Há sítios onde cabe toda a nossa vida. O meu é este: sento-me no lajedo, ouço os carros do outro lado dos arbustos, alimento os patos, e consigo sempre ver-me no mesmo sítio, à mesma hora, sob o mesmo vento que nunca seca a relva, um mesmo ser-estar que verte por todas as idades. Se Marc Augé diz que um lugar de transição não é lugar nenhum, que é um não-lugar, o meu não-lugar perpétuo fica a vinte minutos a pé, na maior cidade do país. São os jardins daquele senhor com um nome que me soa a viradas e valsas.
Lembro-me de aqui brincar mascarada no Carnaval aos 7, de visitar o museu aos 9, de comer batatas fritas nos bancos do anfiteatro numa excursão de estudo aos 10, e aos 14, e aos 15, de ler a Odisseia nos mesmos bancos aos 19, ainda os mesmos bancos onde me sentei num primeiro encontro aos 23. Já passei dois dias da minha vida muito curta nas salas de conferências, e até já tive formação no segundo edifício. Mas é lá fora que interessa: entre as árvores onde já me prostrei a pensar em desgostos, também penduro a minha sobrinha, fingindo que sou o Papão, fingindo que sei pintar com aguarelas, ensaiando com ela onde quero levar os filhos que hei-de ter, e conto às minhas amigas que é com ele que um dia eu quero casar.
Há alguns meses, desacreditei-me: como é que posso viver tantos inícios num sítio onde metade dos sonhos que já lá tive morreram?
Para mim, o sítio onde cabe toda a nossa vida é como um pai ou uma mãe que nos bate, mas que também nos dá colo. Às vezes dá-nos amor, noutras disciplina. Embora saibamos que nos está a observar, a verdade é que, no final, nos cabe a nós ir pelo mundo fora descobrir outros sítios e outras vidas. Depois, inevitavelmente, voltamos. Nem todas as casas têm tecto.
Um dia, tenho oitenta anos, noventa ou cem com sorte, e sou uma senhora curvada e ossuda. Deixo crescer os cabelos todos brancos, provavelmente sou viúva, os meus netos vivem noutros países onde o R não se pronuncia. Sentada no meio da relva, no meio dos jardins, à beira do lago, sei lá se com chuva, se com sol, se com noite, eu sou todos os modos de estar que já encarnei.
Tenho a certeza de que aquele sítio onde coube toda a minha vida tem comigo uma história de amor, daquelas com borboletas e com nós da barriga. Será uma história a curta e a longa distância, ameaças de compromisso e de divórcio, as maiores desilusões e as maiores alegrias, todo um passado num presente simultâneo.
Texto por Beatriz Canas Mendes. Hoje, Dia dos Namorados, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítulo, assinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão.
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