Quando pelo mundo vários países estão a tomar medidas mais ou menos drásticas de isolamento social como resposta à propagação do novo coronavírus, causador da doença Covid-19, o Reino Unido tem optado por uma abordagem algo diferente. Mas nem por isso mais clara.
Para entendermos o que tem sido defendido, recuemos até à quinta-feira passada, 12 de março.
Nesse dia, Boris Johnson, depois de uma reunião com o gabinete de gestão de crise (vulgarmente conhecido, no Reino Unido, por COBRA - Cabinet Office Briefing Room A), falou aos britânicos para explicar a estratégia a adotar pelo país. De cada lado, ia acompanhado por um especialista: à sua direita, Chris Whitty, conselheiro do Governo para a área da saúde; à esquerda, Patrick Vallance, conselheiro científico. Era a disposição ideal para o pingue-pongue sintonizado de explicações que havia de se seguir.
Para aqui, interessa sobretudo uma frase de Patrick Vallance - “Sir”, de título oficial - que acabou por sobressair por estar em contracorrente relativamente ao que tem sido dito em muitos outros países fortemente afetados pelo coronavírus: “Queremos alguma imunidade na população. Temos de ter imunidade para nos protegermos disto no futuro”, afirmou.
O termo “imunidade” não mais havia de o largar. Não naquele momento, em que acabou até por não explicar a ideia a fundo, mas nos dias que se seguiram. Com Patrick Vallance a defender a adoção da lógica da imunidade de grupo e o responsável britânico pela pasta da saúde a desmenti-la (já lá vamos), o Reino Unido tem enfrentado muitas críticas, em particular pela demora a avançar para medidas mais rigorosas de combate ao novo coronavírus.
Naquela conferência de imprensa, a ideia da imunidade, não tendo sido explorada, ajudou a fundamentar algumas das medidas ali apresentadas, nomeadamente a decisão de não avançar desde logo para o isolamento social generalizado da população.
As declarações foram recebidas com estranheza por muitos. Incluindo pelos jornalistas ali presentes, que perguntaram, uma e outra vez, com que base estavam a ser tomadas as decisões.
A resposta veio clara e assertiva da boca de Boris Johnson: “Somos guiados pela ciência”. “Em todos os momentos, temos sido guiados pela ciência e vamos tomar as decisões certas no momento certo”. “Ciência” foi a palavra em que o governante insistiu. Qual é, então, o fundamento que suporta a abordagem britânica a esta pandemia?
Evidências científicas ou hipóteses académicas
“Se isolássemos absolutamente tudo, provavelmente por um período de quatro meses ou mais, conseguiríamos conter este vírus. Todos os indícios de epidemias anteriores sugerem que, quando fazemos isso e depois nos expomos de novo, volta tudo outra vez”, disse Patrick Vallance à Sky News.
“Como uma grande maioria das pessoas contrai a doença com sintomas ligeiros, queremos criar uma espécie de imunidade de grupo, para que mais pessoas se tornem imunes a esta doença e possamos reduzir a transmissão, ao mesmo tempo que protegemos os mais vulneráveis”, explicou à BBC, numa entrevista citada pelo The Guardian.
Vejamos mais uma “tradução” do conceito para ajudar a digerir bem a ideia. Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, explicou ao SAPO24: “Se vacinarmos uma proporção suficientemente elevada da população, o que acontece é que, quando chegamos a um número suficientemente baixo de pessoas não vacinadas, estas pessoas acabam por estar protegidas pelo resto da comunidade”. Porquê? Porque, no momento em que uma pessoa não vacinada contrai a doença, se à volta dela houver muitas pessoas vacinadas, a doença não se consegue transmitir e não chega a contaminar as outras (poucas) pessoas não vacinadas.
No entanto, “no caso concreto da teoria inglesa, não é a questão de as pessoas estarem vacinadas. É o facto de as pessoas terem desenvolvido imunidade” por terem contraído a doença, acrescenta Ricardo Mexia.
"Não é claro ainda que as pessoas, tendo contraído a doença [Covid-19], não a venham a desenvolver outra vez, e portanto que tenham imunidade duradoura"
E aqui, segundo o especialista português, entra o primeiro problema da estratégia inglesa: “Não é claro ainda que as pessoas, tendo contraído a doença [Covid-19], não a venham a desenvolver outra vez, e portanto que tenham imunidade duradoura”.
A possibilidade de reaparecimento do coronavírus em pessoas que já estiveram infetadas e que se tenham curado é uma questão que está a ser estudada pela comunidade científica, mas que ainda não trouxe informações conclusivas.
A abordagem da imunidade de grupo inclui ainda um segundo elemento essencial para que a estratégia funcione: é preciso isolar a população mais vulnerável - idosos e pessoas com outras doenças graves - durante o período em que a restante população, mais resistente, segue a sua vida normal. Isto para evitar que os grupos de risco sejam contaminados e contraiam a doença de forma severa, levando em muitos casos à morte, e em número tão elevado que o sistema de saúde não consiga dar resposta.
Ora, este isolamento absoluto apenas funcionará em teoria. E aqui surge o segundo problema desta estratégia. “No papel até pode fazer algum sentido, mas depois na prática é muito difícil que isso possa resultar”, considera Ricardo Mexia, que descreve a estratégia como “uma hipótese académica”.
"A imunidade populacional 'é o Plano Marshall, da Segunda Guerra Mundial. Mas primeiro temos de ganhar a guerra, e não está ganha'"
Saltamos do mundo académico para o contexto de guerra, para trazer um ponto de vista que equilibra um pouco ambas as perspetivas.
A imunidade populacional “é o Plano Marshall, da Segunda Guerra Mundial. Mas primeiro temos de ganhar a guerra, e não está ganha”. A imunidade “é importante, mas é numa segunda fase”. A comparação com o plano de ajuda económica dos EUA aos países europeus depois da Segunda Grande Guerra foi feita no programa Prós e Contras (RTP1) do dia 16 de março por Fausto Pinto, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Fausto Pinto e Pedro Simas, virologista e investigador no Instituto de Medicina Molecular também presente no programa de segunda-feira, estão de acordo: é preciso um Plano Marshall “porque não podemos estar à espera de que apareça uma vacina. (…) Temos de criar uma imunidade populacional. A melhor forma de criar imunidade populacional é com uma infeção espalhada no tempo”, nas palavras de Pedro Simas.
Como é que isso se faz?, perguntou a moderadora Fátima Campos Ferreira. “Neste momento, são medidas de contenção muito proativas e dramáticas, mas efetivas - já temos o exemplo dos outros países. E depois, ao longo do tempo, se calhar passar para uma segunda fase de medidas de contenção mais seletivas, protegendo cada vez mais os grupos de risco”, explicou o virologista.
De conceito científico a sátira
Embora a perspetiva da imunidade de grupo tenha sido defendida pelo conselheiro que acompanhou Boris Johnson na conferência de imprensa de dia 12, o responsável pela pasta da saúde no Reino Unido, Matt Hancock, veio desmentir que esta seja a estratégia do governo.
Num artigo publicado no sábado passado, dia 14, no The Telegraph, Matt Hancock deixou claro: “Temos um plano, baseado no conhecimento de cientistas de topo a nível mundial. E a imunidade de grupo não é uma parte desse plano. Esse é um conceito científico, não um objetivo ou uma estratégia”.
A hipótese foi, de resto, recebida com muitas críticas dentro e fora do Reino Unido.
Um professor de Harvard, universidade de referência norte-americana, chegou a dizer, num artigo de opinião publicado este domingo, dia 15, no The Guardian, que quando ouviu “falar do plano britânico da imunidade de grupo contra o coronavírus” pensou que se tratava de uma “sátira”.
“Nós falamos de vacinas para gerar imunidade de grupo. Então, porque é que isto é diferente? Porque isto não é uma vacina. É uma pandemia verdadeira que vai fazer com que muitas pessoas fiquem doentes, e algumas morram. Ainda que a taxa de mortalidade seja relativamente baixa, uma pequena fração de um número muito elevado não deixa de ser muita gente”, escreve William Hanage, especialista a área da epidemiologia e das doenças infecciosas.
"Optar pela ‘imunidade de grupo’ neste momento não parece uma opção viável, uma vez que irá pôr o Sistema Nacional de Saúde sob uma pressão ainda maior"
Já no Reino Unido, foi lançado um pedido a 14 de março, assinado por mais de 500 cientistas a viver e a trabalhar no país, a solicitar que sejam tomadas “medidas mais fortes no sentido do distanciamento social no Reino Unido com efeitos imediatos”. “Optar pela ‘imunidade de grupo’ neste momento não parece uma opção viável, uma vez que irá pôr o Sistema Nacional de Saúde [National Health Service - NHS, na sigla original] sob uma pressão ainda maior, arriscando mais vidas do que o necessário. Ao implementar desde já medidas de distanciamento social será possível abrandar o aumento [dos casos] dramaticamente e milhares de vidas poderão ser poupadas”, pode ler-se na carta.
Além disso, está a decorrer, no site do parlamento britânico, uma petição, assinada para mais de 650 mil cidadãos (à hora a que este artigo é publicado), a pedir ao Governo que feche as escolas e as universidades, havendo pais a queixar-se de que o país não está a fazer o suficiente para travar o vírus.
De volta à ciência como guia
De falta de coerência Boris Johnson não pode ser acusado - pelo menos no que a guiar-se pelos resultados de estudos científicos diz respeito. Mesmo que as indicações apontem em direções diferentes.
Esta segunda-feira, dia 16, foi publicado um estudo pela equipa da Imperial College de resposta ao coronavírus, liderado por Neil Ferguson, especialista na propagação de doenças contagiosas, sobre o impacto de intervenções não farmacêuticas na redução da mortalidade pelo Covid-19 e do esforço exigido aos cuidados de saúde.
Esta investigação foi o motor que conduziu o Governo a anunciar medidas mais restritivas para conter a doença provocada pelo novo coronavírus. Diz o estudo que, um plano de controlo que envolva apenas o isolamento dos casos suspeitos mas não imponha restrições para o resto da sociedade pode resultar na morte de 250 mil pessoas.
Boris Johnson não esperou mais. No mesmo dia em que o estudo foi publicado, o Governo britânico avançou precisamente para estratégias mais apertadas, semelhantes às que têm vindo a ser tomadas em muitos outros países. O primeiro-ministro urgiu as pessoas a adotar medidas de distanciamento social, solicitando que se isolem durante 14 dias se tiverem sintomas, deixando de sair, incluindo para comprar alimentos ou outros bens essenciais, sobretudo idosos com mais de 70 anos, mulheres grávidas e pessoas com outros problemas de saúde.
O primeiro-ministro apelou ainda às pessoas em geral para reduzirem as deslocações e os contactos sociais, trabalhando a partir de casa e deixando de frequentar bares, restaurantes, teatro e outro tipo de locais públicos.
Depois de primeiro tentar conter e atenuar o ritmo de infeções, o objetivo das autoridades é agora de “suprimir” o contágio, tendo Vallance estimado que o resultado destas medidas deverá ser visível dentro de duas a três semanas.
Sobre o possível encerramento de escolas, o Executivo não avançou logo para a medida, justificando que esta teria uma série de consequências “complicadas", na medida em que levaria as crianças a ficarem à guarda dos avós, considerados um grupo vulnerável ao vírus, ou à necessidade de os pais faltarem aos empregos no serviço nacional de saúde. Entretanto, perante o agravamento da situação no país, Boris Johnson anunciou esta quarta-feira a decisão de decretar o encerramento dos estabelecimentos de ensino a partir da próxima sexta-feira.
O Reino Unido contabiliza já mais de 2600 casos positivos com o coronavírus confirmados e de 100 mortes.
(Artigo atualizado às 20h08 - Alteração para incluir a decisão de encerrar as escolas, que foi tomada esta quarta-feira pelo Governo britânico, e para atualizar o número de pessoas infetadas no país)
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