Porque é que a classe média norte-americana deve votar numa mulher que promete deixar falir os bancos que tiverem problemas, obrigar ‘Wall Street to work for Main Street’, fortalecer os sindicatos e fazer a vida negra às empresas farmacêuticas? Há duas maneiras de responder a isto. Uma é porque ela promete, ao mesmo tempo, trazer para os Estados Unidos mais empregos de alto rendimento e incentivar o ‘made in America’. A outra chama-se Donald Trump. De cada vez que alguém de bom-senso torce o nariz à eleição de Hillary Clinton, logo aparece outrém com uma fotografia de Trump. E perde-se um bocado a vontade de fazer oposição à antiga primeira-dama. George Bush, o pai, que o diga - já prometeu que vai votar por Hillary.
Há ainda uma terceira hipótese. É que a década de 90, quando o marido Bill Clinton era presidente, foi economicamente a melhor época da história dos EUA, e Hillary já avisou que, caso seja eleita, vai colocar Bill à frente de uma ‘task force’ para revitalizar a economia. É o propalado regresso de ‘two for the price of one’, que o seu marido tornou famoso logo após a eleição em 1992, quando Hillary era um valor seguro da política norte-americana, e ele lhe confiou verdadeiras pastas da Administração Federal, como a reforma da saúde ou os cuidados infantis. Mas ninguém acredita que seja possível trazer de volta os anos 90.
Dissequemos esta última hipótese. Há duas razões para não regressar à década dourada. Uma chama-se terrorismo. A outra é culpa de Bill Clinton. Na voragem da viragem do milénio, quando tudo parecia correr bem às empresas norte-americanas, o presidente cometeu aquele que terá sido o seu maior erro de análise, sem dúvida por excesso de optimismo. A lei de ‘modernização dos serviços financeiros’, que pôs termos à apertada regulamentação que vinha já desde a época do ‘new deal’ de Franklin Roosevelt, era a toalha ao tapete dos democratas face à pressão de Wall Street, que tinha vindo a ganhar terreno em Washington desde os tempos de Ronald Reagan. Ao permitir fusões entre bancos comerciais e de investimento, mais empresas seguradoras e tudo o que mexesse em dinheiro, Clinton assinava a condenação de morte do poder político às mãos do ‘trust’ financeiro. A factura chegaria, a dois tempos, entre 2003 e 2008.
Só que Hillary promete agora que vai acabar com a festa. O seu programa económico-financeiro está repleto de medidas contrárias àquelas que o seu marido deixou passar em 1999. É certo que a intensidade das mudanças – nomeadamente tecnológicas - nos anos 90 geraram um optimismo que poucos líderes poderiam ter moderado. Mais de 23 milhões de novos empregos, uma economia a crescer sustentadamente acima de 4% ao ano, ou um índice Dow Jones que subiu 309% em dois mandatos presidenciais, chegavam e sobravam para Bill Clinton estar radiante, e sair da Casa Branca como um dos mais populares presidentes de sempre. Mais: enquanto na década de 90 o rendimento médio familiar cresceu 10%, de então para cá (dados de 2014) desceu 9%.
‘Mente conservadora com coração liberal’
Mas assoberbado entre ‘impeachments’, escândalos sexuais e guerras na frente externa, Bill Clinton não terá tido o discernimento para antecipar os estragos da sua medida leviana. Mais uma vez, a História poderia ter ajudado. Não era a primeira vez que uma desregulamentação do mercado trazia a miséria aos Estados Unidos.
E curiosamente foi a conselho de uma mulher que Franklin Roosevelt fez o que fez para tirar os Estados Unidos de um buraco. A mesma Eleanor que Hillary Rodham Clinton diz ‘ouvir’ em conversas, para tomar partido e decidir o que fazer. É isso, a ‘mente conservadora com coração liberal’ que Hillary confessou um dia, ainda na juventude, ser a sua índole, em relato a um pastor da Igreja que frequentava, tem conversas transcendentais com essa espécie de mentora. Poderia ter começado mais cedo. Eleanor nunca ‘permitiria’ a desregulamentação do mercado financeiro.
Mas esse ‘pecado’ não será, de certeza, o que mais preocupa Donald Trump. Pelo contrário, o ultra-liberal multi-milionário norte-americano vive bem com a desregulamentação. Quem ficou conhecido do grande público num programa de novos talentos empresariais, em que a sua frase preferida era ‘you’re fired’ (está despedido), estará de certeza mais alerta com o que Hillary Clinton poderá reverter do pecado do marido em Wall Street. Hillary, aliás, tenta livrar-se da fama de ‘amiga de Wall Street’, que quase lhe custava a nomeação pelo Partido Democrata, em favor do senador socialista Bernie Sanders.
‘Um amor que persiste há décadas’
Pecado por pecado, Hillary Clinton não se furta a falar dos outros. No seu livro de memórias de 2003, atribuiu a decisão de continuar casada a ‘um amor que persiste há décadas’. ‘Ninguém me entende melhor e ninguém me faz rir da forma como Bill faz; mesmo depois de todos estes anos, ele ainda é a pessoa mais interessante, enérgica e plenamente viva que eu já conheci’. Por aqui, portanto, não vamos lá em matéria de desafios a Hillary Clinton, mesmo que Donald Trump tenha prometido levar para a primeira fila do debate da noite passada o antigo caso extra-conjugal de Bill Clinton, Gennifer Flowers. Hillary é, nesta matéria, um autêntico rochedo. E ela sabe - porque de política sabe - que o seu maior pico de popularidade, enquanto primeira-dama dos Estados Unidos, foi precisamente quando resistiu ao escândalo de Monica Lewinski. São assim, os americanos, mais vale conhecê-los do que entendê-los.
Voltemos a Wall Street. Apesar da inversão de marcha executada por Barack Obama, em matéria de regulamentação e criminalização da banca, o regresso do Congresso a uma maioria republicana não lhe tem facilitado a vida. E por isso, a ideia de ‘grandes demais para falir’ já custou ao orçamento federal biliões de dólares, através de fusões de capital, garantias para empréstimos, subsídios, compra de activos tóxicos, etc. Hillary Clinton respondeu com sete ‘nãos’ consecutivos, a uma pergunta recente de um jornalista sobre se ia prosseguir com esta política.
Hillary, uma das mais reconhecíveis mas menos compreendidas figuras
Mas quem é Hillary Clinton? Um livro de 2007, assinado pela lenda do jornalismo de investigação estado-unidense, Carl Bernstein (Watergate), que teve acesso a centenas de horas com Hillary e com amigos, adversários, colegas de profissão e políticos que com ela conviveram, deixou na altura, no colunista do ‘The Guardian’, a sensação ‘amarga’ de que o autor ‘não conseguiu encontrar uma linha de narrativa, uma história que suportasse e defendesse o interesse da sua pesquisa’.
A ‘bipolarizadora’ Hillary continua também a ser uma figura pouco conhecida, em termos de pensamento. ‘Ela é uma das mais reconhecíveis mas menos compreendidas figuras da política norte-americana’, afirmava um editorial da ‘Newsweek’ já em 2008. Todas as sondagens e inquéritos de opinião sobre a candidata trazem ao de cima um elevado nível de aprovação e um número quase igual ou por vezes superior de desaprovação. Quando era senadora de Nova Iorque, um estudo sobre a popularidade de todos os ocupantes da câmara alta do Capitólio, deu como resultado que ela era a quarta com mais elevada diferença de opiniões - positivas e negativas - entre os partidos representados. Os republicanos simplesmente não a suportam, os democratas gostam imenso dela.
Bill e Hillary…O que mudou entretanto?
Carla Cabrera, executiva numa companhia aérea, nascida Carla Júlio e norte-americana filha de portugueses - entende e escreve perfeitamente a língua, embora prefira exprimir-se em inglês -, sustenta que a principal diferença entre o tempo em que Bill Clinton foi Presidente e o tempo de agora ‘é a ascensão da direita mais conservadora, do tipo ‘Tea Party’. A nova-iorquina assume que ‘isso é resultado de termos um ‘blackman’ na Casa Branca’, ‘com a percepção, por parte dos brancos, de que as minorias étnicas estão a tomar conta da situação’. Na opinião desta ‘democrata registada, apoiante de Hillary Clinton’, a maior diferença entre os membros do casal Clinton é que ‘Bill é um político com um carisma natural, enquanto que Hillary definitivamente não é’.
Já para Henrique Gregório, ex-director do BES Miami e a trabalhar na alta finança norte-americana nos mais recentes 25 anos – Merril Lynch, Smith Barney, Citigroup -, a ‘era de prosperidade dos anos de Bill Clinton dificilmente se irá repetir’. ‘O crescimento económico dos anos 90 beneficiou todas as classes sociais’, defende. ‘Se a Constituição permitisse, Bill Clinton seria eleito para um terceiro mandato’. Já sobre Hillary, opina que se trata de ‘uma mulher inteligentíssima, sem o carisma do marido’. ‘É uma mulher cerebral, que tem um casamento em que ambos se apoiam mutuamente há mais de 25 anos’, refere. Para este profissional da banca, ‘quando ela se casou já sabia que Bill não é homem de uma só mulher’. Wall Street é o ‘ponto fraco’ da candidata, já que ‘aceitou pagamentos de conferências por parte de empresas cotadas’. Mas ‘as campanhas são caras’, assume Henrique Gregório.
Que Hillary Clinton teremos na Casa Branca, se for eleita?
Sem qualquer dúvida que a mentora e campeã dos serviços de saúde generalizados, a defensora da educação tendencialmente gratuita para as crianças, a mulher que sustenta sempre os direitos femininos como verdadeiros direitos humanos, a senadora que é bem vista entre os negros e que quer legalizar os milhões de emigrantes sem papéis que ainda existem nos Estados Unidos. Chegará para vencer alguém que quer quase precisamente o contrário, e que tem na classe média e alta branca, bem como nos círculos rurais, grande parte dos seus apoiantes?
Hillary é considerada bastante urbana, nada chegada à cultura ‘country’ que faz as delícias de muitos dos seus compatriotas, e com a qual chegou a gozar certo dia. Não nega que se escusou a casar com Bill Clinton das primeiras vezes em que ele se propôs, porque tinha receio de perder a independência e o convívio cultural da grande cidade. Terá dito um dia que finalmente aceitou partilhar a vida ‘com um saloio excepcionalmente inteligente do Arkansas’. Não parece arrependida. Os remorsos e as reconsiderações guarda-os, como já disse, para o apoio à guerra no Iraque que deu, enquanto senadora, a George W. Bush, e à errada análise das primaveras árabes, enquanto secretária de Estado de Obama.
Nota: Este texto foi escrito antes do debate eleitoral da madrugada desta terça-feira. O qual prometia pelo menos uma coisa - bater recordes de audiência. A indústria televisiva agradece. Quanto aos eleitores, saberemos a seu tempo.
Comentários