulgária, a Polónia, a Hungria, a Sérvia e muitos outros países onde a propaganda russa é particularmente forte. Não só precisamos de trabalhar para construir redes e sistemas de proteção de crianças e jovens mais fortes, mas também precisamos de trabalhar muito mais ativamente com os políticos para incluir as questões das crianças em todas as políticas governamentais.

A Bulgária também é bem conhecida pelos muitos desafios que enfrenta na inclusão de crianças ciganas. Qual é a situação atual dessas crianças?

Segundo dados da Comissão Europeia, estima-se que 750.000 ciganos vivam na Bulgária, o que representa 10,33% da população total. Enfrentam discriminação severa num país onde a ECRI (Comissão Europeia Contra o Racismo e Intolerância) constatou que o discurso de ódio racista e intolerante continua a aumentar e que os ciganos são frequentemente sujeitos a violência racial.

O ERRC (Centro Europeu para os Direitos da Pessoa Cigana) publicou um relatório sobre a situação das crianças ciganas entregues aos cuidados do Estado em cinco países (Bulgária, República Checa, Eslováquia, Roménia e Moldávia) que destacava as falhas na diminuição do número de crianças ciganas ao cuidado do Estado, bem como a falta de progressos significativos no encerramento definitivo de instituições. A retirada de crianças ciganas das suas famílias é frequente, seja por razões de grande pobreza, seja pela incapacidade dos técnicos sociais e do sistema de apoio social do Estado falhar no fornecimento de apoio adequado aos pais. Para os mais pobres, sem qualquer fonte de rendimentos, as condições de vida são particularmente delicadas e as crianças correm o risco de serem negligenciadas em habitações sobrelotadas, sem acesso a água potável e saneamento, onde muitas das vezes não há electricidade nem aquecimento. As crianças nestes ambientes estão frequentemente subnutridas, faltam aos exames médicos e às vacinações obrigatórias. Muitas vezes estão expostas a ambientes de alto risco. Não existem estatísticas sobre quantas crianças ciganas estarão aos cuidados do sistema de acolhimento, mas o relatório mencionado acima, baseado em entrevistas, estimou que 45% dos entrevistados disseram “50/50” ou “mais de metade”; 35% dos inquiridos afirmaram que as crianças ciganas em instituições estavam “sobre-representadas” e estimaram o número em cerca de 80-85%.

"Uma em cada três crianças na Bulgária vive em risco de pobreza e de exclusão social."

Como é que é vista na Bulgária a guerra na Ucrânia e quais os impactos que sentes na tua vida quotidiana enquanto técnico e especialista em Direitos Humanos?

A National Network for Children comunicou a sua posição, imediatamente após o início da guerra, sobre a agressão militar da Federação Russa à República da Ucrânia. Expressamos numa carta oficial enviada ao Presidente, ao Primeiro-Ministro, ao Presidente da Assembleia Nacional, ao Embaixador da Ucrânia e ao Embaixador da Federação Russa na Bulgária.

Desde o início da guerra, mais de 1 milhão de refugiados ucranianos passaram pela Bulgária e, neste momento, existem cerca de 72 000 no país. Desde fevereiro de 2022, cerca de 40-45% são crianças, algumas delas praticamente desacompanhadas, e entre as restantes há uma proporção muito grande de mulheres grávidas que também necessitam de protecção e de apoio especial. Nos primeiros dois meses do conflito, vieram tantas crianças ucranianas para a Bulgária que a população infantil do país cresceu 2%.

A National Network for Children foi e continua a ser uma das principais organizações a monitorizar e a garantir a proteção dos direitos das crianças refugiadas da Ucrânia durante o conflito militar, juntamente com as suas famílias em locais espalhados por todo o país. Temos também agido no sentido de defender a melhoria e facilitação de todos os procedimentos de acesso a cuidados de saúde, educação, ação social, proteção à criança, assistência jurídica, ajuda humanitária e alojamento. Nas condições atuais de uma crise política sem precedentes no país e nos governos provisórios, o setor não governamental revelou-se por vezes o único destinatário e garante da ajuda aos refugiados.

Apoiámos mais de 800 cidadãos ucranianos, famílias com crianças que procuram proteção contra a guerra na Ucrânia no nosso país e não conseguem satisfazer as suas necessidades. Em 2022, implementamos um projeto de desenvolvimento na primeira infância destinado a apoiar crianças refugiadas da Ucrânia. O projeto utiliza a capacidade e o poder interno da própria comunidade ucraniana. Mais de 90 especialistas ucranianos – psicólogos, pediatras, terapeutas, professores e pais – trabalham como consultores familiares e facilitadores de grupos e apoiam crianças ucranianas com deficiência/incapacidade e em risco e os seus pais em 27 locais na Bulgária; em junho de 2023, foram prestadas mais de 2.000 consultas, mais de 1.000 crianças de 0 a 7 anos, das quais mais de 450 com deficiência e em risco foram apoiadas.

Os processos que conduziram à recente Estratégia da UE sobre os Direitos da Criança e à Garantia Europeia para a Infância foram um pouco acidentados. O que achas que podemos esperar? Acreditas que todas as ações planeadas terão um impacto de igual modo eficaz em todas as crianças de todos os países, incluindo a Bulgária?

Uma em cada três crianças na Bulgária vive em risco de pobreza e de exclusão social. A pobreza implica não apenas privação material, mas também diversos desafios no acesso aos serviços básicos. As dimensões da pobreza infantil e da exclusão social na Bulgária podem ser observadas nos seguintes dados:

• Linha de pobreza: BGN 451,00 (€ 225,00)/mês por membro do agregado familiar;

• Pessoas abaixo da linha da pobreza: 23,8% (1.659.900 pessoas);

• Proporção de crianças em risco de pobreza e exclusão social: 33,3%;

• Proporção de crianças que vivem na pobreza: 28,3%;

• Percentagem de crianças que vivem em situação de privação material: 38,5%;

• Famílias numerosas em risco de pobreza: 59,2%;

• Famílias monoparentais em risco de pobreza: 39,5%;

• Alunos em risco de abandono escolar: 25% (180.000).

O ano de 2021 foi um ponto de viragem na luta contra a pobreza infantil, com o lançamento de duas iniciativas históricas, a Estratégia da UE sobre os Direitos da Criança e a Garantia Europeia para a Criança. À medida que os Estados-Membros da UE apresentavam os seus Planos de Acção Nacionais para a Garantia da Criança, a Eurochild foi partilhando destaques de cada plano que os membros, ativistas dos direitos das crianças e influenciadores podem utilizar no seu próprio trabalho para garantir que os direitos das crianças permanecem no topo das agendas políticas. O governo búlgaro apresentou o Plano de Acção Nacional (PAN) de Garantia à Criança da Bulgária a 5 de dezembro. O Plano de Ação Nacional da Garantia para a Criança da Bulgária centra-se sobretudo na:

- Educação e acolhimento na primeira infância: ampliar a rede de serviços e visitas domiciliares e as suas conexões com outros sistemas sociais; apoio a crianças com dificuldades de aprendizagem.

- Educação: melhorar o encaminhamento e admissão de crianças migrantes; promover a dessegregação; apoiar crianças com dificuldades de aprendizagem; combater o bullying e a violência

- Saúde: cuidados psiquiátricos diurnos, cuidados comunitários de saúde mental e aconselhamento aos pais; melhorar o acesso das crianças com deficiência e doenças crónicas e das crianças migrantes.

- Nutrição: apoio (voucher/cartão) a famílias vulneráveis com crianças; almoço gratuito para crianças de famílias desfavorecidas.

- Habitação: estratégia habitacional; melhorar o alojamento para crianças migrantes; apoio aos ciganos, aos migrantes e às crianças com deficiência.

- Crianças em cuidados alternativos: apoiar jovens que abandonam os cuidados e desenvolver o âmbito dos lares de acolhimento.

- Outros: Inclusão digital (especialmente em áreas rurais ou crianças com deficiência).

Pessoalmente, tenho grandes esperanças de que a Garantia para a Criança ajude muitas crianças pobres na Bulgária e nós, na NNC, trabalharemos para isso.

Para finalizar, o que gostarias de compartilhar comigo quando nos encontrássemos em 2033?

Conseguimos Sérgio! Agora as crianças são mais felizes, menos violência e pobreza e os adultos respeitam os direitos da criança!

Assim seja. Obrigado.

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