1. CLUBE DEMOCRÁTICOS — CENTRO
2. LARGO DOS GUIMARÃES — SANTA TERESA
3. CINELÂNDIA — CENTRO
4. GABINETE PARLAMENTAR — CENTRO
5. CÂMARA DE VEREADORES DO RIO DE JANEIRO — CENTRO
6. CONCHA ACÚSTICA DA UERJ — MARACANÃ
7. APARTAMENTO DE MARCELO FREIXO — ZONA SUL
8. FAVELA NOVA HOLANDA — MARÉ
9. JARDIM DO CLA DA UNIRIO — URCA
10. CASA DE MARIELLE E MONICA — TIJUCA
No dia em que se assinala um ano da morte de Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro na noite de 14 de março de 2018, recordamos uma reportagem da jornalista Alexandra Lucas Coelho, publicada originalmente a 7 de setembro do mesmo ano.
1. CLUBE DEMOCRÁTICOS — CENTRO
O Democráticos é uma relíquia do centro histórico do Rio de Janeiro, um centro que de dia formiga com funcionários e ao anoitecer é soprado por um vento de abandono. Essa é a hora dos sem-tecto, cada vez mais neste Inverno de 2018, pico de crise económica e política, véspera de eleições gerais dramáticas. Lula da Silva, o mais popular político do Brasil, duas vezes presidente, foi impedido de se recandidatar, está preso desde 7 de Abril (ver reportagem "O país de Lula"). Três semanas antes, a 14 de Março, Marielle Franco, primeira vereadora negra carioca, foi assassinada a tiro no centro da cidade, um crime com cara de execução, que continua a ser investigado. A imagem, o nome ou o lema de Lula e Marielle estão por toda a parte: Lula Livre, Marielle Presente. Marielle já era uma figura carismática, segunda vereadora mais votada no Rio de Janeiro, mas agora é um símbolo inédito, inspirando negros, lgbt, pobres, periféricos e muitas mulheres a saltar para a política. Vou encontrar algumas esta noite, 9 de Agosto, no Democráticos.
A placa da fundação do clube indica a data 1867. Daqui saiu bloco de samba, aqui teve e tem gafieira: escadaria, salão de baile, palco com pano florido. A sessão estava marcada para as 18h. Às 19h30 ainda o pessoal está chegando, se abraçando, tomando cervejinha, pastel de queijo. Muito Rio de Janeiro.
Mas aquela moça ali, esguia, esbelta, cabeleira crespa cor-de-cobre, uma beleza, nem sempre se chamou Lana de Holanda, nem no Rio de há uns anos poderia legalizar essa mudança. E se aqui está esta noite, fazendo de Mestre de Cerimónias, é também pelo seu trabalho como assessora de Marielle, braço direito para as questões de género, um dos destaques da vereadora. Lana, 28 anos, identifica-se como mulher trans/travesti, e namora Eduardo, que se identifica como homem trans, um delicado paulista, estudante de cinema, vindo para o Rio por amor a ela. Ela (que era um ele) e ele (que era uma ela) fazem um par lindo nessa nova frente de Brasil onde o refrão, na manifestação, pode ser: “AS GAY, AS BI, AS TRANS, AS SAPATÃO / ESTÃO TODAS ORGANIZADAS PRA FAZER REVOLUÇÃO!”
Quando umas boas dezenas de pessoas já animam o salão — incluindo Monica Benicio, a mulher com quem Marielle vivia e ia casar —, Lana divide o público por regiões do Rio (Centro, Zona Oeste, Zona Sul, Zona Norte), e cada grupo se junta a identificar prioridades locais. A Zona Norte é claramente maioritária. Ou seja, aqui não domina a elite que mora ao longo das praias.
As protagonistas da noite, as duas negras, sorridentes, no convite, são Talíria Petrone e Mônica Francisco. Enquanto cada grupo debate, Talíria, um mulherão que aos 18 anos aterrou na Ilha do Pico para ser jogadora de vólei, fala-me desses dois anos que passou nos Açores. “Foi lá que me consolidei como mulher. Mas deixei o vólei para retomar a faculdade e ser professora de História. Aí, quando comecei a dar aulas, aos 21, 22 anos, entendi que a sala de aula reproduzia muita desigualdade e isso me fez organizar.” Filiou-se no PSOL (também o partido de Marielle Franco, o mais próximo do Bloco de Esquerda em Portugal). Durante anos foi militante, até em 2016 — o ano em que Dilma foi derrubada — dar o passo. “Topei ser candidata. É toda uma decisão, estar com uma vida pública, exposta.”
O que durante anos fez hesitar muita gente. Isso, e desconfiança em relação a um sistema que sempre assentou em homens brancos, uma elite de centenas de anos, herdeira do sistema escravocrata, herdeiro da colonização.
Os grupos desfazem-se, forma-se um amplo círculo de cadeiras, muita cara negra, morena, muito cabelo duro. Talíria e Mônica sentam-se ao centro, Lana organiza o salão. Talíria agarra no microfone. É uma oradora vibrante, tanto que tem de se controlar para baixar o tom. “Eleição é um instrumento para ocuparmos os espaços institucionais. Esses são tempos difíceis pra caramba. A democracia no Brasil é jovem, incompleta, nunca chegou para alguns corpos, nas favelas. E agora temos um desmonte de tudo o que é público, um avanço reaccionário, da Bancada da Bala, que mata os nossos.”
O Congresso brasileiro tem a dita Bancada da Bíblia (evangélicos), do Boi (agronegócio) e da Bala (ligada a milícias).
“Hoje temos a execução de quem luta, como a gente, que é mulher preta”, prossegue Talíria. “Este foi o último país a abolir a escravidão. Tem 130 anos supostamente sem escravidão e 300 e tantos com escravidão como lei. Um Estado forjado no patriarcado, se mostrando cada vez mais não-laico, criminalizando as religiões africanas. Os nossos corpos são políticos desde que nasceram. Mas a política se afastou das pessoas, é entendida como sendo dos engravatados. Quando a política é isto! É roda! É conversa! Nossos corpos não topam construir mandatos individuais. Têm de ser colectivos, com mecanismos de controle. A gente carrega essa história, Liberdade é não ter medo, e para a gente, que é povo preto, enfrentar o medo, tem que ter mulher preta no poder!”
Mônica Francisco pega na palavra: “A execução de Marielle coloca em nós uma responsabilidade enorme: ocupar os espaços de poder. Eles, que estão hoje no poder, têm medo da gente. 2019 não vai ser um nirvana. A gente sabe o que serão as bancadas [do Congresso que sair das eleições]. Mas também sabe que quando ocupamos, não ocupamos sozinhas. Mulheres negras estiveram à frente de sociedades inteiras, são inclusivas até à alma. Este é um tempo histórico e profético e a gente precisa ocupá-lo contra os coronéis. Não dá mais para fazer sem nós. Não tem mais como fazer política sem dialogar com as mulheres da favela. A gente está dizendo isso, e isso também é perigoso.”
O que aconteceu a Marielle paira o tempo todo, no que se diz, no que se escuta.
Avança Ivanete Silva, candidata, negra, da Baixada Fluminense, a região mais desamparada do Rio de Janeiro. “O triste legado da escravidão permanece...” começa ela. E Agosto fora, a cada debate, será isto. Mulheres negras, políticas, brasileiras, relacionando a escravidão transatlântica, fundada e liderada por Portugal ao longo de séculos, com o que é a vida delas, a morte delas, agora. Ver a escravidão como tema anacrónico é um luxo colonial. Para quem foi colonizado, ela está no corpo, dia a dia.
“Mas a história do povo negro não começa nesse rapto”, prossegue Ivanete. “Disputar o parlamento é reafirmarmos nossa História, os quilombos [territórios negros rebeldes à escravidão] em torno do quilombo principal. Nossa ancestralidade é muito forte Ninguém mais nos silenciará. Política é vida, política é o nosso quotidiano. O nosso silêncio não vai nos proteger. Resistiremos!”
Uma Rosa, da imensa Zona Oeste, toma a palavra, fala dos 36 bairros sem saneamento básico. O caderno dela diz: “Marielle Presente”. Regiane, uma mulher camelô (vendedora ambulante), negra, já madura, pesada, autocolantes de Marielle e Lula na sua mala de isopor (esferovite), deixa boquiaberto quem nunca a ouviu: “Na minha petulância, não aceito ser tratada como bandida. Temos uma lei que nos agride, oficial que nos dá tapa na cara, que manda o camelô para o hospital com traumatismo craniano.”
Pobre entre os pobres fazendo política.
2. LARGO DOS GUIMARÃES — SANTA TERESA
Na boémia de Santa Teresa, colina de veredas sinuosas e paralelepípedos, não há “black power” mais bonito à vista que o de Bruno Duarte, 31 anos festejados ontem à noite. Agora é domingo ainda de manhã, e Bruno, sem sinal de ressaca, mata o jejum com café e pão de queijo.
Nasceu no centro pobre do Rio, pai já desaparecido. Cresceu com mãe e avó numa vila com vinte casas, ocupada antes dele nascer. A avó era uma das fundadoras da ocupação, já tinha morado em abrigos. “Hoje é um lugar formal.” Bruno viveu lá toda a vida, até ir para a faculdade, “com bolsa integral, uma das bolsas do Lula”. Assim cursou Comunicação, variante Cinema, na cara, católica PUC. Trabalha há cinco anos numa organização de Direitos Humanos. E dessa plataforma viu o Brasil dar várias voltas, durante esse tempo. Mas nunca tinha visto nada como o que aconteceu com a morte de Marielle. “Movimento de solidariedade assim, não lembro.” Um antes e depois na vida do Rio.
“Muita coisa apareceu, ou ficou visível, depois da morte dela. Mesmo muito do trabalho de Marielle a gente só conheceu depois.” Houve quem “repensasse estratégias, por cautela, ficar menos exposto como indivíduo, mais como grupo”. E estamos a falar de uma cidade que já é muito tensa. “Tem essa ideia internacional de um Brasil harmonioso, mas a gente sabe que é um país muito racista, violento e nada cordial”. Mas isso não quer dizer que a morte de Marielle seja mais uma de muitas. “Era uma mulher inserida no poder institucional, uma vereadora, e antes de mais uma activista de Direitos Humanos muito actuante, apoiando lgbt, mulher, negro, famílias vítimas de violência, policiais vítimas de violência. Ela falava de questões muito estruturais.” E não tem muitos exemplos de mulher negra na política do Rio como ela. Bruno lembra dois, Benedita da Silva e Jurema Baptista. “E o primeiro deputado federal negro no Brasil foi nos anos 80!”
Então, Marielle traz, antes de mais, para jovens de pé atrás com o sistema, essa mudança. “Eu costumava desconsiderar a proposta de tentar fazer diferente dentro de uma estrutura estatal. E aí o meu olhar mudou, foi deslocado.” Como o de todas essas novas candidaturas negras, “uma explosão”. Há um marco, sublinha Bruno: “Marielle tentou fazer e foi assassinada. Mas não invalida o que conseguiu fazer num curto espaço de tempo. E precisamos bater nessa tecla de saber quem matou. Alguns sectores estão tentando fazer ouvido de mercador, mas todo o dia tem gente falando de Marielle. E infelizmente todo o dia também tem gente morrendo.”
Ninguém mais do que jovem negro. E lgbt perseguidos. E mulheres. Tudo isso conta para a luta de identidades. Bruno define-se assim: “Sou bicha preta. Bicha preta não é gay branco. Não é para dividir, mas partimos de pontos diferentes.”
As redes negras nunca foram tão fortes, independentemente do género. É da boca de Bruno que ouço pela primeira vez o termo “transição capilar” para as mulheres que deixam de alisar o cabelo. Vem isto a propósito de um filme-fenómeno em que ele esteve a trabalhar, “Kbela”, da jovem cineasta negra Yasmin Thayná, feito todo “com grana reunida na Internet”, e que acabou por chegar a Roterdão, depois de correr o Brasil em sessões independentes. “Tem pessoas negras como nunca produzindo filmes. Mas não basta a gente se organizar. As instituições precisam se repensar, porque estão ultrapassadas. A gente ganha muito no grito. Precisa gritar muito para ser ouvido. E tem casos que nem com grito. As mães com filhos vítimas de violência policial lutam há décadas. Se a gente não se mobilizar, perde tudo. Parece que a gente está sempre começando, se resgatando da invisibilidade.”
Bruno fala entusiasmado do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, que acontece no fim do mês. Zózimo era um galã negro. “Esse sonho dele, de cruzar os cineastas de África, com Caribe, Brasil está vivo.” Um marco revolucionário, como para Bruno foi o ministério da Cultura de Gilberto Gil. “Eu, um menino jovem, negro, pobre, no centro do Rio, ganhava uma bolsa para fazer oficinas de Pontos de Cultura. Eu fazia teatro. Isso foi em 2005-2006. Depois entrei para a PUC.” Como aconteceu a Marielle, também bolseira da PUC. E é tudo isso que está em causa agora. “O congelamento por 20 anos de qualquer aumento na educação, na cultura. Taxas de violência altíssimas. Pessoas desempregadas. Bolsas congeladas. Temos dias difíceis pela frente. Anos difíceis.”
3. CINELÂNDIA — CENTRO
Monica Benicio, a companheira de Marielle, começou a semana a tratar da pensão por morte. Chegou às 7h30 ao INSS (Segurança Social), ficou lá até à hora de almoço. Mas ainda não sabe se a vão considerar co-beneficiária. “A gente ia casar dia 7 de Setembro do ano que vem”, conta, enquanto tomamos café junto da Cinelândia, a praça onde Marielle trabalhava, porque é aqui que fica a Câmara do Rio de Janeiro. 7 de Setembro é dia da Independência do Brasil. “Já estávamos procurando casa para a festa, vendo orçamento. Marielle queria fazer uma União Estável [União de Facto] , mas eu disse que não precisava, fazíamos com o casamento. Por isso fiz uma União Estável pós-morte. Mas o que garante a pensão é um tempo de relacionamento de dois anos, e a gente tem 14 de tempo total. Dessa última vez, três anos.”
Porque esta história de amor tem muitas muitas separações, resistências, relações pelo meio, falta de dinheiro. É uma longa, árdua história. A história de duas mulheres que nunca tinham namorado mulher antes, e depois de muitas peripécias conseguiram enfim morar juntas, firmes. Então, Marielle foi morta.
As herdeiras são Luyara, a filha (que Marielle teve de um homem depois ausente), e Monica. A pensão caberia a ambas, dividida. Mas o primeiro pedido de Monica foi negado pelo INSS. “Eles não apresentam motivo. Mas são duas mulheres, não é?” Monica preparou novo processo. “Da primeira vez acho que houve um preconceito. Preenchemos tudo de novo. Se negarem novamente, a gente processa o Estado. Tem muitas fotos como prova. E hoje precisei levar três testemunhas, vizinhas da Maré, onde morámos juntas um ano.” Antes de Marielle ser eleita vereadora, e deixarem a favela.
A Maré, onde ambas nasceram — Monica sete anos depois de Marielle —, é um grande complexo de favelas entre o aeroporto internacional do Rio e o centro da cidade. Começou com umas estacas enfiadas na lama da Baía da Guanabara, para ficar acima da maré. Aí moraram os migrantes que vieram fazer a Avenida Brasil, grande via de entrada na cidade. E as favelas multiplicaram-se, uma colada à outra, divididas por áreas de controle dos poderes paralelos rivais, sobretudo os traficantes do Comando Vermelho e Terceiro Comando, mas também milícias.
“Eu nasci e cresci no Conjunto Esperança [conjunto habitacional no início da Maré]. Marielle também tinha morado lá em criança.” Só não são amigas de infância por causa da diferença de idade. Mas ambas as famílias têm origens nordestinas, e os pais de ambas eram amigos de infância. “Meu irmão ainda vive no Conjunto Esperança, e quando vagou um apartamento por cima fomos para lá.” Um pequeno apartamento de 40m2. Isto, na última fase, quando a relação já estava assumida e estabilizada.
Da primeira vez que experimentaram, foi às escondidas, tinha Monica 19 anos. “A gente nunca tinha ficado com outras mulheres. Passámos muito tempo entendendo o que estava a acontecer. As pessoas diziam que não era só amizade, e a gente brigava com elas e tudo. E quando ficámos juntas, demorámos sete meses a falar aos amigos mais próximos. Alugámos uma quitinete [estúdio] sem ninguém saber.” Moraram assim dois anos na Maré, Monica a preparar a entrada na faculdade, Marielle a trabalhar. “Depois nos separámos. Separámos e juntámos. Muitas idas e vindas ao longo de anos, com outras pessoas pelo meio. Problemas financeiros, como bancar escola, aluguel. E a família de Marielle é muito católica. Teve uma certa rejeição.”
Monica foi a única mulher da vida de Marielle. Nas fases de separação, as outras pessoas de Marielle foram homens. Nas fases em que estavam juntas, Monica não frequentava as festas de família nem os fins-de-semana. E Marielle ia à missa no fim de semana com a família.
Mas Monica não é ateia. Frequenta terreiro de umbanda, centro espírita Kardecista, também vai à missa católica. E Marielle não era alheia a outros cultos. “Sexta-feira ela se vestia toda de branco.” Um ritual afro-brasileiro. “Porque no processo de empoderamento feminino, negro, ela passou a ter contacto com a ancestralidade e se permitiu conhecer essas religiões. Ela se abriu. Uma mãe-de-santo lhe dava uma guia e ela andava com ela.” As guias são colares de missangas, sementes ou conchas, com um valor espiritual.
No fim de 2015 decidiram “dar um foda-se” para todos os obstáculos, as rejeições, e “levar a relação para a frente”. Marielle ainda não era vereadora. “A gente sonhava pra caramba com morar junto, casar.” E foram para o tal apartamento da Maré, no Conjunto Esperança. As duas, a filha de Marielle, e o cão, Maddox, que Marielle ofereceu a Monica. Depois, quando Marielle se tornou vereadora, no começo de 2017, mudaram-se as três e o cão para uma casinha numa antiga vila operária da Tijuca. “O que aconteceu com Marielle mudou a visão das pessoas. Eu sempre falo que tem que ter esperança. E me perguntam como eu consigo falar de esperança nesse caos em que eu vivo.”
Um caos de que Monica só falará mais a fundo na casa da Tijuca, daqui a dias. “O 14 de Março é um divisor de águas na nossa sociedade. Quando você tem essa frente de mulheres negras se posicionando, isso resignifica o 14 de Março. A barbárie de matar a única mulher preta vereadora no centro da cidade, às nove e meia da noite, é algo que rasga a democracia. Então a gente precisa disso, dessa frente, de querer saber o que aconteceu, para garantir que ainda tem democracia. Eu não me retirar, como essas mulheres não se retiram, é re-significar o 14 de Março. Essa data que podia ter-me colocado na cama, desejando morrer. O que também seria legítimo e compreensível. Mas se a gente se retira da luta está dizendo que o 14 de Março foi em vão. E eu não admito isso.”
Antes mesmo de nos revermos em casa de ambas, a intensidade com que progressivamente Monica fala, neste café, é já um vislumbre de como tudo está em carne viva. Como o dia do assassinato de Marielle foi ontem. E como falar, falar, e falar, a ajuda a manter-se viva.
“O meu papel não é só o de garantir o legado de Marielle, porque isso é feito por muita gente, essas mulheres pretas que só de saírem [para a política] já estão resistindo. Não era só uma luta de Marielle, ela era uma representante parlamentar dessa luta. Eu tenho uma vida de militância desde os 17 anos nos Direitos Humanos. Eu fazia isso ocupando o chão. Ela decidiu fazer por dentro do sistema. Eu nunca pensei nisso, mas isso tem mudado. A gente tem de mudar por dentro do sistema. Precisamos dar às pessoas o que Marielle fez por um ano e três meses. Ela era uma figura em ascensão, mas depois da morte é que se percebe como a luta dela era significativa. É esse timing da esperança que não dá para perder. Quando aparecem figuras como ela, isso quer dizer que pode haver políticos que lutam pelo povo. O meu lugar é garantir que essa esperança não seja perdida. Senão o 14 de Março vai ser só o dia da barbárie. E com isso não posso conviver.” Encara entrar na política partidária? “Nem sou filiada, mas existe uma possibilidade de me candidatar. A minha vida ficou em função das investigações [do crime], está de cabeça para baixo. Eu estava a terminar o mestrado de arquitectura…”
É bolsista integral da PUC, à semelhança de Marielle. “Estudo barreiras invisíveis, como a rua Eramildo Alves, de nove metros, que separa a Baixa do Sapateiro da Nova Holanda.” Duas favelas da Maré. “O favelado cresceu entendendo que o belo não lhe pertence. O Estado fabrica um discurso em que a favela não presta, é o feio. E como é que uma pessoa que nasce nesse contexto se relaciona com o Aterro do Flamengo [pulmão verde ao longo da Baía da Guanabara,] ou a Lagoa [um dos cenários mais belos, no meio da Zona Sul]? Com inferioridade, porque não sabe como se comportar, ou com agressividade: isso não é meu, logo não será de ninguém. Então o urbanismo pode ser uma ferramenta para que a favela possa ser costurada com a cidade. Tornar a favela mais fluida.” Uma hipótese de Monica é usar aquela pequena rua da Maré como amostra. “Outra é comparar o Rio com cidades que lidaram com a violência, como Medellín ou Bogotá.”
Tudo isto está em suspenso desde 14 de Março. E como é que Monica vê as investigações sobre o crime? “Acho que esta equipa da Polícia Civil faz um trabalho muito sério. Eles estão muito empenhados. É óbvio que cinco meses é muito tempo, mas foi um crime muito sofisticado. Não tem paralelo no Rio, tudo muito bem planejado. Existe participação de agentes do estado, com político envolvido, é um crime de poder, isso é claro. E sou radicalmente contra a federalização, botar isso nas mãos da Polícia Federal. A equipa da Civil é muito competente.” Mas pressão é essencial. “O mundo precisa saber o que aconteceu, porque isso gera pressão sobre as investigações. Cinco meses é muito tempo mas foi ontem.”
4. GABINETE PARLAMENTAR — CENTRO
Tal como Lana de Holanda no começo desta reportagem, também Alessandra Ramos não se chamou sempre Alessandra. Aos 36 anos, trans desde os 20, ela é assessora do deputado federal Jean Wyllys, primeiro activista gay no Congresso brasileiro. Um cartaz com Marielle enche a porta do gabinete deles num edifício do centro do Rio, declarando que quem ali trabalha está de luto. Por cima, uma folha manuscrita a dizer: “Marielle vive!”.
Cabelão, vozeirão, Alessandra é uma negra possante. Conheceu Marielle há dez anos, no Comité de Direitos Humanos da Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (ALERJ), liderado pelo deputado Marcelo Freixo, do PSOL, de quem Marielle foi assessora por anos. “O trabalho dela era já muito bom. A gente sempre se encontrava nas discussões sobre sistema carcerário, violência contra lgbt, violência policial, nas favelas. Mas foi uma surpresa quando ela se tornou vereadora com 46 mil votos, a mulher mais votada. E eu também não sabia que ela era lésbica. Só fiquei sabendo nessa campanha. Depois disso a gente se tornou ainda mais íntima. E começou a trabalhar ainda mais nas questões lgbt. Começámos um movimento Mulheres na Política dentro do partido. Marielle tinha vontade de se candidatar a senadora.”
Que impacto teve a sua morte? “Todo o mundo sentiu muito, principalmente mulheres negras, lésbicas e trans. Muda muito a dinâmica da luta, as forças políticas se organizaram de outra maneira. Ela foi morta por ser uma mulher negra na câmara. E a partir dessa comoção as mulheres negras começaram a se organizar. Temos esse aumento explosivo das candidaturas estaduais e federais nos partidos de esquerda, e no PT também. O que aconteceu despertou nas mulheres um sentimento de empatia, de conexão. E a gente vai ver isso nas urnas, mulheres votando em mulheres, e homens votando em mulheres. A gente vai ter uma surpresa.”
Numa das paredes do gabinete há um cartaz amarelo pela legalização do aborto, luta tão difícil que até uma presidente ex-guerrilheira e não-religiosa como Dilma escolheu evitar, por causa dos aliados conservadores. “É uma pauta considerada suja, que não dá votos”, resume Alessandra. “O projecto de legalização do aborto é de nossa autoria, tal como o de uso medicinal e recreativo da maconha. Jean [Wyllys] é o único negro gay assumido no Congresso, ele trouxe essa posição do sujeito excluído que não aceita mais se calar. Esse foi o primeiro sinal da mudança, que depois foi vindo em ondas. O assassinato de Marielle é uma resposta a esses avanços. Uma revolta das forças conservadoras. Há uma tendência mundial para o aumento do fascismo e união dessas forças. Eu vejo uma continuidade desde o golpe, para que as pessoas não tenham voz: os crimes de racismo, contra as religiões africanas, assassinato de pessoas lgbt...”
Ao mesmo tempo, o feminismo, que ainda há poucos anos no Brasil mal se via e ouvia, está cada vez mais activo e jovem, como mostram as manifestações pela legalização do aborto. Marielle também teve impacto aí? “O discurso de empoderamento feminino está muito forte. Hoje tem uma menina que pega no computador e decide o que quer fazer. É clara a presença de meninas cada vez mais jovens se tornando mulheres feministas.” Há cautela, mas acção, diz. “Ao mesmo tempo que as pessoas têm medo, elas não se vão calar. O Rio de Janeiro, estado e cidade, está numa crise profunda, a gente está sofrendo muito, mas as pessoas estão denunciando.”
E ao perigo, os lgbt estão habituados há muito, sobretudo as pessoas trans, alvo constante. “A cada dia, uma pessoa trans é assassinada no Brasil. E há uma repulsa pelos nossos corpos mesmo depois da morte.” Alessandra conta o caso de duas trans de 15 e 19 anos que foram mortas e “jogadas num armário sem refrigeração pelos funcionários da morgue, porque tinham nojo de tratar o corpo”. Aconteceu agora, na periferia carioca. “Bota num saco e joga, que vai ser enterrado como indigente, o que é comum, por conta do abandono familiar.” Estas duas se mantinham como prostitutas, “como 90 por cento das trans”. Um cliente brigou com uma e matou as duas. “Nos últimos seis meses, os números de assassinato e furto cresceram.”
O aumento/redução da violência tem variado ao longo dos meses, e o tipo de crimes também, uns diminuíram outros aumentaram. Mas com a crise política, a economia em queda, salários em atraso, desemprego a crescer, a tensão subiu nas ruas e nas favelas. “Marielle estava denunciando polícias entrarem em casa das pessoas sem mandato.” E oficialmente o Rio está sob intervenção militar, por ordem do presidente, supostamente em nome da segurança. Mas nas semanas que passei na cidade só vi soldados uma vez, na Ilha do Fundão, junto à universidade federal. “Quase não se vê o exército, é algo de papel, não muda nada na vida do carioca.”
Alessandra abriu um espaço na sua agenda para me receber, então o amigo que a vinha visitar a esta hora tem estado acompanhar a conversa, e este é o momento em que se junta a ela, por que é de trans que falamos. “O consenso neste momento é que trans e travesti é o mesmo, e cada um escolhe o nome que quer, não tem a ver com mudança física, existem mulheres trans não-operadas e travestis operados”, explica Alessandra. “Transgénero é um guarda-chuva”, sintetiza o amigo, um negro que se define como “homem trans binário” chamado Jon Mesquita. O nome Jon veio das iniciais do seu antigo nome de mulher, Jessica de Oliveira Mesquita: JOM. “Ficou Jon.” Quando lhe pergunto quando fez a transição, ele dá a melhor resposta: “A gente está sempre em transição.” Tem 26 anos e toma hormonas só há ano e meio. “Não é que nascemos num corpo errado. Nascemos num corpo trans.”
Alessandra chamava-se José Carlos. “Hoje as pessoas trans têm direitos garantidos no SNS, mas na minha época fiz aplicação de silicone industrial, que é perigoso. Procedimentos cirúrgicos sem o acompanhamento médico de hoje.” Mas hoje, diz Jon, “o atendimento ainda pode demorar dois anos”.
Os direitos de todas as pessoas lgbt eram uma das prioridades de Marielle na sua arena: o lugar para onde foi eleita.
5. CÂMARA DE VEREADORES DO RIO DE JANEIRO — CENTRO
A Cinelândia é a praça nobre do centro do Rio. Tem o Theatro Municipal, águia de ouro reluzente. Tem a Biblioteca Nacional, o Museu de Belas Artes, o cinema Odéon, a câmara. Também barracas ambulantes e muitos moradores de rua, alguns à vista em pleno dia, outros vindo ao anoitecer. E é também a praça das manifestações. Agora com uma placa de rua, daquelas azulinhas que há por todo o Rio de Janeiro, com o nome de Marielle Franco, mesmo na esquina frontal da câmara.
Entro pela lateral, acesso às galerias onde hoje será possível acompanhar a votação das cinco últimas propostas feitas por Marielle. Uma sessão extraordinária marcada para as 14h, que às 14h40 tem seis vereadores presentes e 45 ausentes. Um segurança explica que é normal, que só pelas 16h deve acontecer a votação. Entretanto, a galeria continua a encher, sobretudo, mas não apenas, com mulheres. Pelas 15h30, a galeria do público já esta cheia, e uma faixa a dizer MARIELLE PRESENTE foi pendurada no varandim, voltada para os vereadores e para a bancada de imprensa.
Se a galeria tem muitas caras negras, cabelo duro, uma das veteranas, presente em votações anteriores, é branca, com mais ar de catequista que de activista. Mas reparem no padrão da camisa dela: são formigas. Trouxe-a de propósito hoje: “É porque a gente canta: ‘Pisa ligeiro / pisa ligeiro / quem mexeu com Marielle atiçou o formigueiro’”, explica Joana, que estuda Direito. “Marielle foi mãe solteira, lutou para se formar, cumpriu o papel dessa lutadora que vem da periferia. E o Estado deixou isso acontecer. A elite branca gosta de dizer que tem de se conseguir as coisas por meritocracia. Foi o que ela fez, e o que aconteceu com ela? Muito difícil falar da realidade dos outros.”
Às 16h, com 26 vereadores presentes, 25 ausentes — continuarão a chegar nos próximos minutos — começa a sessão. O carismático Tarcísio Motta, do PSOL, parceiro de Marielle na câmara, e agora candidato a governador, fala dos cinco projectos que vão ser votados. “Está na hora de começar uma resposta política ao assassinato da nossa companheira”, diz ele, introduzindo o primeiro projecto, um espaço infantil nocturno, onde os pais e mães que trabalham de noite possam deixar os filhos. Segue-se a votação. Com um resultado que se repetirá ao longo do plenário: aprovado por larga maioria. Os temas dos projectos seguintes são: tributo a mulher negra, campanha contra assédio e violência sexual (por exemplo, nos transportes: “O transporte é público, o corpo da mulher não”), ocupações/oportunidades para menores infractores e a criação de um dossier mulher carioca (com estatísticas periódicas). No fim, a câmara aprova ainda uma homenagem: dar o nome de Marielle a uma tribuna.
Nos intervalos entre cada votação a galeria agita-se, levanta, grita lemas como “MARIELLE PRESENTE, AGORA E SEMPRE” ou “MACHISTAS, TRANSFÓBICOS, NÃO PASSARÃO”. Lá em baixo dominam os homens brancos. “Acabamos de ver aprovados cinco projectos e uma homenagem”, resume Tarcísio. “É insuficiente, mas é um passo. E não daremos nenhum passo atrás.”
Hoje é o dia em que passam cinco meses sobre o assassinato.
6. CONCHA ACÚSTICA DA UERJ — MARACANÃ
A família de Marielle nem tem notícia ainda das aprovações na câmara, porque a esta hora está à caminho da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde será feita uma homenagem à vereadora morta. Meto-me no metro e saio no Maracanã para ir ter com eles.
A UERJ é uma universidade longe das praias, e da elite. Fica na Zona Norte da cidade, junto a dois bastiões populares: o estádio do Maracanã, e a favela da Mangueira, sede de uma das mais famosas escolas de samba do mundo. Uma universidade pública, com muita gente da periferia, da favela, pioneira na adopção de quotas para negros, criadas na governação de Lula. No ano passado foi um campo de batalha contra cortes orçamentais, salários em atraso. E na Concha Acústica, ou seja o anfiteatro ao ar livre, será descerrada hoje uma placa com o nome de Marielle. Uma homenagem, com coro, cerimonial e centenas de pessoas, daqui a pouco.
Quando chego, a família de Marielle ainda está a ver o teatro interior, conduzida pela sub-reitora e outras pessoas da UERJ.
Mãe e pai — Marinete Silva e Antônio Francisco da Silva — são de uma gentileza desarmante. Inúmeros jornalistas os procuraram nos últimos cinco meses, mas eles mantêm o sorriso, e histórias na ponta da língua. “Fomos a Brasília com uma turma de formandos diplomatas”, conta Antônio. “Era o prémio Mestre da Periferia Negra, para Marielle, junto com [a escritora] Conceição Evaristo]. Temos recebido palavras de muita gente.”
E Marinete voltou há pouco de Roma. “O papa falou que ela é um símbolo”, diz, logo sendo levada pelo braço por alguém que lhe quer falar. O marido prossegue a história: “O papa pediu para saber de Lula e Marielle, então a mãe foi. Só a mãe. A mãe tem de ser a protagonista! Conversaram em português e ele deixou ela bem à vontade.” Há fotos do papa Francisco junto de Marinete, que segura uma camiseta Marielle. “O papa escutou a história dela toda”, reforça Marinete, de novo livre para a conversa. “Ele falou que estava muito preocupado com o caso dela, como defensora dos Direitos Humanos, e muito preocupado com o processo político. Com a liberdade. Falou que ia cobrar as investigações sobre a Marielle.” E de Roma Marinete voltou ao Bom Sucesso, a periferia onde a família agora mora. Mudaram da Maré para o outro lado da Avenida Brasil, bem perto.
Têm recebido solidariedade de políticos, sido contactados? “Não”, diz Antônio. “O único político que fala connosco é o deputado Marcelo Freixo, o mentor político de Marielle. Ela trabalhou dez anos no gabinete dele. Aí criou asas e voou. Já foi sozinha, com as pernas dela, com as pautas dela.”
“A filha de Marielle é nossa aluna, e a irmã dela foi nossa aluna!”, diz a enérgica sub-reitora, Tânia Netto, aproximando-se. “2017 foi um ano negro para nós [UERJ] e ela foi uma voz activa em nossa defesa.” Como está a crise na universidade? “A gente ainda está recebendo salários com 15 dias de atraso. Os alunos das quotas e os pesquisadores estão a receber com atraso.” Mas comparando com antes, menos mau. “E queremos que o lugar mais popular aqui, a Concha Acústica, tenha o nome de Marielle. Porque nós somos uma universidade para os trabalhadores. Somos a primeira que abriu aulas nocturnas e adoptou o sistema de quotas.”
Anielle, a irmã de Marielle, aparece com a filhinha. Também ela fala afavelmente com quem a solicita. Luyara, a filha de Marielle, 19 anos bem robustos, é mais reservada. Agora todos juntos, caminham pela passarela exterior até ao belo anfiteatro. O céu está azul nocturno, piscam as primeiras luzes na colina da Mangueira. Junto ao palquinho, distribuem-se camisetas Marielle/UERJ, o coro veste-as, o apresentador apronta-se, a sub-reitora descreve a Concha ao microfone como “o lugar mais democrático da UERJ”. E cabe a Anielle falar em nome da família: “Sou ‘uerjana’ com muito orgulho. A minha irmã esteve comigo nas manifestações sempre. Nenhuma outra universidade faria isso [dar o nome dela à Concha]. Têm sido cinco meses de muita luta. E uma das casas onde aprendi isso foi aqui. Minha filha Mariah, que vai fazer três anos, falou: ‘A tia virou estrelinha.’ ‘Qual?’, eu perguntei. ‘A mais forte’, ela disse. A UERJ resiste e resiste mesmo. A gente se renova. Esse luto me fez ainda mais forte. A gente vai continuar ocupando as ruas. O nosso dia-a-dia é de batalha.”
7. APARTAMENTO DE MARCELO FREIXO — ZONA SUL
Nesta mesma noite, Marcelo Freixo, o pai político de Marielle, recebe algumas dezenas de pessoas no apartamento para onde acabou de se mudar com a mulher, Antonia Pellegrino, roteirista e activista feminista. “É a primeira vez que tem tanta gente de esquerda nesse prédio”, ironiza ele, quando toda a gente se arruma numa roda. Porque se trata de um amplo apartamento na orla do Rio de Janeiro.
Marcelo é o carioca do PSOL mais conhecido. Vai no seu terceiro mandato como deputado estadual, presidiu ao Comité de Direitos Humanos, foi ele quem lançou a célebre CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) das Milícias (poder paralelo ao Estado, tal como o tráfico, que domina parte da periferia carioca). Nas eleições daqui a um mês, Freixo é candidato a deputado federal, ou seja, ao Congresso em Brasília. Poucos dias atrás, deu uma entrevista a dizer que a polícia estava a investigar uma nova hipótese sobre os eventuais mandantes do crime contra Marielle: dois deputados estaduais do MDB, actualmente presos por acusações de ligação a uma máfia de ônibus, que se quereriam vingar dele, Freixo.
O MDB é como se chama agora o desgastado PMDB, partidão do sistema brasileiro, partido-pega tudo, como se diz aqui, saco de muita gente, e cargos. Por exemplo, o partido de Temer. “Isto leva o crime para um lugar ainda pior”, diz Freixo. “Estou sendo processado pela cúpula do MDB. Está muito tenso.”
Posto isto, ele parte para um retrato do estado das coisas: “Tivemos um golpe, que é um golpe em curso. Uma intervenção militar no Rio, e todos os dados mostram que o homicídio aumentou. Tem a morte de Marielle, a prisão do Lula. O Rio vive uma prefeitura do Crivella que é muito grave, porque não há uma política pública, é um desastre completo. A cidade está destroçada nas suas instituições. E temos um presidente da República sem pingo de legitimidade, com 3% de aceitação, que é a margem de erro. Ou seja, pode não ter ninguém aprovando ele…” Risos para não chorar.
Freixo acha que “em 2016 havia uma lógica anti-esquerda muito maior”, que esse foi “o auge do desgaste do governo Dilma”, e que portanto em 2018 a esquerda tem mais hipóteses. Dá um exemplo: “Em 2016 a ideia de que houve um golpe era muito mais polémica.” Mas vê em Bolsonaro o “ódio como instrumento da política e do medo”. E na morte de Marielle isto: “É a política que mata Marielle. Ela nunca recebeu nenhuma ameaça. Não tinha a menor ideia de que corria um risco, falei com ela na véspera. E hoje ela seria candidata a vice-governadora. Mas a resposta do PSOL a esse crime foi ter 30 mulheres candidatas a deputada estadual e federal, 14 negras. Isso é uma resposta importante. No lugar do esconderijo, tem essas meninas.”
Como Renata Souza, uma negra da Maré, ex-chefe de gabinete de Marielle, que escuta sentada ao lado de Freixo, e a seguir falará. “Renata mora na Maré até hoje”, sublinha Freixo. Bem lá dentro, no coração da favela. Um lugar onde Freixo entrou a medo, não do tráfico e sim da reacção da mãe de Renata sobre a candidatura da filha, depois do que acontecera com Marielle. Mas a mãe de Renata deu um abraço a Freixo e disse: “Estou morrendo de medo, mas eu vou apoiar.” E a esta confortável plateia Renata contará que, quando estudava, só para ir de casa à faculdade acordava às 4 da manhã.
Dá muito trabalho nascer em favela. Morar em favela até hoje.
8. FAVELA NOVA HOLANDA — MARÉ
“VIDAS FAVELADAS IMPORTAM”, diz a faixa sobre a passarela da Avenida Brasil. Estou a chegar à Maré, ao fim de mais de uma hora parada no trânsito, que ainda nem é de hora de ponta, concretamente à favela Nova Holanda. Isto, para encontrar Pamela Carvalho, 25 anos e um cabelão que só ele é uma frente. A expressão “black power” fez-se para isto: a cabeça de Pamela, toda ela. Prova também de como doce vai bem com forte, porque Pamela fala doce e fala forte.
A favela onde nasceu é outra, mas sempre veio a esta, vinha ao baile funk, começou a namorar um músico daqui. “E a gente escolheu ficar aqui.” Estudou na UFRJ, a universidade federal, mestrado em Educação, trabalhou no Museu de Arte do Rio, agora no activo Centro de Artes da Maré, onde primeiro nos encontramos.
E nas idas e vindas foi-se cruzando com Marielle. “A gente se encontrava em espaços, Dia da Mulher, acto no centro da cidade… Ela sempre foi uma inspiração para mim.” O mestrado de Marielle é sobre UPP, as Unidades de Polícia Pacificadora que foram uma das bandeiras do Rio pré-Olimpíada, e agora estão num limbo. “Eu li a dissertação e fiquei encantada. As discussões que ela trazia eram muito importantes. Ela tinha uma forma de ocupar os espaços a partir dos afectos. Quando tinha de falar alto, falava, mas tentava sempre o diálogo.” Negra e mulher, Pamela viveu muitas situações de preconceito: “Dentro e fora da UFRJ, até em sala de aula, do género, será possível que esse trabalho seja seu, está muito bom…” A figura, o modo de Marielle, tornaram-se referências.
No dia em que ela foi assassinada, Pamela tinha voltado da sua aula de maracatu, um ritmo pernambucano. “Estávamos aqui a tomar uma cerveja e uma senhora disse: ‘Como assim aquela moça Marielle morreu?’ A gente ficou paralisada, achando que era mentira.” A irmã de Pamela tinha ido à reunião onde Marielle estivera antes de ser morta. Pamela ligou-lhe, ela ia no ônibus. “Quando fui para casa não consegui dormir. E no dia seguinte a gente não teve condição de trabalhar. Colocámos uma faixa preta aqui na frente. Só me lembro de chorar muito na Cinelândia, no velório. A gente se abraçava e chorava, chorava. Só chorava e se abraçava.”
Depois veio um medo. “Se a Marielle tinha tanta força e foi assassinada, qualquer um pode ser assassinado. Depois a gente começou a pensar, a fazer reuniões de gente revoltada. Foi aí que a minha vida começou a mudar. A gente organizou um acto de sair da favela e tomar a cidade, como a Marielle fez. Fechámos a Avenida Brasil. Era ocupar uma das maiores vias, a que leva a gente ao aeroporto. Esse acto serviu para nos tirar da paralisia. Marielle representava um projecto de favela diferente, a inserção de pessoas pobres, negras, faveladas na universidade, na política. A gente sentiu o recado com a morte dela, e com esse acto conseguimos responder: a gente vai sair da favela e ocupar todos os espaços possíveis. A luta foi-se espalhando. Tinha donas de casa, pais, mães. Meu pai e minha mãe só tinham ouvido falar na Marielle, agora estão procurando candidatas negras para votar. Teve essa mudança. A luta de Marielle chegou a essas pessoas sem instrução formal. Várias senhoras vêm aqui e perguntam. Então essas candidaturas de negras são um sinal, antes éramos uma, o holofote todo ficava em cima dela, agora vamos ser várias. Senti um respiro, uma responsabilidade. Marielle morreu por conta de pautas de todos nós, então a morte dela não pode ser em vão. Teve essa mudança também, de responsabilidade social: agora é que eu não descanso mais. Amigos que pensavam desistir da universidade agora pensam em não desistir, em ocupar esse lugar, nem que seja na marra.”
E Pamela só se detém porque um monte de crianças da Maré chega ao centro de artes, para um projecto. É a hora delas. Mas antes de eu partir vamos àquela esquina da favela bem voltada para os milhões de carros que passam na Avenida Brasil, onde Marielle Franco agora sorri, por cima do lixo, da calçada partida, do abandono do Estado.
9. JARDIM DO CLA DA UNIRIO — URCA
A Urca é a península onde está o Pão de Açúcar, onde nasceu o Rio de Janeiro. Morros extravagantes, negros, dourados, consoante a hora, com selva trepando. E aos pés de um deles fica um dos lugares mais espantosos para olhar o que é hoje a juventude carioca que há uns anos não estaria na universidade: o jardim do Centro de Letras e Artes (CLA) da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pensem numa praça de universidade pública encostada a uma rocha monumental, a explodir de todos os verdes e muita gente: gente morena, gente negra, gente de cabelo duro, gente que mora em periferias a duas horas de caminho, gente que mora em favelas dominadas pela milícia, pelo tráfico, gente com camisetas de luta, cabelos de luta, palavras de luta. Dá para sentir a efervescência no ar, no olhar. Esta gente está pronta.
No momento em que chego escutam a sempre vibrante Talíria Petrone — a antiga jogadora de vólei, agora candidata a deputada estadual — e Dani Monteiro, outra candidata. As duas vieram falar com os estudantes da UNIRIO, de onde seguirão para o campus da UFRJ, ao lado. E nem cinco minutos depois de eu chegar é de escravidão que se fala.
“Eu sempre digo, se não sabe do que falar, preta, olha para a tua vida”, diz Dani Monteiro, negríssima, tranças negras, violetas, azuis, crachá e autocolante de Marielle ao peito (“Marielle vive! Somos sementes”). “É muito importante falar de escravidão para entender como esse Estado foi formado. Foram quatro milhões de pessoas trazidas para aqui, um terço dos africanos retirados de África. E tidos aqui da forma mais violenta. O que manteve esses estados juntos foi a escravidão. A gente hoje tem até candidatos que dizem que os africanos também escravizaram.” Uma referência a Bolsonaro. “Sim, mas não escravizaram como um sistema económico, como o processo de desumanização feito por essa elite, que não deu nada de graça para a gente. Para a gente que acha que escravidão é uma coisa que passou há muito tempo, os negros só votam desde 1988. E isso vem de muita luta.” Dani refere-se ao facto de até à Constituição de 1988 o direito ao voto não estar assegurado. Por exemplo, os analfabetos não podiam votar, e eram uma faixa grande. “O modelo de escravidão é o que embasa o nosso sistema político. E não será superado enquanto a gente não construir uma política pública.”
Jovens negros em volta falam no “assassinato de pretos dentro da favela”, em “resgatar as nossas línguas que os portugueses foram exitosos em reprimir”, numa cidade que constrói “o Museu do Amanhã para esquecer o ontem, em cima dos nossos corpos africanos”. Referência ao museu construído para a Olimpíada junto do Cais do Valongo, o maior porto de desembarque de escravos, durante o domínio colonial. Alguém pergunta como “feminismo, comunismo e esquerda, três movimentos brancos, podem se enegrecer?” Uma estudante de Rio das Pedras — favela longínqua da Zona Oeste, dominada pelas milícias — diz que “é muito triste que a perspectiva de sair da favela venha de bandido, de tráfico, ou milícia”. Referência às ajudas que o poder paralelo dá. “Não é libertador.”
Talíria diz que “discutir aborto é discutir a vida de muitas mulheres negras e faveladas”. Para começar a responder à questão da esquerda, do feminismo, e do sentido que isso tem para quem é negro.
“A esquerda se afastou dos territórios”, reconhecem as candidatas. “Há uma complexidade de que o feminismo histórico não dá conta, porque é um feminismo europeu. Por exemplo, a dificuldade das mulheres negras em irem fazer queixa na polícia.” Que sempre significou a repressão para quem mora na favela. “A gente precisa se aproximar do povo. Não dá para chegar numa senhorinha e dizer meu corpo, minhas regras. Como não dá para ter um feminismo que explora empregada doméstica.” Mais perguntas da assistência. Mais claro tudo o que falta. “De onde a gente veio, quem somos e para onde a gente vai? A Igreja Evangélica responde a isso e por isso mobiliza tanta gente, e tantos negros. Esse acolhimento “vem irmão”, a gente tem de pegar pra a gente.” Para a esquerda.
E Talíria termina assim: “A morte de Marielle despertou um senso de urgência: de que não dá mais para ser sem a gente. Sem negro.”
10. CASA DE MARIELLE E MONICA — TIJUCA
Quando Marielle se tornou vereadora, mudou-se com Monica para esta vilazinha da Tijuca. A Tijuca é um bairro popular de classe média, um Rio tradicional, da Zona Norte, contraponto do Rio praieiro, dourado. O portão da calçada dá acesso a um longo corredor ao ar livre, e a casinha delas fica à direita, com um modesto pátio externo partilhado. Vida de quintal, pé descalço, banho de mangueira, vasos com plantas. Monica apresenta cada uma. Cuida delas. Cuidava delas. Está a cuidar de novo. É uma mulher jovem, linda, a tentar tudo para continuar viva. Maddox ajuda muito: o cachorro que Marielle deu de presente a Monica há 12 anos num dia dos namorados. Num dia das namoradas. Maddox está velhinho, mas saltita, cheira.
Entramos, sala, cozinha. Na sala, um altar, já lá vamos. Na cozinha, uma amiga que veio trazer mantimentos, depois se despede. Porque há cinco meses que é assim, os amigos trazem comida a ver se Monica come. “Eu adoro cozinhar”, diz ela, quando ficamos sozinhas. “Adorava cozinhar. Fazia marmita para a semana. Passava o domingo a cozinhar.” Para ela e Marielle levarem as marmitas. “Agora não consigo. Mas já como.” Fala disto enquanto arruma pacotes de leite, de bolachas, põe uma chaleira ao lume para fazer café. Uma vitalidade à custa de sabe ela o quê. “Nos primeiros três meses não comi. Só comi suplemento.” Aponta os sacos de pó de suplemento nutricional, junto à ração de Maddox, no chão, ao lado do frigorífico. Foi o alimento dela por três meses. “Em um mês perdi 11 quilos. O primeiro mês. Não queria nada associado a prazer. Chocolate, cerveja, vinho.” Agora come comida congelada que uma amiga traz. É tudo o que consegue. Cozinhar era parte da vida a duas.
O frigorífico está cheio dessa vida: fotos, bilhetes, iemanjás, orixás, as dietas de ambas feitas pelo nutricionista. Porque Monica levava isso muito a sério, corpo, exercício, alimentação. Fazia isso pelas duas, Marielle não ligava nenhuma. Banhos de ervas, ritual das religiões afro-brasileiras. Até aquele 14 de Março. “Fiquei muito brigada com deus. Muito.” Sorri, arruma mais pacotes, tira a chaleira do fogo. “Tentei suicídio duas vezes. Com remédio.” Coa o café. “Depois fiz as pazes com deus porque conheci pessoas maravilhosas.” Gente que cuidou dela, e cuida até hoje. “Pensei que mesmo na porrada ele ainda estava fazendo alguma coisa por mim. Mas foi difícil. Foi difícil. Falei para ele que não queria papo.” Maddox tosse de forma angustiante. “É o problema de coração dele”, diz Monica, abraçando-o, dando-lhe uma pastilha. “Ele tem um coração quatro vezes maior do que podia, toma remédio todos os dias.” Sofreu na morte de Marielle. “Durante duas semanas ficou esperando na porta, à hora que ela chegava. E fica deitado em cima dos sapatos dela.”
Agora já estão os dois sozinhos em casa, ela e Maddox. Mas isso é uma coisa só das últimas duas semanas. Durante quatro meses e meio, aqui, rolou o que Monica chama de “liga das babás”: “Sete amigos se revezavam para vir dormir.” Ela dá uma gargalhada. “Morriam de medo quando ele começava a tossir, porque ele pode morrer a qualquer momento. No meu plantão, não Maddox!, eles pediam. Porque quem é que ia me dar essa notícia, se ele morresse?! Eles rezavam para ele ficar vivo.”
Maddox vai enrolar-se na sua caminha, na sala. É lá que está o altar, a parede que Monica pintou de negro, e sobre o negro desenhou a branco o rosto de Frida Khalo, o rosto de Angela Davis, e em baixo está um São Francisco, uma foto das namoradas, um retrato de Florestan Fernandes, um bodhisattva, pedras, livros. Símbolos de luta, de beleza, de espírito. Feito quando Marielle estava viva. E por cima de tudo o lema: “Coloque amor em tudo.”
Chico Buarque canta na vitrola portátil. Monica mostra as muitas bandeiras que lhe foram dando. Os posters, os cartazes, os autocolantes por Marielle. As velas, as plantinhas, os bambus que fazem sombra no pátio interno, onde Monica estava a fazer o jardim delas. Vai buscar fotos das duas, aniversários, festas, praias, viagens. Apresenta-me a Marielinha, vestida com um babygrow que diz: “Lute como uma garota.” É uma boneca de pano igual a Marielle, feita por uma amiga, como foram feitas camisetas com frases diferentes, com a cara de Marielle. Quando Monica foi num convite à Europa falar de Marielle, levou Marielinha. E tirou fotografias com Marielinha na Torre Eiffel. Na Acrópole. Levou Marielinha aos lugares onde elas sonhavam ir juntas. Mostra as fotos, alegre, no telemóvel.
Marielle também está no braço de Monica, tatuada. E a camisa dela diz: “Seja quem você quiser.” E depois ela muda para outra que diz: “Lute como Marielle Franco.”
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