Localizada num andar de um prédio estreito e antigo no centro de São Paulo, a pequena igreja com paredes de cores vivas acolhe, semanalmente, fiéis transexuais. Muitos são pessoas em condição de sem abrigo, ou seja, duplamente excluídas da sociedade.
"Vivemos numa sociedade que nos maltrata, nos discrimina. Eu estou a levar esperança, um empoderamento de pessoas trans", diz Jacque Chanel, de 56 anos, nome escolhido em referência a Jackie Kennedy e à marca de luxo francesa.
No seu culto, não há fileiras. O grupo forma um círculo e aperta as mãos, enquanto a pastora, ordenada em maio pela igreja evangélica, pronuncia as orações. Atrás, uma faixa rosa e azul anuncia: "Sou trans e quero dignidade e respeito".
De sobrancelhas tatuadas, Chanel expressa-se, abrindo as mãos e olhando pelos óculos, com a firmeza de quem aprendeu com a vida. "Sofri muito para chegar até aqui", afirma.
Ela lembra-se do pastor que a acolheu na sua cidade natal, Belém (no estado do Pará), como "pai". "Não aceitava a minha transexualidade, mas pelo menos respeitava-me", conta. Até que ele foi assassinado e a conservadora igreja evangélica fechou-lhe as portas.
Esse movimento do cristianismo protestante, com o qual 30% dos brasileiros se identificam, segundo investigações recentes, defende a todo custo valores como as uniões heterossexuais e a família tradicional.
Movida pela sua fé em Deus, Chanel tentou, no entanto, retornar ao seu seio durante anos. "Não me acolhiam. Colocavam-me sempre a mão na cabeça para tirar os espíritos malignos", assegura.
Em São Paulo, para onde se mudou, conseguiu formar um grupo de fiéis com homossexuais. "Nós ficávamos atrás. Num culto, o pastor chamou-nos na frente: era para nos expulsar", recorda-se.
Mas Chanel não desistiu e continuou a bater em todas as portas até que encontrou uma igreja inclusiva, derivada de um movimento evangélico minoritário que surgiu no Brasil na década de 2000, para acolher o movimento LGBTQ+.
"Mudou a minha vida. Mas achei muito injusto. Tinha mais ou menos 300 gays e lésbicas e duas pessoas travestis. E dizia-se inclusivo?", questionou. Chanel convenceu o centro a abrir um espaço para ela, no qual chegou a reunir 200 jovens trans, e ordenou-se como pastora para inaugurar a sua própria igreja, há seis meses.
"Quando a gente vai à igreja Católica, aparece uma legião de pessoas que olham para gente, ainda mais quando a gente vai receber a hóstia. Eu me sentia muito mal. Quando venho aqui, é diferente (...) Ninguém fica olhando, ninguém olha com que roupa eu estou, ninguém fala 'é travesti'. Eu me sinto em casa", disse Vanessa Souza, de 42 anos, uma das frequentadoras do culto de Chanel, que acontecia online até há poucas semanas.
Além do "sustento espiritual", Chanel proporciona ágape aos seus fiéis, da mesma forma que, uma vez por semana, graças às doações que recebe, percorre o bairro para entregar alimentos a cerca de 200 pessoas carentes. O seu número é cada vez maior no centro de São Paulo, devido à crise econômica provocada pela pandemia da covid-19.
"Convido ao culto as pessoas trans, não trans também. É uma igreja totalmente aberta", explica a pastora. Segundo ela, as suas cerimónias foram marcadas como "satânicas" em vídeos postados na Internet por evangélicos conservadores.
Chanel ainda espera pela operação de redesignação sexual. Mas a lista de espera do pioneiro Hospital das Clínicas de São Paulo tem mais de mil pessoas, ao ritmo de uma cirurgia por mês, comenta. Ela diz, porém, não ter pressa em mudar o seu nome de batismo, Ricardo, no seu bilhete de identidade.
"É uma oportunidade para fazer pedagogia, explicar para as pessoas que perguntam", afirma. O Brasil é um dos países com mais assassinatos de transexuais no mundo, com 175 casos de homicídio registados em 2020.
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