“O Brasil não vive uma distopia na proporção [do livro “Desta Terra Nada Vai Sobrar…”], mas já vive. Já vive no sentido, inclusive, de que está aí [no poder] um regime, que não está nomeado, mas é um fascismo”, disse à agência Lusa o histórico escritor brasileiro, autor de “Zero”, obra censurada durante a ditadura militar (1964-1985).
“Num determinado momento [do novo livro], eu digo: ‘finalmente foi eleito o primeiro presidente sem cérebro no país’ (…). Eu estava adivinhando. O Presidente sem cérebro já chegou. Sem cérebro, sem sentimentos, sem nada”, acrescentou.
Loyola Brandão concedeu uma entrevista exclusiva à agência Lusa durante a terceira edição da Festa Literária do Pelourinho (Flipelô), realizada em Salvador, entre 07 e 11 de agosto, na qual fez muitas críticas ao atual chefe de Estado brasileiro, Jair Bolsonaro.
Em “Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela”, o escritor constrói uma narrativa sobre a história de amor das personagens Clara e Felipe, que vivem no Brasil num futuro indeterminado.
O romance descreve um país em que, ao nascer, todas as pessoas recebem ‘tornozeleiras’ eletrónicas (pulseiras eletrónicas), são seguidas, vigiadas, fiscalizadas por câmaras.
Há também uma epidemia que, além de matar, dissolve os corpos. Circulam, atrapalhando o trânsito, comboios malcheirosos carregados de cadáveres e de uma espécie de ‘gosma’ composta pelo que sobrou das vítimas da epidemia.
Nesse romance, os ministérios da Educação, Cultura, Direitos Humanos e Meio Ambiente estão extintos e as escolas foram abolidas.
A política, nesse Brasil fictício, é descrita como algo tão complexo que existem 1.080 partidos. E, no entanto, ninguém governa verdadeiramente o país.
Ignácio de Loyola Brandão, Prémio Jabuti 2008, contou à Lusa que, com devidas ressalvas, este é o livro mais ‘louco’ que jamais escreveu.
“Este é o livro mais ‘louco’, entre aspas, mais ‘irreal’, entre aspas, mais fantástico [que já escrevi], porque — olhe em volta –, tudo isto [que está no livro] já está acontecendo. Claro que eu exagero, uso a imaginação, a fantasia, e levo ao absurdo (…) Eu uso a ficção, mas esta ficção também é o dia-a-dia, o real”, disparou.
O romance foi publicado em Portugal, no início do ano, pela editora Teodolito, e, no Brasil, pela Global, no final do ano passado.
Falando sobre a repercussão fora do país, Loyola Brandão fez questão de mencionar que o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, incluiu o seu romance entre os títulos que levava para ler nas férias, na resposta ao inquérito do jornal Público.
Questionado sobre a possibilidade de haver censura na literatura brasileira, dada a polarização política e os ataques contra expressões de pensamentos divergentes, o autor disse acreditar que já existe uma espécie de “filtro cultural” em órgãos públicos.
Como exemplo desta perceção, Loyola citou o caso de um livro que seria editado por um instituto ligado ao Itamaraty (nome por que é conhecido o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, vindo do palácio onde está sediado). O livro sobre Alexandre de Gusmão (1695-1753), diplomata brasileiro reconhecido por negociar em nome do Império Português o Tratado de Madrid com a Espanha, não chegou a ser publicado, porque o prefácio foi escrito pelo ex-embaixador e ex-ministro brasileiro Rubens Ricupero, conselheiro de Tancredo Neves em 1984-1985, um reconhecido crítico do atual Governo.
“Temo que a censura volte, porque ela já está vindo”, disse Loyola Brandão à agência Lusa. “Vivemos um momento muito delicado, muito triste. Eu nos meus 83 anos, nunca vivi isto. Vivi na ditadura militar, mas isto [censura] era aberto”, declarou à Lusa.
Nascido em Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, em 1936, Ignácio de Loyola Brandão estreou-se nas Letras em 1965, com o livro de contos “Depois do Sol”, mas foi com o romance “Zero” e o seu “realismo feroz”, como a crítica o descreveu, que se destacou. A obra foi proibida no Brasil, mas publicada em países como Alemanha, Espanha, EUA, Reino Unido.
Cronista no jornal Estado de S. Paulo, editor da revista Planeta na década de 1970, durante a ditadura, a sua obra literária soma cerca de quatro dezenas de títulos, nos mais diferentes géneros, entre romance, conto, crónica, teatro, biografia, livros de viagens e literatura infanto-juvenil.
Membro da Academia Brasileira de Letras recebeu, entre outros prémios, o da União Brasileira de Escritores e o da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prémio Fundação Biblioteca Nacional e o Prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra, além do Prémio Jabuti.
Na entrevista à Lusa, Loyola Brandão defendeu que os escritores e outros profissionais que trabalham na área da Cultura deveriam posicionar-se politicamente.
“[O papel do escritor] é escrever, tentando lucidez. Tentando mostrar para o seu leitor — cada um mostrar para o seu leitor — o que estamos vivendo. Não só escrever, mas falar também. [Os escritores] precisam de ir para todas as feiras literárias, para todas as aulas, como fizemos durante a ditadura”, ponderou.
“Na ditadura não falávamos de literatura, falávamos de política. Eu, por exemplo, levava todos os textos proibidos e lia, porque eu tinha [os textos] na mão. O escritor tem também de resistir, também falar. Também [devem fazer isto] o ator, o diretor [o encenador], o cineasta, o entrevistador, o jornalista, todo mundo. Temos de tomar cuidado, porque estamos ameaçados”, concluiu.
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