Dentro de quatro anos a União Europeia vai ter de começar a pagar o empréstimo de 806,9 mil milhões de euros que contraiu para responder à Covid-19 e para se modernizar. Como é possível continuar a financiar as necessidades dos 27 Estados-membros e ainda as dos países do alargamento, a partir de 2030, e da Defesa?

João Cotrim de Figueiredo foi deputado único da Iniciativa Liberal eleito pelo círculo de Lisboa e líder do partido até janeiro de 2023, altura em que deu lugar a Rui Rocha. Agora é o cabeça-de-lista dos liberais às eleições europeias de 9 de Junho. Em entrevista ao SAPO 24 fala das suas aspirações para a União Europeia.

Para começar, a Europa tem de se reformar e os políticos precisam de ter coragem para correr riscos, mesmo quando à primeira vista as medidas podem parecer impopulares e é preciso enfrentar a opinião pública do momento.

O primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou que o novo aeroporto será em Alcochete. Pode haver um conflito entre os planos do governo e as regras europeias?

A componente jurídica da pergunta tem de ser respondida por um jurista, imagino até que vários juristas tenham opiniões diferentes.

A questão política parece-me mais interessante, porque vários políticos, a começar pelo ministro das Infra-estruturas [Miguel Pinto Luz], já vieram dizer que não haverá dispêndio de fundos públicos. E eu gostava de esclarecer que tanto é um dispêndio público quando se desembolsa dinheiro como quando se deixa de receber o dinheiro que pertenceria ao Estado e aos contribuintes.

Quais são para si os dossiers prioritários do próximo mandato europeu, 2024-2029, mesmo tendo em conta que são definidos pela Comissão Europeia?

Como sabe, o Parlamento Europeu não tem iniciativa legislativa. Portanto, as prioridade que os eurodeputados tenham ficam sempre sujeitas às iniciativas que a Comissão Europeia, e também o Conselho Europeu, nalguma medida, possam ter.

Embora o Parlamento Europeu também tenha direito de iniciativa legislativa em casos específicos e queira rever os Tratados para ter direito pleno, já que é a única instituição da UE eleita diretamente. E tem vindo a ganhar poder.

Sim, é verdade. Mas, olhando para o histórico, a percentagem das iniciativas legislativas que partem do Parlamento Europeu é ainda muito baixa. Mas os temas que certamente vão estar na agenda da Comissão são a Defesa, o alargamento e a reforma institucional ligada ao alargamento. Portanto, será certamente nesta três áreas, pelo menos, que a atividade deste mandato irá concentrar esforços e atenção.

Para financiar os fundos da Covid foi preciso emitir 800 mil milhões de dívida

Antes de se falar em alargamento já se falava da necessidade de a União Europeia aumentar o seu orçamento. Agora, com o alargamento e a guerra, essa questão é ainda mais premente. Onde pode a UE ir buscar mais receita?

Vamos assumir que há uma necessidade de reforçar o orçamento. No caso específico, as necessidades de Defesa podem conduzir a isso. Há duas maneiras de o fazer: pedindo contribuições adicionais aos Estados-membros, é assim que se tem resolvido a esmagadora maioria das necessidades financeiras da União, ou através da mutualização da dívida, como se fez com os fundos para impulsionar a Europa pós-Covid. Ou seja, ou vai dos Estados-membros para o pote ou o pote vai aos mercados.

O problema é que a maior parte das vezes os recursos próprios são impostos [direitos aduaneiros e contribuições baseadas no IVA], com exceção do que resulta do comércio europeu de licenças de emissão de carbono, que não é um imposto, embora seja um custo diretamente suportado por empresas. Mas é uma maneira encapotada de aumentar carga fiscal.

O senão de ir aos mercados é que não passa pelos parlamentos nacionais, é uma delegação de soberania muito pouco aceitável e que não conduz a uma boa gestão, porque aquilo que se emitir em termos de dívida vai ter de ser pago pelos Estados. E é por isso que agora se fala mais nos recursos próprios, porque para financiar os fundos da Covid foi preciso emitir 800 mil milhões de dívida.

Que vamos ter de começar a pagar já em 2028, o que deixa ainda menos dinheiro para outras coisas.

Esse é o meu ponto. Isso ia ser um problema político.

Qualquer dia temos a Europa como Portugal?

Nem mais.

Como é que isso se resolve ou se previne?

Resolve-se sendo claro não só nas razões pelas quais precisamos de mais dinheiro como na forma de o financiar, para os cidadãos saberem se os governos estão a apoiar uma decisão porque ela é necessária e se não está ser a financiada de forma escondida. Dou o exemplo da Defesa; a maior parte dos países vai ter de gastar mais meio a um por cento na Defesa, sempre muito dinheiro.

Não podemos viver à sombra das capacidades de Defesa de outros. A invasão da Ucrânia, com todos os dramas que trouxe, trouxe também esta clarificação

A meta dos 2% do PIB para a Defesa, que Portugal não cumpre, foi fixada há muito. O tema voltou à baila por causa das ameaças de Trump e de os Estados Unidos deixarem de financiar a NATO.

Biden também não queria coisas diferentes e a exigência inicial de chegar aos 2%, e feita com alguma voz grossa, foi de Obama. Portanto, ia acontecer na mesma. É uma espécie de alerta, e ainda bem que acordámos, porque não podemos viver à sombra das capacidades de defesa de outros. A invasão da Ucrânia, com todos os dramas que trouxe, trouxe também esta clarificação.

No entanto, quando se ouve falar num investimento grande em Defesa quais são os argumentos, mais uma vez para disfarçar e não obrigar cidadãos a olhar para o problema? Primeiro dizem que não é bem para ser pago pelos Estados, as defense bonds [títulos de defesa] ou a mutualização da dívida é para criar uma indústria de Defesa local, remodelada, com novos empregos, investimento em indústrias ligadas à fileira da Defesa.

Mais, vai haver pesquisa na área militar e toda a gente sabe que a investigação militar acaba muitas vezes por ter utilizações civis, produzir alguma inovação. Ou seja, estão a dizer que isto não é bem porque precisamos de nos defender e porque há aqui uma questão de princípio, mas sim porque até é bom do ponto de vista económico.

E não é assim?

Não misturemos os planos. É necessário por uma questão de princípio, a Europa deve ser autónoma do ponto de vista da Defesa. Depois há vantagens secundárias, mas não é por isso que os cidadãos a devem apoiar. Devem apoiá-la por uma questão de princípio.

Aproveito para dizer que uma das nossas grandes vontades na Europa é voltar aos valores fundacionais. Isto começou por ser um espaço de paz, das liberdades cívicas e políticas, um espaço de prosperidade. E, de uma maneira ou de outra, estão-se a perder um bocadinho os três, estamos a tirar o olho da bola.

Já falámos da paz, está podre e necessita que voltemos a levar isto a sério. Nunca me lembrei tantas vezes daquela frase: "Se queres a paz, prepara-te para a guerra". Essa natureza dissuasora continua a ser importantíssima. As liberdades - vimos isso principalmente na pandemia -, são limitadas com toda a facilidade para assegurar um bocadinho mais de segurança ou até de conveniência. E depois a prosperidade, onde ficámos completamente para trás.

A Europa está a ficar para trás, transformou-se na campeã da burocracia, quando já foi campeã da inovação. E perdeu. Para a União Europeia voltar a ser campeã da inovação há um conjunto de coisas que devem voltar a ser feitas.

João Cotrim de Figueiredo
créditos: Inês Vales | MadreMedia

Hoje, as pessoas e as circunstâncias são diferentes. Temos as condições e gente capaz para isso, temos líderes na Europa?

Percebo a pergunta e vou responder assim: aquilo de que estamos aqui a falar, de facto, tem componentes de risco significativas. Porque há medidas que, como a da Defesa, podem não ser prima facie populares, mas são necessárias. Portanto, é preciso de líderes capazes de fazer as pessoas perceberem a necessidade dessas políticas.

Mas há muitas outras coisas em que a Europa precisa de coragem para se reformar. Portanto, mais do que a estatura política de quem possa estar a ocupar cargos de responsabilidade na União Europeia, preocupa-me a capacidade dessas pessoas de correrem riscos, a capacidade de estar à frente do ar do tempo, da opinião pública do momento, de saber inspirar as pessoas para dar um passo que eles próprios não estariam a pensar tomar, mas que é para um bem maior.

O que é diferente hoje é uma força muito maior das opiniões públicas e talvez um muito maior receio de as enfrentar, no sentido em que a popularidade conta demasiado

Por isso insisto: temos essas pessoas?

Não me peça para fazer uma avaliação pessoal disso. Às vezes também se tende a idealizar os líderes do passado. O que é diferente hoje é uma força muito maior das opiniões públicas, e isto é uma coisa positiva, e talvez um muito maior receio de as enfrentar, no sentido em que a popularidade conta demasiado.

Não gosto da sensação de ser a pessoa mais competente numa sala

Mas há maneiras de avaliar a qualidade das pessoas. Olhamos para um parlamento e se nos achamos o mais inteligente da sala, estamos na sala errada.

Por acaso estou 100% de acordo consigo. Não gosto da sensação de ser a pessoa mais competente numa sala.

João Cotrim de Figueiredo
créditos: Inês Vales | MadreMedia

Sobre a guerra na Ucrânia, até onde é que a União Europeia pode e deve ir?

Penso que Putin não vai ceder facilmente, precisa pelo menos de ver que não tem hipótese de ganhar militarmente a guerra, que, como qualquer guerra, só termina com negociações e acordos e paz. E para impor condições a Ucrânia tem de poder ter uma posição de força.

Até onde é que a Europa deve ir? Neste momento, estrategicamente, prefiro não excluir nenhuma opção. Sendo que muitas delas serão indesejáveis. Nesta altura excluir qualquer opção seria dar força a Putin.

Há muitos conflitos a acontecer e não podemos passar ao lado de Israel e Palestina. A Europa está a fazer o que deve? Qual deve ser o seu papel?

Este conflito é tão sui generis que acho que ninguém está a fazer o que devia. Mas literalmente ninguém, nem a Europa, nem os próprios beligerantes, nem os aliados de cada um dos beligerantes.

Fomos muito claros no apoio a Israel no início, porque achámos o ataque terrorista do Hamas absolutamente inqualificável, e a reação inicial de Israel corresponde ao direito de defesa. Mas passados estes meses, a catástrofe humanitária que está a ser gerada pelo tipo de retaliação pela qual Israel optou não pode ser senão criticada. Israel perdeu a razão.

Mas continua a haver interesses suficientemente fortes para manter isto. É natural que tenha de se perceber a psicologia de quem está em Israel cercado por vizinhos inimigos e que entendem que só eliminando fisicamente o Hamas é que se pode viver em paz, mas pergunto também pelos milhões de palestinianos que já foram deslocalizados, não só em Gaza, nos últimos sete meses, mas em toda a história desde a criação do Estado de Israel: o que é que os Estados árabes fizeram para o seu acolhimento? Mesmo nesta crise.

É muito difícil ver alguém que esteja a proceder corretamente nesta matéria com vista àquilo que para nós continua a ser a solução definitiva da questão: dois Estados que possam viver em paz com os povos governados, desejavelmente, por regimes democráticos ou que tenham em consideração as populações.

Não estamos preparados para viver com menos fundos e um dia até sem fundos

Portugal já recebeu mais de 160 mil milhões de euros em ajudas da União Europeia desde a adesão, em 1986. O país que temos reflete isso?

Já tenho dito, mesmo sem me fazerem a pergunta, que não. Acho que houve, quer na atribuição dos fundos, quer na execução dos fundos, quer, sobretudo, na avaliação dos resultados da aplicação desses fundos, deficiências quase constantes desde o princípio. E, portanto, não tirámos o máximo benefício que poderíamos desses fundos. Não estamos preparados para viver com menos fundos e um dia até sem fundos.

Essa é uma crítica que faço a todos os políticos que tiveram responsabilidades nesta matéria desde a adesão. Porque agora, que se prevê um alargamento, agora, que se prevêem decisões difíceis que podem muito provavelmente resultar na redução, pelo menos, dos fundos de coesão, Portugal dá-se conta que não aproveitou suficientemente bem aquilo que podia ter feito e não reformou suficientemente o seu tecido produtivo e as suas capacidades de produção de riqueza de forma a poder viver tranquilamente sem fundos.

Devia ou não haver metas, com objetivos definidos no tempo, para um país passar de beneficiário a contribuinte ou, pelo menos, passar a viver sem o dinheiro da UE?

Isso já foi discutido, mas o que se considerou, e a história veio dar razão, é que há demasiados imponderáveis, desde crises financeiras ou pandémicas a guerras, que tornam esses prazos na prática apenas indicativos e não vinculativos, derrotando o objetivo inicial.

Mas há outras maneiras que se têm provado mais úteis. Por exemplo, os fundos Next Generation EU, que incluem o mecanismo de recuperação e resiliência que deu origem aos planos dos vários Estados-membros, têm uma ligação a objetivos e a metas trimestrais muito mais direta do que tinham os fundos estruturais. E, nesse sentido, têm funcionado melhor. O ritmo de execução não é brilhante, mas algumas das execuções ficaram naturalmente limitadas pela inflação alta e pelos efeitos indiretos da guerra na Ucrânia.

Mas o princípio de que se está a fazer mais coisas com nexo e com capacidade de serem verificadas é uma vantagem para mim mais útil do que o estabelecimento de prazos.

João Cotrim de Figueiredo
créditos: Inês Vales | MadreMedia

No Manifesto Europeu da Iniciativa Liberal está escrito que querem reforçar a transparência e o combate à corrupção na UE. Como?

Boa parte das dúvidas que existem sobre a utilidade e reprodutividade dos fundos prende-se com a forma como são atribuídos, desde logo, e executados. E há, infelizmente, uma perceção generalizada de que essa atribuição e execução nem sempre é correta, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista da legitimidade e licitude.

Isto é particularmente visível quando vemos o trabalho da Procuradoria Europeia, uma instituição que tem poucos anos, mas que já instaurou um conjunto de processos importante relativamente a fundos europeus em toda a União Europeia, dos quais 19 relativos a Portugal. Só nesses 19 processos, que parecem poucos, estão envolvidos 960 milhões de euros, o problema não é menor.

Medir resultados é uma decisão política, mas que tem uma execução técnica. O governo de António Costa criou há mais de três anos uma unidade chamada PlanApp, que tem por missão avaliar as políticas públicas na sua conceção e, depois, nos resultados. Convido as pessoas a irem visitar o site para ver os resultados que lá constam. Tem monografias e artigos e ensaios interessantíssimos sobre um conjunto de matérias, mas avaliação de políticas públicas propriamente ditas não tem.

O essencial, de facto, é garantir que aquilo que resulta de um investimento é um aumento da produtividade em termos diretos ou do potencial da produtividade de quem o vai utilizar. Essa devia ser a pedra de toque, porque sem uma melhor produtividade não pode haver uma melhoria salarial, e essa é a principal preocupação de todos os portugueses e de boa parte dos europeus. Não estamos com uma evolução de rendimentos, de nível de vida, compatível com as expectativas que foram criadas.

Não estamos com uma evolução de rendimentos, de nível de vida, compatível com as expectativas que foram criadas

Falou na Procuradoria Europeia. A indicação do procurador José Guerra foi envolta em polémica. Como olha a IL para este processo de escolha?

A IL gostaria até que todos se pronunciassem sobre o processo atual de nomeação do Procurador Europeu. Não falo nisto apenas porque a última nomeação foi polémica - o facto de o governo da altura ter indicado alguém que não ficou em primeiro lugar na opinião do comité de seleção e no painel de especialistas europeus - , mas porque o processo em si é pouco transparente e também aí é preciso reforçar controlos.

A opinião da Assembleia da República não é vinculativa e o governo é discricionário nos nomes que envia para o painel de especialistas. Não deve ser assim ou, sendo assim, tem de ser muito mais escrutinado para se perceber porque é que aquelas pessoas foram escolhidas em detrimento de outras. Querendo dar mais poderes à Procuradoria Europeia, ela tem de ser muitíssimo mais transparente na forma como é staffed, como os procuradores de cada país são escolhidos.

Agora por causa do staffed, que vídeo é este que publicou nas redes sociais, quem teve essa ideia?

[Ri] Não vou acusar ninguém, mas pretende ser uma forma ligeira e divertida de dizer que a política do Parlamento Europeu faz-se muito pela influência que se pode ter além da força aritmética das várias delegações, dos vários grupos parlamentares. E para isso é fundamental construir um conjunto de relações humanas e capacidade de aproximação e negociação, mais valiosa do que o peso específico eleitoral ou do país de onde se vem.

Na experiência que tenho tido, se calhar até antes da vida política, Portugal tem muita gente capaz de conseguir ter mais influência do que o peso específico que traz à partida e foi isso que quis transmitir. E tenho exemplos concretos no Parlamento Europeu, já das visitas que tenho feito às instituições europeias. Tem muito mais impacto quando alguém se dirige a um responsável na sua língua natal, é um misto de facilitar a comunicação e valorizar o interlocutor. Pequenas coisas que podem parecer irrelevantes, mas não são.

É importantíssimo que se perceba que o espaço europeu não é só económico, é também um espaço de disseminação de valores.

Queria voltar à questão do dinheiro, porque um dos dossiers importantes vai ser o quadro financeiro plurianual 2028-2034. Falou no alargamento, na questão de princípio, mas se correr mal é mais um pretexto para os fundamentalistas minarem o projeto europeu.

Mas o projeto europeu já corre mal quando não ajudamos países a manterem-se democráticos e a juntarem-se num espaço de paz. Países que escolheram ser democráticos e que, como fizemos há 40 anos, querem beneficiar de estar no espaço europeu para solidificar a sua democracia e para não haver retrocessos nessa matéria. Aconteceu connosco, temos o dever moral de permitir que aconteça com outros.

É importantíssimo que se perceba que o espaço europeu não é só económico, é também um espaço de disseminação de valores. A Europa é responsável por boa parte dos standards industriais que há no mundo, porque se impuseram aqui e tivemos influência comercial suficiente para os espalhar. Mas isto é secundário relativamente a um conjunto de valores em que a Europa também influencia o resto do mundo.

Além disso, do alargamento não vêm apenas problemas, também surgem oportunidades. Basta pensar no que vai constituir a necessidade de reconstruir a Ucrânia ou modernizar o sistema de transportes ou o sistema energético dos Balcãs. São enormes oportunidades económicas para as empresas que queiram estar nesses países como parte do Mercado Único.

Quando olhamos para estes 70 anos de União, desde a Comunidade do Carvão e do Aço, vemos enormes saltos de progresso e prosperidade enquanto foi possível ir integrando e tornando mais fácil circular e fazer negócios por toda a Europa. Depois temos uma boa parte deste século em que isso deixou de ser assim. Vamos voltar a aprofundar o Mercado Único e a alargá-lo.

Jacques Delors, que foi um dos grandes dinamizadores do Mercado Único, tinha a noção de que isso beneficiava os países de forma assimétrica, e por isso foi também o ideólogo dos fundos de coesão, para não criar as tais frustrações e tensões e para pôr uns países a par dos outros.

Mas os fundos não eram para se eternizar.

Exatamente. Estamos a fazer isso porque politicamente ninguém tem coragem de dizer que esse dinheiro está a ser mal usado. Não foi possível fazer dentro dos primeiros dois ou três quadros plurianuais o trabalho que devia ter sido feito.

Defesa e Saúde (caso das vacinas). Estamos a transformar a União Europeia numa central de compras? E se sim, isso é bom ou mau?

Se for dito que a União Europeia só é uma central de compras, é mau. Se aproveitarmos a força da União Europeia para agir em conjunto, é positivo. Quando falava das vantagens de integrar mercados, também é para utilizar a força coletiva. Pode haver oportunidades idênticas no caso do investimento em Defesa e até em algumas matérias relacionadas com a saúde já fora das vacinas.

Na Saúde percebemos a dependência da União Europeia de países como a China ou a Índia, onde estão muitas fábricas, porque os custos de produção são mais baixos. Mas ficou tudo na mesma.

Agora lembrei-me do caso da TAP, justificado como um investimento estratégico. Em política a palavra estratégia é sempre perigosíssima, provavelmente usada para justificar uma decisão errada ou para obscurecer os seus verdadeiros motivos. Quando se fala da autonomia estratégica da Europa fico logo de pé atrás. Reconheço que há uma necessidade de ser estrategicamente autónoma, mas tem de ser limitada àqueles assuntos que são efetivamente estratégicos, que não são tantos como se diz.

O que é que para si é estratégico na Europa?

A autonomia na Defesa, por exemplo, é estratégica. Porque não posso depender dos humores ou interesses dos meus aliados para defender os meus. A capacidade de reação a catástrofes também, porque isso vai diretamente à subsistência e à sobrevivência dos cidadãos, não posso estar dependente de terceiros para reagir rápida e eficazmente a catástrofes.

A energia também tem aspetos muito estratégicos, sobretudo na distribuição, porque a geração de energia vai-se tornando cada vez mais fácil, mas a distribuição tem de ser muito mais fluida. Aí teria de se apontar o dedo a França, por exemplo, porque os franceses têm sido particularmente resistentes, para proteger a sua indústria elétrica e instalação nuclear. Havendo um problema em que a energia seja crucial, e podemos imaginar vários, dificilmente vai afetar a Europa toda da mesma maneira, mas afetando partes importantes, aquelas que têm energia têm de ser capazes de a fornecer ao resto da União.

Aproveito para deixar claras algumas coisas: os liberais são muitas vezes acusados de não serem favoráveis ao investimento público, mas no que toca a infra-estruturação - na componente energética de que falei, em telecomunicações ou nos transportes, porque é isso que nivela o campo de jogo para os países poderem ter alguma hipótese de concorrer -, não é aceitável que a Europa continue a pagar entre o dobro e o triplo do preço do que pagam os Estados Unidos e outros países pela sua eletricidade.

Em boa parte essa deficiência já não tem a ver com fontes de produção de energia mais caras, mas tem a ver com a tal falta de concorrência e de liberalização do mercado da distribuição. Não faz sentido. Portanto, investimentos públicos de natureza europeia, neste caso em redes transeuropeias de transportes de telecomunicações e de energia, são para nós uma forma de integrar mais os mercados e tornar as oportunidades mais iguais para cidadãos e empresas em todos os países.

Agricultura e pescas, alimentação?

Tem de se gerir uma transição para uma maior auto-suficiência, mas não tem o mesmo nível de importância. Podem dizer-me que a soberania alimentar é importante. Atenção, entre a soberania alimentar, a autonomia do abastecimento alimentar e a auto-suficiência vai uma distância grande. Se a Europa quiser ser auto-suficiente na produção alimentar, posso dizer que isso iria corresponder a um enorme empobrecimento de toda a União Europeia, porque não só teríamos de desviar recursos para isso, como teríamos preços completamente disparatados relativamente aos bens alimentares.

João Cotrim de Figueiredo
créditos: Inês Vales | MadreMedia

Em que ocasiões mente?

[Grande silêncio]. Apanhou-me completamente desprevenido. Acho que toda a gente mente, mas certamente não há ocasiões em que costumo mentir, seguramente não na política.

"Se eu já acho que o parlamento português está relativamente longe da mão na massa e das mudanças concretas, o parlamento europeu ainda mais". Sabe quem disse isto?

Disse-lhe eu no fim da convenção em que me despedi da liderança da Iniciativa Liberal [Janeiro de 2023].

A pergunta era se o Parlamento Europeu estava fora de questão. Hoje é cabeça-de-lista da IL às eleições europeias.

O que só mostra que quando digo que não me passava pela cabeça ser candidato ao Parlamento Europeu estava a dizer a verdade.

Para o partido continuar a crescer em Portugal é importante que os resultados eleitorais mostrem esta tendência de crescimento e as europeias serão o próximo marco

O que mudou de lá para cá?

Temos de perceber como estávamos em termos de cenário político em 2023. Há um ano ninguém diria que um governo de maioria absoluta ia apresentar a demissão e que iríamos ter eleições antecipadas. O cenário que a esmagadora maioria das pessoas estava a usar é que as primeiras eleições a seguir às legislativas de 2022 seriam as europeias de 2024.

A Iniciativa Liberal vinha de um trajeto de crescimento sustentado, com ganhos atingidos, e seria importante que as europeias fossem mais um marco desse crescimento. E foi essencialmente essa visão estratégica que o Rui Rocha partilhou comigo no verão, não posso precisar o mês.

Quando se entra num projeto político, principalmente num projeto político novo, em que acabamos por ser uma das caras mais conhecidas, assumimos também um conjunto de responsabilidades. Para o partido continuar a crescer em Portugal é importante que os resultados eleitorais mostrem esta tendência de crescimento e as europeias serão o próximo marco. A IL precisava de alguém que tivesse simultaneamente a notoriedade e a capacidade para fazer esse lugar. Não vou dizer que a conversa e o convencimento foram fáceis, mas os argumentos eram fortes. A decisão foi antes de saber que o governo estava em apuros e que antes haveria eleições legislativas.

Em que comissões gostaria de ficar, onde acha que podia ser uma mais-valia? E bem sei que a escolha não depende sobretudo de si, mas das negociações com os grupos parlamentares.

Nas ligadas ao mercado interno, nas ligadas às liberdades individuais e nas ligadas ao tecido empresarial, às pequenas e médias empresas.

Qual é o objetivo eleitoral da Iniciativa Liberal?

O que consta da nossa moção estratégica é o objetivo de eleger um deputado e ambicionar ter dois - se a campanha for suficientemente boa, digamos.

A IL pertence ao grupo Renovar a Europa, que tem como candidatos à presidência da Comissão Europeia Marie-Agnes Strack-Zimmermann, Valérie Hayer e Sandro Gozi. Tem preferência?

Marie-Agnes Strack-Zimmermann é claramente a minha candidata. Gosto imenso dela, tem aquele misto de capacidade técnica, conhece muito bem os dossiers, já falei duas ou três vezes com ela, e o pragmatismo para fazer as coisas acontecer.

É alemã.

Não sei se é assim, lidei com bastantes alemães na minha vida, até pela minha formação, e devo dizer que não sei se há uma regra assim tão clara. Mas dou-lhe razão no fato de os alemães que chegam a posições de destaque tenderem a corporizar a disciplina e o pragmatismo.

A escolha será do primeiro ministro, Luís Montenegro, mas gostava de saber que pasta gostaria de ver atribuída a uma comissário, ou comissária, português?

Recomendaria muito que o pelouro do comissário fosse um pelouro ligado à energia, onde Portugal tem muito a beneficiar com as tais redes transfronteiriças que mencionei e onde tem muitas potencialidades relativamente à produção de energias renováveis, quer as que já estão em instalação, quer as do hidrogénio - que poderiam ser, de fato, uma distinção do mercado português de energia, mas para isso precisa de estar ligado ao resto da Europa.

A atual presidente da Comissão Europeia, e agora candidata pelo PPE, Ursula von der Leyen, fez um bom mandato?

Acabou por fazer um bom mandato, mas por motivos que não são particularmente virtuosos. Aqui aproveito para dizer que continuo à espera de uma explicação cabal para o chamado Pfizergate [2021] e o caso da troca de SMS com o CEO da Pfizer na altura da compra das vacinas.

Ursula von der Leyen fez globalmente um bom mandato porque a Comissão acabou por reagir bastante bem quer à crise pandémica, quer à guerra na Ucrânia. Quando digo bem, quero dizer mais depressa do que muitos temiam. E digo que não foi particularmente virtuoso porque prefiro uma União Europeia que funcione bem no dia-a-dia e tenha as dificuldades naturais de qualquer instituição quando há uma crise do que uma instituição que acaba por se mexer bem numa crise e trata o dia-a-dia muito mal.

Porque é o dia-a-dia que acaba por criar a frustração de expetativas das pessoas e é essa frustração que desagrega os cidadãos, gera os fenómenos extremistas e dá razão a quem se queixa de que este é um sistema que não funciona a favor de todos. O funcionamento do dia-a-dia é muito mais importante politicamente do que a capacidade de reação a crises.

Tem mais medo da extrema-direita do que da extrema-esquerda no Parlamento Europeu?

Não, acho idêntico. Porque a extrema-esquerda, embora seja menos atacada, já existe há mais tempo, tem posições que são igualmente perigosas para o futuro da União Europeia e para a desafetação das pessoas do projeto europeu. O exemplo mais clássico são os fundamentalistas climáticos, que estão todos reunidos à volta dos grupos mais à esquerda do Parlamento Europeu.

A maneira mais eficaz de responder aos problemas que temos nessa frente é ser bastante menos alarmista, ser mais inteligente e apostar bastante mais na capacidade de inovação

Vão voltar a acusá-lo de ser negacionista. É?

Não sou. Acho até que a maneira mais eficaz de responder aos problemas que temos nessa frente, que são graves, as alterações climáticas, é ser bastante menos alarmista em relação a eles, ser mais inteligente e apostar bastante mais na capacidade de inovação, que tem resolvido problemas existenciais com que a humanidade se confronta ao longo das últimas décadas. Nunca foi através de imposições ou proibições que isso foi feito, foi sempre através da criação de estímulos e soluções essencialmente baseadas em mercado.

Qual deve ser a resposta da Europa ao crescimento de grupos radicais ou fundamentalistas no seu seio?

Primeiro não deve fazer cercas sanitárias, penso que a história recente prova que não funcionam. Tem havido várias cercas sanitárias e o resultado tem sido sempre o crescimento sustentado desses partidos. Em segundo lugar é tirar-lhes o oxigénio, ou seja, as razões de queixa em que às vezes baseiam uma série de teorias, algumas da conspiração, que, tendo um fundo inicial de verdade, colam o suficiente para lhes dar tração e audiência. E a principal dessas razões de queixa é a falta de prosperidade na Europa, é quando as pessoas sentem que o sistema não as está a tratar justamente, não lhes está a dar oportunidades.

Esta geração europeia vai ser a primeira que vai viver pior do que os pais, não sei se alguém dorme com esta noção

Esta geração europeia vai ser a primeira que vai viver pior do que os pais, não sei se alguém dorme com esta noção. Eu não durmo. Já sou da geração que beneficiou com esta circunstância e sinto-me responsável por ela. Deixar um continente, neste caso estamos a falar da Europa, mas podia dizer o mesmo de Portugal, que está a gerar menos oportunidades para as novas gerações é uma irresponsabilidade muito grande.

O problema do crescimento económico na Europa, à semelhança de Portugal, e por isso falava em não tirar o olho da bola, é fundamental e central para podermos tirar as razões de queixa das pessoas. E o mesmo se pode dizer relativamente às migrações. Quando se deixa as migrações serem uma coutada exclusiva dos partidos de extrema-direita está-se a dar oportunidade a esses partidos.

Não falámos no Pacto de Migração e Asilo. Qual a posição da IL nesta matéria?

Temos uma posição humana em relação à questão. As migrações são algo positivo para as pessoas que procuram outras oportunidade e para as economias que as recebem. Por isso é algo que encaramos com a maior das naturalidades e com apreço. Mas percebemos que esta perceção de descontrolo, que é um misto de falta de organização e falta de fiscalização, que conduz à falta de integração, é altamente nociva.

No mínimo, devíamos estar a exigir que as regras que já existem sejam cumpridas. Regras como a prova de meios de subsistência ou a verificação dos dados que são inscritos no sistema automático de pré-agendamento da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo]. Já era assim no SEF, mas na AIMA é igual, não são verificados os dados que as pessoas lá põem. Não pode ser.

Relativamente ao Pacto de Migração e Asilo, que deu imensa celeuma - e tivemos dentro do próprio Partido Liberal europeu uma série de reparos a fazer -, pensamos que vai no caminho certo de estabelecer princípios sólidos. Achamos que se podem alargar as categorias de pessoas que podem cumprir os critérios de elegibilidade, que é firme com quem não é elegível e tem de ser absolutamente intransigente com quem trafica. Regra geral, o Pacto vai no bom sentido.

Estamos quatro anos e onze meses sem falar na União Europeia e, de repente, há um mês em que a Europa é vital: votem, votem, votem. Faz sentido?

Não, não faz sentido. E até é estranho, porque cerca de 70% da nossa legislação já tem origem na União Europeia. Embora haja debates cada vez que o primeiro-ministro vai ao Conselho Europeu, na véspera, e haja uma Comissão de Assuntos Europeus que todas as semanas trata dos temas respeitantes à Europa. Mas vou morder o isco e dizer que há da parte dos responsáveis políticos alguma responsabilidade em não tornarem os temas suficientemente relevantes, a começar por os tornarem interessantes, mais apelativos.

Voltando ao tema de querermos uma Europa campeã da inovação e não da burocracia, é, por exemplo, não ter a noção de que toda a gente se irrita com a necessidade de carregar nos cookies 48 mil vezes por dia

Ouvi-o dizer que já viu acontecer muitas coisas bizarras na vida política europeia. Pode dar um exemplo?

Uma delas, voltando ao tema de querermos uma Europa campeã da inovação e não da burocracia, é, por exemplo, não ter a noção de que toda a gente se irrita com a necessidade de carregar nos cookies 48 mil vezes por dia. Isso era um resultado direto e previsível do RGPD [Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados], mas nenhuma alminha foi capaz de dizer: "talvez não seja necessário no site que se visita todos os dias, várias vezes ao dia, ter de confirmar que se aceita cookies. Pode acontecer com a melhor das intenções ou só porque não há alguém com sentido prático da vida, mas tem estas consequências.

A Europa pode morrer, como diz Emmanuel Macron?

Gostei da entrevista de Macron, porque foi particularmente desassombrada. Sei que ele só tem mais três anos de mandato, se calhar isso ajuda, mas relembra-nos algumas coisas fundamentais.

A construção europeia é um projeto muito bem sucedido. Quando foi lançada a ideia, pouca gente acharia que acabaria por ter a importância e a influência que tem hoje. Mas não é eterna, é preciso cuidar dela. E para isso é preciso que consiga ser aquilo para que foi criada, um espaço de paz, de liberdade, de prosperidade.