O coordenador do Centro de Acolhimento e Proteção (CAP) para vítimas de tráfico do sexo masculino, Marco Carvalho, acredita que só se está “a olhar para a ponta do icebergue” quando se fala de sinalização, sendo que, no caso das vítimas portuguesas, “ainda não se chegou a vislumbrar o icebergue sequer”.

“Os números ainda são residuais, o que é sinalizado é residual. Acredito que haja muitos casos para serem descobertos, tanto na região Centro como a nível nacional”, disse à agência Lusa o coordenador do único CAP destinado para homens, localizado em Coimbra e gerido pela Saúde em Português. A este espaço somam-se, no país, centros para mulheres e crianças.

Quase metade (42%) das 62 vítimas acolhidas no centro de Coimbra desde 2013 são portuguesas, apesar de, na sociedade, este problema estar muitas vezes associado a imigrantes que caem em redes de tráfico de seres humanos para exploração laboral ou sexual, referiu.

Quase metade das vítimas vêm da região do Alentejo e Marco Carvalho acredita que é necessário “dar uma atenção especial para o interior, onde há uma predominância da exploração agrícola”.

Para o coordenador, “quanto mais se fala deste problema, mais as pessoas estão despertas” para o fenómeno, mas ainda há um caminho a percorrer na sensibilização da população.

“Muitas vezes, nas aldeias, há um homem que trabalha para alguém, que lhe dá comida e bebida, mas não paga nada. Às vezes, é um problema cultural, porque até os exploradores dizem que estão a fazer um favor, apesar de a vítima ser explorada e agredida”, explicou.

Segundo o responsável pelo CAP, as autoridades estão muito mais sensibilizadas hoje para estes casos e os militares da GNR são “os pontas de lança” no combate a este problema.

“Às vezes, são chamados para uma situação de roubo de ovelhas, por exemplo, e deparam-se com uma situação de tráfico porque tiveram formação e estão mais alerta para os sinais”, afirmou.

A coordenadora da equipa multidisciplinar especializada (EME) da região Centro, Vera Carnapete, também considera que apenas se está a olhar para a ponta do icebergue.

“Quando começamos a falar com técnicos numa ação sobre tráfico de seres humanos é normal dizerem: ‘Então vamos falar dos outros países, porque não há tráfico em Portugal'”, relatou, referindo que “é uma realidade muito escondida”.

De acordo com Vera Carnapete, há também ainda “muito preconceito” em relação a vítimas de exploração sexual.

“Há aquela ideia de que uma mulher que está à beira da estrada, se quisesse, fugia ou pedia ajuda a um cliente”, explicou.

Sónia Araújo, também técnica da EME do Centro, considera que a abordagem das autoridades está a mudar, mas ainda se ouvem “comentários de onde não se podiam ouvir esses comentários”.

“As vítimas chegam muito assustadas e podem não ser simpáticas, se calhar até dizem um palavrão, olham para o chão e não mostram sinais de cooperação. Nesse momento, os técnicos têm de manter uma postura profissional”, frisou.

Vítima portuguesa de tráfico é normalmente explorada em quintas e pastorícia

A vítima portuguesa é, em média, mais velha do que a vítima estrangeira e necessita de mais tempo de permanência dentro do CAP.

"As vítimas portuguesas foram exploradas durante muito mais tempo - nove anos, 15 anos ou até 25 anos. São pessoas, normalmente, com problemas a nível psiquiátrico e têm uma maior vulnerabilidade para cair nestes casos de exploração", frisou o coordenador.

Em muitos casos, conta, as vítimas eram exploradas em zonas rurais, no interior do país, normalmente para trabalhar em quintas isoladas ou na pastorícia.

A esmagadora maioria dos casos de homens refere-se a vítimas de tráfico para exploração laboral, havendo em alguns casos situações de escravidão, em que a pessoa não chega a receber qualquer remuneração e é vista apenas "como um instrumento de trabalho".

Marco Carvalho recordou o caso de um pastor, numa quinta, que "durante nove anos não recebeu qualquer remuneração, era tratado como um animal e ainda lhe retiravam a pensão de invalidez".

Uma constante em todos os processos de homens portugueses que passaram pelo centro que coordena é a dependência do álcool.

"Cem por cento dos homens portugueses que aqui são acolhidos têm problemas de consumo de álcool. É uma forma de o explorador conseguir manter ali a vítima. É normal a vítima dizer que o patrão lhe dava comida, um sítio para dormir e um garrafão de vinho. A comida são restos, a dormida é uma barraca, o vinho é uma trela", salientou.

Além de aproveitar a dependência do álcool, o explorador recorre muitas vezes a agressões e ameaças.

"É normal as vítimas chegarem subnutridas e com sinais de agressões", acrescentou.

A maioria das vítimas também não tem qualquer suporte familiar - já estavam sozinhas antes de serem exploradas e é recorrente terem passado por uma situação de sem-abrigo.

Quando são acolhidos, os homens mostram sinais de stress pós-traumático, bem como terrores noturnos, sendo que o processo de integração pode demorar vários anos: "Aqui, não há prazo de saída. O tempo de intervenção varia e o importante é sair capacitado para se reintegrar na sociedade".

Sobre a dificuldade desse processo, Marco Carvalho apontou para o caso de uma vítima portuguesa. Durante cerca de seis anos, "a única convivência que teve foi com as cabras e ovelhas e com o explorador".

"Quando entram na casa de acolhimento, às vezes, é preciso educá-los desde o zero: como utilizar uma casa de banho, como utilizar uma cozinha, como estar em comunidade. É um trabalho que demora muito tempo", vincou.

Apesar de muitas vezes a exploração decorrer em locais sem uma barreira física, Marco Carvalho salienta que as vítimas acabam por estar "em prisões sem paredes".

"Há ameaças, há agressões e perdem a noção de que estão a ser explorados. Vivem um dia a seguir ao outro e interiorizam aquela rotina de passear o gado. Um deles dormia com as ovelhas, no meio do monte, e trabalhava de sol a sol. Havia uma normalização do processo", explicou.

Além disso, há sempre o medo de fugir, mesmo que não haja muros.

"Um senhor esteve nove anos numa quinta e podia fugir, mas recordava que a única vez que tentou foi quando lhe bateram mais. O controlo é muito grande", realçou.

Quem queira denunciar uma situação de tráfico de seres humanos pode ligar para a EME do Centro (918654104), Algarve (918882042), Alentejo (918654106), Lisboa (913858556) ou Norte (918654101), com serviço de atendimento 24 horas por dia.