“Não existe um lobby gay no Vaticano, existe uma cúpula da Igreja dominada por uma maioria de homossexuais que poderíamos classificar como pertencendo à extrema-direita homofóbica”, diz o autor, ele próprio homossexual assumido.
Com 640 páginas, o livro publicado há um mês em oito línguas, é um retrato impiedoso de uma “cultura do segredo” que, segundo o investigador e jornalista francês, se desenvolveu nas últimas décadas. E paradoxalmente, nota ainda, “foi a negação da homossexualidade e a defesa da castidade e do celibato” que “contribuíram fortemente para a homossexualização da Igreja”, na sequência do movimento da “libertação sexual”. (ver recensão crítica aqui).
7 MARGENS– No Armário do Vaticano é já uma obra incontornável para se conhecer o mundo homossexual na Igreja Católica, sobretudo no Vaticano. Como sentiu o acolhimento do livro?
FRÉDÉRIC MARTEL (F.M.) – Fiquei surpreendido com o impacte que este livro teve, mesmo antes de ter saído. Publicámo-lo em simultâneo em várias línguas e sabíamos que ia suscitar debate, mas não antecipámos o tão grande número de artigos em todo o mundo. Foi uma surpresa. Será ainda preciso esperar para perceber a sua importância…
É verdade que muitas pessoas – vaticanistas, padres, bispos e cardeais –, estavam a par do que revelo. Era um segredo de polichinelo. Um segredo que, por diferentes razões, nunca tinha sido escrito. Porquê? Porque, se for um vaticanista conhecedor dos meandros do Vaticano que publica um livro deste género, no dia seguinte perde o emprego. Se é um italiano, não é menos complicado: quem vai correr o risco de o editar?… Já o referi mais do que uma vez: este livro é editado em Itália, mas (e não é um pequeno “mas”) porque é um livro de um autor francês editado em França, publicado em inglês, espanhol, holandês, português, etc… Há aqui uma espécie de massa crítica que permite fazê-lo sair também em Itália.
Por outro lado, não gosto nada de o dizer, mas é também uma realidade: este livro não podia ter sido feito por um jornalista heterossexual. Porque não entenderia os códigos da realidade que investigava, porque a organização do sistema não lhe seria acessível e ainda, e sobretudo, porque não teria a rede, os contactos que lhe permitissem entrar no Vaticano.
É por todas estas razões que o autor é um francês, alguém que não é vaticanista, e alguém que tem os códigos deste grupo [dos homossexuais]. Além do mais, alguém que não conhece muito da Igreja. Se há quatro anos me tivessem perguntado o que pensava eu do núncio, teria respondido: “núncio – isso é o quê?” Tive de fazer todo o trabalho, ler centenas de artigos…
7M – Mesmo assim é surpreendente que tenha conseguido falar com todas as pessoas que queria entrevistar, sendo que algumas delas deviam estar bem conscientes do seu objetivo…
F.M. – Não, não é verdade. Houve muitas pessoas que não me receberam e que não quiseram falar comigo…
7M – Mas nunca refere tais recusas…
F.M. – Repare: se alguém não me quer falar, está no seu direito. Mas a minha técnica de investigação é a de voltar, voltar sempre, voltar repetidamente. Venho, fico uma semana ou duas. Um mês depois volto e fico uma semana. E assim por diante. Nunca aceito um “não” como resposta. Dizem-me “não” e eu insisto mais tarde. Além disso, dispunha de um grupo de amigos que foi crescendo durante estes quatro anos e de que me servi para marcar entrevistas, abrir portas.
Finalmente, ao longo do livro utilizei 27 fontes primárias – padres ou leigos gay– que trabalham no interior do Vaticano e que me ajudaram imenso a perceber quem era quem. Com eles pude entrar em contacto com outros e pouco a pouco conhecer mais gente. Por exemplo, quando residia no Vaticano cruzava-me com este bispo e aquele cardeal. Jantava ou almoçava por vezes nas mesmas salas. Passei a ser reconhecido. As pessoas falavam comigo, criámos relações. Não se trata de amizades. Quando trabalho sou sempre jornalista, não engano ninguém, puxo do meu bloco e tiro as minhas notas. Ou então, peço autorização para gravar e o microfone fica em cima da mesa bem visível.
Mas também é verdade que nem sempre apresentei o objeto da minha investigação em todos os seus contornos. Quando entrevistava um cardeal não lhe dizia: “Bom dia eminência, chamo-me Frédéric Martel, estou a escrever um livro intitulado ‘No Armário do Vaticano’ e tenciono mostrar que vossa eminência é gay.” Não foi assim. Usei as estratégicas clássicas daquilo que chamamos jornalismo de imersão: entra-se num sistema e procura-se compreendê-lo a partir do interior.
“Um modelo espalhado por todo o mundo”
7M – Ao lê-lo, fica-se com a sensação de que mal entra no gabinete de um cardeal, por exemplo, ele se dispõe a abrir o livro da sua vida. Foi assim?
F.M. – Não diria isso… As pessoas falam-me bastante dos outros, antes de falarem de si próprias. Pessoas que falam da homossexualidade de outros cardeais é muito frequente. Mas gente que fala dela própria, é muito, muito raro. Enfim, não há um padrão. Havia gente que estava a par do que eu queria fazer, entre os quais alguns conselheiros do Papa Francisco. Mas, por exemplo, quando fui falar com o cardeal Ruini – que durante muito tempo recusou falar comigo, mas que para o fim me recebeu por duas vezes e foi muito simpático comigo –, quando falei com ele não me apresentei dizendo-lhe que ia descrever a Conferência Episcopal Italiana como uma organização homossexual!
7M – Existiu um momento a partir do qual tenha dito para si mesmo: “Está aqui! Isto vai, tenho material para escrever, vou mesmo ter o meu livro!”?
F.M. – Parti para o livro porque tinha fontes precisas. Tinha muitos amigos, alguns padres, que me descreveram em profundidade o sistema. Conhecia, desde o início, a dimensão do fenómeno. Então, disse para mim: “Ou eles estão enganados ou têm razão. Se estão enganados, bem… não haverá livro; se têm razão… é a revelação de um dos maiores segredos dos últimos 50 anos.” Nesta base, pusemo-nos ao trabalho. E é verdade, chegou um momento em que pensei: “Não vou conseguir!” Porque, para mim, nunca se tratou apenas de uma questão de recolha de informação. A informação fui-a tendo e acumulando. Quando se tem 27 padres e muitas outras pessoas que vivem há 20, 30 anos no Vaticano e que falam, reúne-se muita informação.
Informação séria, importante e segura. Acusam-me de publicar rumores, mas não é verdade. Tudo está baseado em factos. Acontece que eu não posso descrever os factos. Sou obrigado a calá-los. Não posso, não quero, apontar este e aquele cardeal e dizer: “este é gay!” Só o revelo em relação a pessoas que já morreram ou àqueles publicamente conhecidos como tal. Não o faço apenas por razões legais, mas também por razões morais: não pretendo atacar a vida privada de ninguém.
Tudo isto me obrigava a construir um processo de escrita próprio. E, é verdade, demorei muito tempo até encontrar o meu modo de escrita. Houve mesmo um momento em que pensei parar tudo e não pensar mais no livro. Chegou um verão em que me disse: “Não consigo! Não sei como escrever este livro. Nem um capítulo consigo escrever.”
Fiquei desesperado, mas como não sou do tipo depressivo, parei e fui para Roma. E foi nesse verão que muitos aspetos novos me fizeram perceber que havia vários modos de entrar no assunto: a questão da prostituição e o contacto com os prostitutos; os médicos envolvidos no tratamento da sida; o filão dos guardas-suíços; o filão da diplomacia, etc… No princípio, visava em exclusivo o Vaticano, depois percebi que havia um enorme filão na diplomacia vaticana e pus-me a viajar. O que encontrei em Espanha, no Chile, na Colômbia, em Cuba e no México foram comportamentos absolutamente semelhantes e disse para mim mesmo: “Ok! Aqui há um livro! Porque não se trata de um problema singular, um facto único, um acidente, trata-se de um padrão, um modelo que se encontra espalhado por todo o mundo.”
“Há mentiras que Francisco se recusa a aceitar, mesmo quando envolvem o clero”
7M – Pelo contrário: existiu algum momento em que sentiu que o livro podia ser posto em questão?
F.M. – Não… tive, como disse, recusas, portas fechadas, mas não tive problemas. Para explicar isso, há pessoas que dizem: “Pois claro! foi o Papa Francisco quem organizou o livro e o apoiou…” O que é, evidentemente, falso. É certo que muita gente conhecia o objeto da minha investigação e provavelmente puseram Francisco ao corrente. Mas, apesar disso, deixaram-me viver no Vaticano. Residi por vários períodos na Casa del Clero [residência de padres em Roma]. Podiam ter-me impedido. Certo: terminaria o livro na mesma. Mas não fui parado, nem creio que o meu computador tenha sido violado.
Enfim: deixaram-me trabalhar. Porquê? Talvez que uma resposta plausível seja simplesmente o facto de eu ser francês – e isso explica também alguma facilidade no acesso aos cardeais. Se fosse italiano tenho a certeza de que não me receberiam, não me falariam. Mas um francês, ainda por cima gay, não faz parte deste universo, não entende as coisas… Ao mesmo tempo é muito estranho: viram-me todos os meses durante três ou quatro anos e não se perguntaram: mas que anda este tipo bizarro a fazer por aqui?…
Quem me olhava – certos cardeais, alguns bispos, toda a gente – percebia que eu me movia numa rede homossexual – e daí resultava um certo jogo de sedução, de afeição, de amizade. Nada de especial, absolutamente normal, não mais do que o jogo de sedução normal, por exemplo entre um homem e uma mulher. E, depois, os cardeais em causa são todos velhos, muito velhos, pouca gente os visita, falam com poucas pessoas novas… E todos, todos os cardeais do Vaticano falam francês, leram Jacques Maritain, Malreaux, adoram falar francês!
Mas, apesar de ter tentado, nunca fui recebido pelos cardeais Sodano, Burke ou Bertone. Pelo contrário, nunca tentei ser recebido por Francisco.
7M – A propósito de Francisco: pensa que terá o mesmo destino que diz ter tido Bento XVI, vencido pelo rizoma homossexual?
F.M. – Para ser sincero, comecei por não gostar deste Papa. Sou um francês laico, secular e para mim, um Papa jesuíta… bem, não era mesmo para eu gostar! E depois: peronista, argentino e anti-gay um dia, pró-gay noutro. Achei que nada disto era simpático.
Depois, pouco a pouco, comecei a perceber melhor. Quando vejo estes cardeais totalmente homofóbicos que atacam Francisco, ao mesmo tempo que eles são muito estranhos nas suas relações com a homossexualidade… Quando vejo a extrema-direita eclesial que o denuncia, como na carta do arcebispo Viganò, no caso McCarrik, etc.. e o acusa de ter protegido autores de abusos sexuais, quando os implicados nessas proteções são bispos e cardeais feitos por Bento XVI e João Paulo II, digo para mim: estamos perante uma injustiça, uma cabala contra Francisco. Deste modo, mesmo não gostando deste Papa, comecei a apreciá-lo e a perceber melhor a armadilha que o envolvia.
7M – E o que quer Francisco? Sairá vencedor?
F.M. – Não sei… Em primeiro lugar depende da duração do seu pontificado. Se for Papa durante bastantes mais anos, terá mudado completamente o conjunto dos cardeais que são, atualmente, muito velhos. Se for Papa nos próximos dez anos terá nomeado a maioria do colégio cardinalício e garantido a mudança… Se não, tudo será possível, inclusive um Papa Opus Dei!
Francisco é um Papa bastante “gorbatchoviano”. Obviamente não quer destruir o sistema, quer protegê-lo (…).
7M – Que sistema?…
F.M. – A Igreja. O sistema da Igreja. Francisco não pretende fazê-lo ruir, mas percebeu, como Gorbatchov, que se há um muro de Berlim a desmoronar-se, não vai dar ordem para disparar contra as pessoas que querem passar de um lado para o outro. Ou seja, há mentiras que Francisco se recusa a aceitar, mesmo quando envolvem o clero. Deste ponto de vista, é um Papa interessante para seguir e observar. Veremos se tudo isto se termina à Gorbatchov com o desmoronar da Igreja, ou se a evolução será mais do tipo Krutchov, alguém que surge com o objetivo de reformar o sistema mas termina construindo o muro de Berlim.
“O encobrimento é o tema do meu livro”
“Há laços entre os abusos sexuais e este livro. A primeira relação decorre do facto de descrever a cultura do segredo que vem dos anos 70 e que pretende esconder a homossexualidade de um grande número de prelados e de cardeais.” Foto © António Marujo
7M – Não é este o objeto da sua investigação nem o tema do seu livro, mas que balanço faz dos resultados da cimeira sobre os abusos sexuais que se realizou no Vaticano?
F.M. – Este livro, de facto, não é sobre os abusos sexuais. Não tenho problema nenhum em que um cardeal, um bispo, ou um padre seja gay. Penso mesmo que essa devia ser uma opção entre outras e manifesto uma certa empatia por essas pessoas. Mas reconheço que há laços entre os abusos sexuais e este livro. Desde logo, a primeira relação decorre do facto de descrever essa cultura do segredo que vem dos anos 70 e que, entre outras coisas, pretende esconder a homossexualidade de um grande número de prelados e de cardeais. Nesta cultura do segredo, um certo número de abusos foram cometidos e escondidos por ela, embora a sua razão de existir não fosse essa, mas sim a de proteger o segredo da homossexualidade. E assim se percebe que as duas coisas estejam embrincadas de tal maneira que é impossível destrinçá-las.
Por outro lado, está a tornar-se evidente que um elevado número de bispos que protegem os padres pedófilos são, também eles, homossexuais. E vivem essa realidade como um mal imenso, mesmo mantendo-se castos, de tal modo que se encontram numa enorme confusão quando os escândalos da pedofilia rebentam. Daí nasce o desejo de esconder, de proteger tais casos da opinião pública. Não é a homossexualidade que tem uma relação com os abusos sexuais, é antes o encobrimento, a proteção dada aos padres pedófilos.
Finalmente: há também uma sexualidade reprimida, silenciada que se transforma num ódio de si, numa esquizofrenia que em alguns casos leva a práticas abusivas. Que, felizmente, apesar de tudo o que se fala, são felizmente raras, não envolvendo mais de dois a três por cento dos padres…
7M – O que já é muita gente…
F.M. – Sim, muita gente…
7M – … e muitas vítimas! …
F.M. – … o que é extremamente grave. Mas, à escala do número de padres, é um pequeno número, em todo o caso.
7M – Regressando à conferência e aos seus resultados: que comentários faria?
F.M. – Sempre me pareceu que a conferência deveria ter lugar. Creio que o Papa foi muito corajoso ao convocá-la, quando tem de fazer frente a uma reação tão violenta a partir do interior da Igreja. Por outro lado, é tarde e é pouco. Bem sei, mas mais vale tarde do que nunca; mais vale pouco do que nada. Por tudo isto parece-me que havia que apoiar esta iniciativa de Francisco. Mas, do meu ponto de vista, a montanha pariu um rato; há poucas propostas concretas e não é o diabo, são padres concretos que abusam…
O bispo [Charles] Scicluna respondeu a uma questão sobre o meu livro, dizendo: “Eu não faço juízos sobre a proteção, julgo crimes.” E acrescentou: ”Cada caso é um caso, cada situação é uma situação individual. Não se trata de um problema coletivo.”
Ora, eu penso exatamente o contrário. É preciso julgar os crimes e o encobrimento. O encobrimento é o tema do meu livro. Há dimensões coletivas como a castidade, o celibato, a cultura do segredo, a esquizofrenia sobre a sexualidade, os ensinamentos delirantes nos seminários que conduzem também a esta questão dos abusos. É um sistema e esse sistema conduz a estas situações.
7M – Mas por que razão nunca utiliza a chave do clericalismo para explicar esse sistema?
F.M. – Dito de outro modo e por outras pessoas: por que razão sou tão obsessivo com a questão da homossexualidade? Respondo com André Gide: “Uma obra de arte é uma ideia levada ao exagero”. Este livro não será uma obra de arte e não é certamente uma exageração. Fica muito aquém da realidade. Mas é indiscutível: eu tenho um foco. Poderia ter seguido outros dez. Mas concentrei-me exclusivamente no tema que queria tratar. Analiso múltiplas questões de modo sistemático ao longo de seis pontificados e em mais de 30 países, mas sempre a propósito do meu tema.
7M – Não posso acreditar que, entre a centena de interlocutores com que se relacionou ao longo da investigação, não tenha havido muitos que lhe tenham sugerido outras chaves de leitura do que se passa na Igreja e, nomeadamente, sobre as questões relativas ao encobrimento dos padres pedófilos…
F.M. – Certo. Várias outras chaves de leituras me foram sugeridas. E o clericalismo é uma das chaves. Nomeadamente, o clericalismo à moda de Mazarino e Richelieu, a famosa “razão de Estado”, que legitima o recurso a todos os meios possíveis para proteger uma instituição contra os ataques que vêm do exterior. Sim, há outros temas, outros prismas de análise. Como, por exemplo, a guerra entre conservadores e progressistas. Mas o meu foco era outro. E foi a ele que me dediquei.
7M – Termina a sua obra escrevendo (pág. 633): “Este livro não é contra o catolicismo, mas sim, em primeiro lugar e antes de tudo, independentemente do que possam pensar, uma crítica da comunidade gay– uma crítica da minha própria comunidade.” Não é muito evidente o que quer dizer com esta frase…
F.M. – O que é que eu denuncio? Denuncio a hipocrisia. Este é um livro sobre a hipocrisia, sobre a vida dúplice, mas focado nos homossexuais do Vaticano. Não critico a Igreja, critico estes homossexuais. É portanto uma crítica contra homossexuais, quer dizer, contra a minha própria comunidade. Esse é o meu entendimento do que é um investigador, um intelectual, um jornalista: alguém capaz de, em certos momentos, criticar os seus. Sem me querer comparar com eles, é o que Hannah Arendt faz quando critica os conselhos judaicos, André Gide ou George Orwell o comunismo, Malraux a esquerda, etc …
Não, este livro não é um produto do militantismo gay. Em primeiro lugar, porque não sou um militante gay. Sou jornalista e por acaso sou gay. Ponto. O alvo da crítica neste livro são os gay, não é a Igreja. E esta é a sua razão de existir.
7M – Contudo, a sua investigação não revela muitos homossexuais de tipo gay assumido.
F.M. – Certo. Mas se queremos compreender a questão homossexual de forma profunda e eficaz temos de ter em conta todas as dimensões em que ela se manifesta. Muitos dos cardeais com que me cruzei são homófilos, sem dúvida castos, são homossexuais à maneira dos anos 1950… A chave do livro está aí: eles têm 80, 85 anos e vivem no contexto da homossexualidade dos anos 50, não na de 2019. Para os compreender, é preciso dominar os códigos de há 70 anos. Códigos muito complexos, mesmo para mim que sou gay, mas que não vivi nesses tempos. O código da vida dupla, da mentira, dos casamentos de conveniência, da homofilia, da castidade… todo um mundo que se encontra na literatura católica desses anos: Mauriac, Maritain…, ou Gide para o mundo cristão…
7M – Ao centrar-se em exclusivo na questão da homossexualidade, dá a impressão de ter esquecido outras dimensões importantes para explicar os processos eclesiais que descreve. Por exemplo: a maioria dos padres que nos anos 70 pediram a redução ao estado laical não eram homossexuais, casaram-se e constituíram famílias heterossexuais…
F.M. – O que, paradoxalmente, confirma a minha tese.
7M – Essa agora!…
F.M. – Sim! Todo esse movimento veio reforçar o processo de homossexualização da Igreja. Com o avanço da “libertação sexual” há, de facto, muitos clérigos heterossexuais que deixam a Igreja. E, nesta, o discurso sobre o celibato vai intensificar-se. Sobretudo pelos padres homossexuais para quem a hipótese de casarem nem se coloca. A castidade, sim, é um problema para eles, o celibato não. Mas a castidade é sempre negociável. Com a sua consciência, com os seus confessores… Em todo o caso: sobre a questão da castidade, a Igreja foi sempre bastante branda.
Com o reforço da regra do celibato, o sacerdócio deixa de ser uma hipótese para muitos jovens heterossexuais e, pelo contrário, uma Igreja mais homossexualizada fica mais atraente para jovens de tendências homossexuais: é um refúgio tranquilo cheio de elementos homoeróticos…
Se quisermos ser esquemáticos e simplistas poderíamos dizer: há toda uma série de padres heterossexuais e de esquerda que partem e chegam cada vez mais candidatos eventualmente homossexuais, conservadores. João Paulo II é altamente responsável por isto: paradoxalmente, a negação da homossexualidade e a defesa da castidade e do celibato contribuíram fortemente para a homossexualização da Igreja. A Igreja montou a sua própria cilada. Acabou por se privar dos padres heterossexuais, mas também dos homossexuais. Em França, morrem todos os anos 800 padres e não há mais de 60 ordenações por ano. Atualmente, os eventuais candidatos heterossexuais não querem prescindir do casamento e os homossexuais não aceitam viver num ambiente homofóbico.
7M – Mas a crise de vocações não pode ser reduzida a essas questões: há que ter em conta todo o processo de secularização mais geral…
F.M. – De acordo. O fim do sacerdócio tem outras causas, nem nunca escrevi que a questão homossexual fosse a única. O meu contributo é o de ter trazido de forma massiva e sistemática a questão da homossexualidade ao longo de cinco pontificados e em 32 países dos cinco continentes. Eu procuro ver onde ela está presente e que efeitos produz. E creio que tem, seguramente, repercussões no sacerdócio e na atração que este suscita hoje.
“A Igreja está congelada, não sabe o que fazer nem o que dizer”
7M – Esperava que o seu livro fosse objeto de uma crítica tão benigna nos principais meios de comunicação da Igreja?
F.M. – Há mais de uma centena de artigos publicados em todo o mundo… Sim, a imprensa católica, ou a que lhe é próxima, não tem sido muito ácida. O artigo de 12 páginas saído em Le Point [revista semanal próxima de alguns meios católicos] deu o tom e foi retomado por muitos outros jornais em todo o mundo. Contudo, o livro está a ser muito atacado pela extrema-direita católica norte-americana, defendido por padres gay, atacado por padres homossexuais, muito defendido pelas correntes laicas francesas. Apesar desta centena de artigos escritos em todo o mundo, penso que ainda estamos no princípio da receção ao livro.
7M – Mas contava com esta reação tão suave por parte da imprensa católica?
F.M. – Vamos ver como evolui essa reação. As pessoas estão um pouco perturbadas… A conjuntura eclesial é muito particular. Veja, dois dias antes do livro sair, é tornada pública a sanção contra o cardeal McCarrik, no dia seguinte o núncio em Paris é atacado por encobrimento de casos de abusos sexuais, três dias depois o cardeal George Pell é condenado. A Igreja está congelada, não sabe o que fazer nem o que dizer. O livro expõe um tema em perfeita explosão! Não é possível fazer de conta. Não é possível dizer: “Tudo o que vem nesse livro é falso!”
7M – Por outro lado, como reage à crítica de alguns gays, como Frank Runie no New York Times, que o atacam afirmando que o seu livro vai servir os propósitos da ala mais conservadora e homofóbica da igreja?
F.M. – Sem responder ao que Frank escreveu, é verdade que no princípio, houve, de facto, alguma instrumentalização por essa extrema-direita cujo raciocínio foi mais ou menos este: ora bem, aí está um liberal gayacima de qualquer suspeita que confirma o que dizemos desde há uns anos. Mas, quando leram o capítulo sobre o cardeal Burke e sobre os dubia, ou sobre o arcebispo Viganò, passaram a atacar-me violentamente porque perceberam que este livro é pró-gay, contra a extrema-direita e mais pró-Francisco do que outra coisa qualquer.
No fundo, o livro mostra que não existe um lobbygayno Vaticano, existe uma cúpula da Igreja dominada por uma maioria de homossexuais que poderíamos classificar como pertencendo à extrema-direita homofóbica. E em qualquer caso, se se escreve um livro sobre um assunto escaldante e complicado, seguramente que ele será objeto de instrumentalização vinda daqui e dali. Mas vários autores gay católicos têm elogiado o livro.
O que é realmente importante é que este livro vem mudar os termos do debate sobre por que razão esta Igreja é tão homofóbica. Os homofóbicos defendiam-na, os pró-gaysatacavam-na. Eu venho dizer outra coisa: estamos perante um sistema gay. Isso explica muita coisa, mas não aquilo que uns e outros pensam.
“A Francisco poderá suceder um Brejnev”
7M – A sua investigação permite-lhe pôr em causa essa teoria do lobby gay que visa mudar a doutrina oficial da igreja?
F.M. – O que é um lobby? Um grupo de pessoas que se conhecem, se reúnem e se esforçam por promover uma causa. Não encontrei nada disso. Encontrei exatamente o inverso. Indivíduos isolados, fechados no seu armário, escondendo aos outros – incluindo os outros homossexuais – que são homossexuais. E quase sempre reproduzindo um discurso homofóbico – a melhor maneira de esconderem a sua condição. Enfim: uma maioria silenciosa, escondida, esquizofrénica e sem comando que não pretende qualquer mudança.
7M – Concorda, então, com a tese que lhe é proposta por Luigi Gioia sobre a oposição ao Papa Francisco vinda de prelados homossexuais pelo facto de o atual Papa estar a mudar tanta coisa?
F.M. – A hostilidade dos padres gay contra Francisco sempre me surpreendeu. Não conseguia compreender. Luigi explica isto muito bem e faz-nos perceber o que se passa. Por isso o citei em discurso direto. Francisco está a mudar tudo. A situação torna-se inquietante. A mudança provoca medo. O Vaticano já não é um refúgio seguro, estável e com códigos claros. Com Bento XVI tudo era claro. Tudo era estável. Podia-se ser homófilo ou homossexual desde que se conservasse casto. O código era claro e incluía ainda: para o exterior deve manter-se um discurso homofóbico. E pronto, tudo certo, pode-se contar com a proteção do sistema.
Para os padres gay no Vaticano, Francisco é um género de Khrushchov que está a mudar o sistema e a pôr a nu os seus excessos. O que os deixa em sobressalto. É por isso que eu não estou muito otimista e me inclino a pensar que ainda seja possível que a este Papa se suceda um Brejnev que venha repor as seguranças, corrigir as correções de Francisco!
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