"Seria muito importante que o senhor primeiro-ministro, ao ser indigitado [...], desse sinais de que esta legislatura não é uma legislatura para fazer uma revisão constitucional. Ou então, ao menos, que diga que nunca será a favor de nenhuma emenda à Constituição que não tenha um consenso que abranja três quartos da Assembleia da República, ou seja, que conte também, pelo menos, com o centro esquerda", disse Rui Tavares, líder do Livre, à saída da audiência com o presidente da República.

A ironia não podia ser maior. A Constituição, que Rui Tavares não quer que a direita sozinha possa mudar, prevê que as alterações sejam "aprovadas por maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções" (artigo 286.º). Ou seja, tem de ter votos favoráveis de pelos menos 154 deputados. A chatice é que a direita toda junta tem 160 deputados, a esquerda unida tem 70. Porque foi o centro-esquerda e a esquerda - com excepção do Livre, diga-se -, que os eleitores quiseram penalizar.

Diz Rui Tavares que "quando as coisas saem da Constituição, isso significa que a nossa maneira de viver em comunidade e em sociedade muda substancialmente". Assim de repente, olhando para os resultados eleitorais, parece-me que é exactamente isso que as pessoas querem, mudar de vida. Para melhor.

O Chega ganhou sobretudo onde há pobres. Em Lisboa, por exemplo, ganhou numa única freguesia, Marvila, uma zona de bairros sociais com elevado risco de pobreza, segundo o Relatório do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa. Tem enormes vulnerabilidades em áreas como a educação, a saúde ou a habitação.

Percebo os receios de Rui Tavares, mas acho que Rui Tavares não percebe os receios dos eleitores, fartos de 50 anos de um regime que lhes dá pouco e tira muito, umas vezes mais do que outras. E a Constituição, infelizmente, não tem sido garante de muita coisa lá inscrita. Assim de repente, deixo aqui alguns exemplos:

Princípio da igualdade (artigo 13.º): "1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei; 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual";

Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º): "1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos";

Associações e partidos políticos (artigo 51.º): "5. Os partidos políticos devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros";

Saúde (artigo 64.º): "1. Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover";

Habitação e urbanismo (artigo 65.º): "1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar";

Educação, cultura e ciência (artigo 73.º): "1. Todos têm direito à educação e à cultura";

Incumbências prioritárias do Estado (artigo 81.º): "Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: a) Promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável".

Podia continuar por aqui fora. Ainda bem que está na Constituição e, claro, tudo isto é na medida do possível. Mas parece que não tem sido possível muito, arrisco mesmo dizer que tem sido possível cada vez menos, apesar dos milhões que chegam de Bruxelas, apesar do saldo positivo da Segurança Social, apesar de termos tido o mesmo partido oito anos seguidos no poder, os dois últimos com maioria absoluta.

No espaço de um ano, o Chega cresceu dez deputados, agora confirmados os dois eleitos pelos círculos da emigração (Europa e Fora da Europa), e tem 60 deputados (o PS tem 58). Rui Tavares está preocupado com o crescimento da extrema-direita em Portugal. E, para resolver o problema, tem uma solução: contornar as regras. Salazar não faria melhor. Mais um bocadinho, proibia-se algumas pessoas de votar.

Luís Montenegro ganhou as eleições, mas quero acreditar que percebeu que se o cartão foi vermelho para a esquerda, o amarelo foi direitinho para a AD (PSD). Um mau passo é fatal - mas é fatal sobretudo para os portugueses.

A revisão constitucional é importante por diversos motivos, está obsoleta em muitas matérias, por isso existem propostas de alteração apresentadas por diversos partidos na Assembleia da República, mas, de facto, não impede que se construa um país melhor.

O primeiro-ministro veio dizer, entretanto, que a revisão da Constituição não é uma prioridade, mas, ainda que fosse, não me parece que daí viesse mal ao mundo ou tão pouco que os 60 deputados do Chega (apenas menos dez do que a esquerda na sua totalidade) conseguissem fazer aprovar alguma enormidade. Não só pelos cordões sanitários construídos à sua - com os quais não concordo, já se viu quem é que fica do lado de fora e do lado de dentro da cerca -, mas também porque existem limites materiais da revisão, que obrigam a respeitar, por exemplo, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Independentemente da pertinência e oportunidade de falar na revisão da Constituição, Rui Tavares põe em causa a "legitimidade" da IL apresentar uma proposta que "não foi discutida em campanha eleitoral". Isto é extraordinário (o líder do Livre diria que é populista).

Primeiro, porque está no programa eleitoral da IL - "A revisão constitucional que a Iniciativa Liberal quer propor tem três pilares: o reforço das liberdades políticas e sociais; a melhoria da arquitectura do regime, dos órgãos de soberania, das instituições democráticas e escrutínio do seu poder; uma visão reformista e sustentável para a economia e para a sociedade".

Depois, porque é caricato ouvir a esquerda falar de "legitimidade" para fazer alguma coisa que não tenha sido debatida em campanha eleitoral. Como o quê, por exemplo, fazer uma geringonça para derrubar o partido escolhido pelo eleitores, como aconteceu em 2015? Sobre isto, não vou dizer mais nada, por um lado porque é um trauma da direita, e não sou psicóloga nem psiquiatra, por outro porque Rui Tavares não estava no parlamento e não fez parte do negócio - mas calculo o que teria feito se estivesse.

Rui Tavares está aflito porque vêm aí as eleições autárquicas e, olhando para o mapa saído das últimas eleições legislativas, o Chega está em primeiro lugar em dezenas de concelhos do país. "Nós não podemos, pelo menos sem estar despertos para esse potencial, aceitar de boa mente, ou sem nada fazer, que, num belo dia de Setembro ou de Outubro, Portugal acorde com um mapa político no Algarve, no Alentejo e em boa parte do Ribatejo completamente diferente do mapa político que tivemos durante 50 anos de democracia".

Porquê? Uma vez mais, percebo os seus receios, mas se o mapa for diferente, é porque o que estava não serve. E é para isso que os políticos deviam estar a olhar, para o que fizeram de errado ao longo destes anos. Os eleitores não são todos tontos, se estivessem a ganhar não queriam mudar.

"Seria uma mudança que teria um impacto que duraria muito mais do que uma legislatura, tendo em conta que muitas câmaras municipais revalidam os seus presidentes de câmara [...] isso significa que durante décadas poderíamos ter uma boa parte do território nacional, ainda por cima concelhos de grande extensão territorial, dominados pela extrema-direita", previne o líder do Livre.

Pois é. Mas com a esquerda foi diferente? Quem é que tem olhado para esses "concelhos de grande extensão territorial"? O distrito de Faro, por exemplo (onde o Chega venceu com quase 34%, quatro deputados), já foi PS, PSD e até PRD. Beja foi durante décadas um bastião da esquerda, dominado pelo PCP, mas onde o PS também teve os seus momentos. Setúbal também. Como é que lá se vive (habitação, saúde, salários, educação, segurança, justiça)? Talvez os políticos tenham de sair da sua bolha, ver além das campanhas alegres e festivaleiras, responder mais depressa aos problemas das populações do que a Lili Caneças.

Além disso, parece-me que os eleitores, pelo menos uma grande parte, não faz hoje a distinção tradicional entre esquerda e direita, não é esse o seu campo de batalha. É por isso que me parece um erro falar de alianças à esquerda em vez de falar apenas de alianças, até porque muitas câmaras estão em mudança de ciclo, há autarcas que não se podem recandidatar por causa do limite de mandatos, como Porto, Gaia ou Sintra, para dar três exemplos. Mas isso ficará para outro artigo.

Voltando ao ponto, não tenho a certeza de que os eleitores do Chega saibam todos o que querem, mas tenho a certeza que todos sabem o que não querem. Mas para Rui Tavares, ao que parece, há uma democracia boa e uma democracia má - e a democracia boa, evidentemente, é quando se faz o que ele quer.

P.S. - José Luís Carneiro esteve mal. A quem é que interessa saber se o PS teve mais votos do que o Chega, que relevância tem isso no actual contexto, em que o PS perdeu 20 deputados num ano? "Aritmética"?! Ninguém quer palavras de circunstância quando as circunstâncias são péssimas. Eu preferia saber, por exemplo, o que é que o PS está disposto a sacrificar para impedir o Chega de chegar ao poder, se é isso que quer fazer e é isso que acredita ser bom para o país. Ou que planos tem para nos tirar deste marasmo. Ou para trazer estabilidade ao país e não estarmos, daqui a um ano, outra vez em eleições.