O ex-deputado federal do PSOL, que desistiu do mandato e saiu do Brasil devido às ameaças de morte que recebeu, falava na terça-feira à noite, na Fundação José Saramago, em Lisboa, durante a apresentação do mais recente romance do escritor brasileiro editado em Portugal pela Companhia das Letras.
Jean Wyllys classificou como uma “coincidência absurda” a identificação que sentiu com o protagonista da história, separado à força da mãe, que vive a repressão da ditadura em Brasília e acaba por se exilar em França, e as semelhanças que encontrou entre a realidade retratada – entre 1968 e 1978 – e a atual.
“Impressionante como Milton começa a escrever muito antes deste abismo e como retratou este abismo. Ou, então, nunca saímos dessa sociedade homofóbica, racista, xenófoba e machista”, afirmou.
Repetindo uma frase proferida no romance por um embaixador – “A cabeça do padeiro é a cabeça do Brasil” –, Jean Wyllys considerou que esta “revela o triunfo da mediocridade”, que “hoje é hegemónica no Governo recém-eleito”.
“O livro tem essa atualidade. Espero que as novas gerações possam ler esse livro para entender o que é hoje o Brasil”, afirmou, acrescentando ter esperança de que “esta noite que começou agora com a eleição de Bolsonaro, ou ainda antes, com o ‘impeachment’ de Dilma, passe”.
Num tom mais emocionado, Jean Wyllys comparou-se com o protagonista, e narrador, Martim, que se viu afastado à força da mãe, devido à separação dos pais e à sua mudança para Brasília com o pai, uma figura rígida e machista.
O político brasileiro lembrou que está fisicamente separado da mãe por causa das ameaças de morte que sofreu e que o obrigaram ao auto-exílio, mas afirmou que antes disso já se sentia “ausente” por causa da sua homossexualidade.
“Quando uma mãe percebe cedo os sinais que o filho dá, ainda antes de ele sair do armário, acontece uma rutura e essa rutura vai marcar sempre. Há um decréscimo de amor quando se frustram as expectativas”, afirmou.
Por isso, confessou que a “rutura de Martim” o “marcou muito”, porque, tal como para a personagem, a sua mãe era “a referência” e o pai “a figura bruta” por quem nunca sentiu muito amor.
Sobre a coincidência de se viver atualmente no Brasil uma situação política semelhante à retratada no livro, Milton Hatoum explica que foi precisamente a ideia oposta que esteve na origem deste romance, escrito há mais de dez anos.
“Quando comecei a escrever o livro, pensei ‘vou deixar aqui toda a minha amargura [o autor viveu a repressão da ditadura], porque não vamos repetir. E eis que acontece isto”, contou.
Para Milton Hatoum, o atual Governo brasileiro “esconde-se por trás de uma máscara de democracia caricata”.
Apesar de tudo, reconheceu que o país ainda não está ao nível dos tempos da ditadura, e exemplificou com a liberdade de imprensa, recordando, por exemplo, que uma reportagem da Folha de São Paulo “derrubou um ministro”.
“Na ditadura não havia essa liberdade e havia delatores em todo o lado. Não é o que estamos vivendo”, afirmou, considerando, contudo, que este é um “Governo protofascista” e que “muita coisa veio da ditadura”.
“Votaria em qualquer um, menos neste fascista. Rompi com pessoas da minha família por causa disto, pessoas que se esqueceram que tiveram pais e tios que foram presos, que foram algemados e humilhados de Manaus para Brasília”, acrescentou.
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