Conta a História que foi na noite do dia 1 de julho de 1419 que João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo chegaram à Madeira. Sendo noite, esperaram que se fizesse manhã para desembarcar e, logo nesse dia primeiro, celebraram missa e iniciaram a exploração da terra que tinham pela frente. Melhor fora, sabendo-se hoje ao detalhe a morfologia da ilha, que tivessem decidido manter a jornada pelo mar já que certamente seria mais fácil do que desbravar terreno numa ilha com um comprimento máximo (oeste-este) de 53,9 quilómetros — qualquer coisa como ir de Lisboa à Ericeira e uma largura máxima (norte-sul) de 23 quilómetros — pouco mais que uma ida e volta do Porto a Gaia.
A Madeira é mar antes de terra e não apenas por ser uma ilha. É preciso percorrer os onze concelhos da ponta este à oeste para se perceber a autoridade da natureza e por que razão foram precisos mais de cinco séculos para que os homens, a engenharia e os fundos comunitários tornassem transitável em terra o que sempre foi em mar mediante uma composição de túneis que gerou uma ilha dentro da ilha intervalada por pedaços de céu.
Mas o mar é o mesmo de há 600 anos e hoje, como então, basta espreitar por cima do ombro para dar com ele azul, azul sempre. Se não o virmos, é quase de certeza porque estamos apenas a espreitar por cima do ombro errado. E sendo este o ano em que se assinalam 600 anos da descoberta da Madeira, seria uma espécie de heresia pensar a data sem pensar no caminho feito de mar. O que já será menos óbvio é que o roteiro de um pensamento que tem a lógica cartesiana começasse em Viana do Castelo, passasse por Lisboa, chegasse à Madeira e fosse terminar nas Canárias. Que é exatamente o percurso da regata Discoveries Race 2019, organizada pela Cofradía Europea de la Vela que integra as comemorações dos 600 anos do Descobrimento das ilhas da Madeira e Porto Santo e que realiza este domingo a sua última etapa com partida do Funchal.
"É no mar, não é na terra”
Vamos por partes.
A Cofradía Europea de la Vela, primeiro. Junta apaixonados por mar, a maioria com percurso prévio na marinha. Apresenta-se como um “think tank” formado por um grupo de especialistas em vela, independente de qualquer entidade política ou económica. Ao Funchal chegou representada pelos confrades Francisco Quiroga Martinez e António Bossa Dionísio, um espanhol e um português que rumaram até à ilha para acompanhar a última etapa da Discoveries Race 2019, a prova que idealizaram como homenagem “aos grandes países descobridores e aos territórios descobertos”. Descobertos não conquistados, provavelmente um detalhe para organizadores mas não para todos. E uma declaração de intenções, a de conseguir com a prova fomentar “amizade e igualdade entre amigos de distintas nacionalidades unidos por uma paixão comum, o mar”.
Ora esta última parte é que a se torna impossível de não compreender ao fim de poucos dias na Madeira. Aqui o mar entra pelas conversas como as fajãs entram pelo oceano. É um acidente natural e virtuoso. Junta pessoas diferentes em histórias comuns que envolvem barcos, pessoas que conduzem barcos, outras pessoas que encontram noutros barcos e que, assim contado, fazem parecer o imenso oceano uma espécie de bairro onde se conhecem os cantos da vizinhança.
Francisco Quiroga Martinez, o Grão Mestre da Cofradía Europea de la Vela (ou Confraria Europeia da Vela), dizia no discurso que marcou o arranque formal da etapa no Museu Quinta das Cruzes, em pleno coração do Funchal, que “é no mar que se celebram os grandes navegadores, não é na terra”. Mas, na realidade, na Madeira basta ser-se substantivo, os adjetivos são adereços. É no mar que se celebra ser madeirense e é natural que quem é do Pico do Areeiro, da Ponta de São Lourenço ou do coração da ilha não saiba contar a sua história sem que, de alguma forma, tropece no mar.
O que nos leva ao segundo ponto, a partida.
A Discoveries Race celebra os 600 anos da Madeira, mas saiu de Viana do Castelo e navegou 192 milhas até chegar a Lisboa, mais precisamente a Cascais, de onde depois largou para Belém em direção à Madeira, local que acolhe entre 7 e 11 de agosto os velejadores e comitiva, até iniciarem a 3.ª etapa, em direção ao arquipélago das Canárias, com fecho em Las Palmas.
Coloquem os vossos pins no mapa e a geografia vai dizer-vos que são todos pontos marítimos, com tradição do mar e, uma vez que a Cofradía junta 32 países e mais de 680 membros, pontua também aqui na junção de dois países, sobretudo quando se trata de falar de descobertas com seis séculos. Mas, tão ou mais interessante, é a história que a geografia não conta e que, neste caso concreto, torna próximas a continental Viana e a insular Madeira, sobretudo quando se olha para o trabalho desenvolvido por entidades como a Associação Regional de Vela da Madeira. Que por estes dias está na sua plena força, com os “mesmos de sempre” como disse Sérgio Jesus o presidente na cerimónia de arranque da regata, mas que na maior parte dos outros dias do ano leva o mar terra dentro para o espaço onde tudo começa, a escola.
E é aqui que Viana se tornou uma referência enquanto experiência educativa ao colocar a vela como desporto escolar, integrada nos planos curriculares, a partir de um programa desenhado por Ernâni Lopes. Por aqui, na Madeira, a ideia tem vindo a ganhar forma com iniciativas como o Velix, programa de promoção da vela, mas a ideia é fazer mais.
No domingo, as quinze embarcações incluindo as tripuladas por equipas de instrução naval portuguesa, como a Polar e a Zarco, sairão às 16 horas do Funchal, com tempo ameno depois de um sábado de chuva se a previsão meteorológica não falhar. Rumarão às Canárias e é aí que fazemos o terceiro ponto de paragem nesta nossa narrativa.
Nas ilhas fala-se de ilhas e lá do outro lado, nessa massa continental, está a península. Vamos por isto em números: o Funchal está a cerca de 685 quilómetros da costa africana (Marrocos), a 891 quilómetros da ilha de Santa Maria nos Açores, a 973 quilómetros de Lisboa e a "meros" 520 quilómetros da Gran Canaria.
As Canárias são espanholas mas são irmãs atlânticas, também elas um pedaço de terra que o mar define. Os mais experientes velejadores da Madeira conhecem bem o caminho. Já lá foram não uma, não duas, ou mais vezes. É ir mais longe que as Desertas ou Selvagens das redondezas. É promessa de uma viagem com história (como são todas, também é importante que se diga).
E é aí que todos se vão encontrar depois de largarem do Funchal. São 600 anos numa rota com menos de um mês mas isso já é outra história, a dos tempos modernos.
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