Chove mansamente e sem parar, chove sem vontade, mas com uma infinita paciência, como toda a vida, chove sobre a terra que é da mesma cor que o céu, entre verde suave e cinzento suave, e a linha do monte já há muito se apagou.

— Há muitas horas?

— Não; há muitos anos. A linha do monte apagou-se aquando da morte de Lázaro Codesal, consta que Nosso Senhor não quis que ninguém voltasse a vê-la.

Lázaro Codesal morreu em Marrocos, na posição de Tizzi-Azza; muito provavelmente matou-o um mouro da cabila de Tafersit.

Lázaro Codesal tinha grande habilidade para engravidar raparigas, também gostava de touros e tinha cabelo ruivo e olhos azuis.

De que valeu a Lázaro Codesal, que morreu jovem, não chegaria aos vinte e dois anos, manejar o pau como ninguém em cinco léguas em redor ou mais? Lázaro Codesal foi morto à traição por um mouro, foi morto enquanto a esgalhava debaixo de uma figueira, toda a gente sabe que a sombra da figueira é muito propícia para pecar em sossego; vindo-lhe pela frente, ninguém teria matado Lázaro Codesal, nem um mouro, nem um asturiano, nem um português, nem um leonês, nem ninguém. A linha do monte apagou-se quando mataram Lázaro Codesal e nunca mais se voltou a ver.

Chove com tanta monotonia como aplicação desde o dia de São Raimundo Nonato, se calhar desde antes ainda, e hoje é São Macário, que dá sorte ao jogo e às rifas. Orvalha devagar e sem parar há mais de nove meses sobre a erva do campo e os vidros da minha janela, orvalha mas não está frio, quero dizer, muito frio; se soubesse tocar violino, passaria as tardes a tocar violino, mas não sei; se soubesse tocar harmónica, passaria as tardes a tocar harmónica, mas não sei. O que sei tocar é gaita, mas não fica bem tocar gaita dentro de casa. Como não sei tocar nem violino nem harmónica, e como gaita não se deve assoprar debaixo de telhas, passo as tardes na cama a fazer porcarias com a Benicia (depois direi quem é a Benicia, a mulher que tem os mamilos como castanhas), na capital pode ir-se ao cinema ver a Lily Pons, a jovem e distinta soprano, interpretando o principal papel feminino da fita Sonho Demasiado, isto diz o jornal, mas aqui não há cinema.

No cemitério brota o manancial de água clara que lava os ossos dos mortos, e também o fígado estranhamente frio dos mortos; chamam-lhe a fonte do Miangueiro e nela os leprosos molham as carnes, para encontrar alívio. O melro canta no mesmo cipreste em que durante a noite o rouxinol entoa o seu solitário lamento. Agora já quase não há leprosos; não é como dantes, que abundavam muito e assobiavam como corujas para se avisarem uns aos outros de que os frades das missões andavam a procurá-los para lhes dar a absolvição.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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As rãs costumam acordar todos os anos depois do São José e o seu canto anuncia que pouco a pouco vai chegando a primavera com as suas más notícias e os seus trabalhos. As rãs são animaizinhos mágicos e meio supersticiosos; cozendo cabeças de rã, cinco ou seis cabeças de rã, com a flor do nardo, obtém-se um xaropezinho que levanta o ânimo e cura o mal-estar das noivas ou a comichão da virgindade. As rãs são difíceisde domesticar porque, quando estão quase domesticadas, perde-se a paciência e esborracham-se de uma vez. Policarpo, o da Bagañeira, é quem melhor domestica rãs em todo o país: rãs, melros, doninhas, raposas, tudo. Policarpo domestica tudo, até lontras e linces, quando havia linces; com o que nunca conseguiu nada foi com o javali, que é uma fera pouco sensata que não atende nem reflete. Policarpo, o da Bagañeira, a quem faltam três dedos da mão, vive em Cela do Camparrón e às vezes chega-se à beira da estrada para ver passar a camioneta de Santiago, na qual vão sempre dois ou três padres a comer figos secos. Policarpo perdeu o indicador, o médio e o anelar da mão direita em consequência da mordedura de um cavalo, mas com o mínimo e o polegar lá se vai arranjando bastante bem.

— Não posso tocar gaita nem acordeão, mas que me importa, se também não sei?

Em Orense, em casa da Petinga, há um acordeonista cego, já deve ter morrido, sim, claro, agora me lembro, morreu na primavera de 1945, mesmo uma semana depois de Hitler, que toca javas1 e marchas para entreter os cabritos, falo daquela altura; chama-se Gaudencio Beira e foi seminarista, expulsaram-no do seminário quando cegou, pouco antes de cegar completamente.

— E tem jeito para o fole?

— Podes crer, muitíssimo jeito! A verdade é que é um verdadeiro artista, é todo esmero e limpeza e sentimento, toca com muita profundidade e emoção.

Gaudencio, na casa de putas onde ganha a vida, executa um repertório de peças bastante variado, mas há uma mazurca, «Ma petite Marianne», que só tocou duas vezes, em novembro de 1936, quando mataram Afoito, e em janeiro de 1940, quando mataram Mocho. Não a quis voltar a tocar nunca mais.

— Não, não, eu sei muito bem o que faço, sei bem de mais; essa mazurca é meio amarga e não se pode andar a brincar com ela.

Benicia é sobrinha de Gaudencio Beira e meia-prima dos Gamuzos, que são nove, de Policarpo, o da Bagañeira, e do defunto Lázaro Codesal. Nas redondezas, somos todos mais ou menos família, a não ser os Carroupos, dos quais nenhum se livra de ter uma mancha de pele de porco na testa.

Chove sobre as águas do Arnego, que fazem mover azenhas e espantam tísicos, enquanto Catuxa Bainte, a louca de Martiñá, se passeia em pelota pelo outeiro Esbarrado, com as tetas molhadas e o cabelo pela cintura.

— Arreda, má rês, que estás em pecado mortal e hás de arder na caldeira do demónio!

Chove sobre as águas do Bermún, que brinca assobiando kyries e lambendo carvalhos, enquanto Fabián Minguela, ou seja, Mocho, o pássaro da morte, afia a sua navalha na pedra de amolar.

— Arreda, arreda, mau cristão, que já te pedirão contas na outra vida!

Raimundo, o dos Casandulfes, pensa que Fabián Minguela passeia pela vida as nove marcas do filho da puta.

— E quais são?

— Tem paciência, já as vais saber pouco a pouco.

O mais velho dos Gamuzos chama-se Baldomero, bem, chamava-se, porque já morreu, Baldomero Marvís Ventela, ou Fernández, outros chamam-lhe Fernández, é o mesmo, e era conhecido pelo nome de Afoito, porque era muito decidido e não tinha medo de ninguém, nem vivo nem morto. No Dia do Apóstolo de 1933, em Tecedeiras, que fica na estrada de La Gudiña para Lalín, Afoito desarmou um par de guardas civis, atou-lhes as mãos atrás das costas e entregou-os no quartel, com os mosquetões e recibo prévio. Disseram-lhe que lhe iam dar uma sova, mas depois não lha deram, e mandaram os dois guardas civis para a rua, por serem ineptos e simplórios; como não eram da terra, não se sabe de onde eram, foram-se embora e nunca mais se soube deles. Afoito tem uma tatuagem muito escandalosa pintada no braço, uma serpente vermelha e azul enroscada no corpo de uma mulher nua.

Afoito nasceu em 1906, quando foi do casamento do rei Afonso XIII, e casou aos vinte anos com Loliña Moscoso Rodríguez, mulher tão temperamental que tinha de ser segurada à força de pancada. Loliña morreu de uma maneira estúpida, pisada por um boi espantado que a esmagou contra a porta do curral. Loliña já era viúva quando morreu, há quatro ou cinco
anos que era viúva. Afoito só tem irmãos, nenhuma irmã.

Os pais dos nove Gamuzos, ou seja, Baldomero Marvís Casares, Tripeiro, e Teresa Ventela (ou Fernández) Valduide, Brincalhona, morreram em 1920, no famoso choque de comboios da estação Albares, morreram mais de cem, logo depois de terem saído meio abafados do túnel de Lazo, que é como uma sepultura sem fundo, como uma sepultura que não se enche nunca; nas redondezas disse-se que enterraram muitos ainda vivos, para poupar papel selado, mas se calhar não é verdade.

Livro: "Mazurca para Dois Mortos"

Autor: Camilo José Cela

Tradução: Salvato Telles de Menezes e M. Carlota Pracana

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 1 de junho

Preço: € 19,90

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O segundo Gamuzo é Tanis, a quem chamam Diabrete, porque pensa no mal muito depressa. Tanis está casado com Rosa Roucón, que é filha de um guarda fiscal de Orense. A Rosa dá-lhe para o anis e passa o dia todo a dormir; não é má,verdade seja dita, mas carrega um bocado no anis. Tanis cultiva a terra e cria gado como o irmão mais velho e o que lhe segue e como o primo Policarpo, o da Bagañeira, o domesticador de pássaros e rãs e animaizinhos do monte: também são besteiros por inclinação, ou seja, por gosto e não por ofício, e têm muito jeito para fazer correr os cavalos pelo monte e rapá-los e marcá-los no curral entre nuvens de pó, relinchos das duas espécies (de raiva e de espanto) e suor, muito suor. Tanis tem bom pulso e ganha sempre as apostas com os forasteiros.

[…]

O terceiro Gamuzo é Roque: embora não seja padre, chamam-lhe Clérigo de Comesaña, não se sabe porquê. Clérigo de Comesaña tem um caralho descomunal, famoso nas redondezas e do qual se fala até para lá de Ponferrada, no reino de Leão. O caralho do Clérigo de Comesaña talvez seja tão orgulhoso como o do padre de San Miguel de Buciños, que há de aparecer nesta verdadeira história a seu devido tempo. Quando se quer pasmar os viajantes, mostra-se-lhes o mosteiro de Oseira, a marca que o demónio deixou no outeiro do Cargadoiro, veem-se muito bem as suas pegadas de cabra, e a pichota de Roque, que é o que se chama uma graça de Deus.

— Vá lá, Roque, mostra o que tu sabes a estes senhores, que são um casal de Madrid. Vai um copo de aguardente.

— Que sejam dois.

— Está bem, dois.
Então, Roque desaperta a braguilha e deixa em liberdade o mandado, que lhe cai, qual raposa enforcada, até aos joelhos.

Roque, que já devia estar habituado, fica sempre um pouco envergonhado com este passe.

— A senhora desculpe, mas assim mete pouca vista.

— Como ainda não está à vontade...!

A mulher de Roque, ou seja, Chelo Domínguez, a dos Avelaíños, quando o marido lhe diz para abrir as pernas, nada disso, ata-lhe uma toalha para que não entre todo e assim se poder defender melhor.

— Valha-me São Caralhão, e que Deus nos apanhe a todas confessadas, amém, Jesus!

Ádega sabe bem tudo o que se passou, mas esteve calada durante muito tempo.

— Também não mo pode esconder, se temos o mesmo sangue.

— Não, senhor, nem quero, já o escondi durante muito tempo! Quer tomar um copito de aguardente?

— Quero, pois. Muito obrigado.

Dá gosto ver cair a litania cheia de delicadeza, é como uma litania, ouvir a paciência do orvalho sobre o campo, sobre o telhado e contra os vidros da varanda.