Os pais vieram no último avião da ponte aérea, uns dias depois da independência de Angola, em Novembro de 1975. Como eles, mais de 500 mil pessoas deixaram as ex-colónias rumo a Portugal, onde tiveram de começar a vida do zero.
Chamaram a todos retornados, embora houvesse os de primeira, os de segunda, e até os que nunca cá tinham estado antes, porque foi no Ultramar que nasceram. É o caso de João Pedro George, que nasceu em Moçambique em 1972, e, dois anos depois, foi para Angola, onde o pai arranjou trabalho.
Com três anos veio para Lisboa com o irmão, ao cuidado de uma hospedeira, primeiro para Benfica, depois para a Rua Rosa Araújo, perto do local onde conversamos, para a casa onde morava uma tia-avó e a criada.
Agora, o sociólogo conta a história que, em parte, foi também a da sua família. Em "O Império às Costas – Retornados, Racismo e Pós-colonialismo", publicado pela Objectiva, analisa o impacto da descolonização na sociedade portuguesa do pós-25 de Abril. Nesse período Portugal recebeu o equivalente a quase sete por cento da sua população.
Antes de mais, gostaria de saber o que o levou a escrever este livro?
Este livro decorre de um projecto de pós-doutoramento que estou a terminar, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Tinha como grande objetivo demonstrar que a descolonização e a chegada dos retornados a Portugal, ao contrário do que se pensa, contribuiu para a transição e consolidação da nossa democracia.
Ao contrário do que se pensa?
Ao contrário do que se pensa porque, na época, na década de setenta, os retornados eram vistos como um factor de tensão social que podia pôr em causa a democracia que estava a nascer. Estávamos na altura do PREC [Processo Revolucionário em Curso], o país estava muito inclinado para a esquerda. Os retornados eram quase todos vistos como fascistas, colonialistas, exploradores, reaccionários. Houve uma tentativa de sedução por parte de movimentos de extrema-direita, porque os retornados eram altamente críticos do PCP, eram anti-comunistas assumidos.
"Os retornados contribuíram para consolidar a democracia em Portugal"
Exatamente de que retornados fala?
Os retornados estavam associados ao ambiente fascista, pelo menos uma parte. Talvez até não fosse uma maioria - a maioria, se calhar, estava preocupada com ter uma casa, um trabalho, o que comer -, mas falo de um segmento mais ativo, mais politizado - tentaram criar um partido -, que criou associações, participou em acções violentas. Até havia o jornal "A Rua", que dava voz aos retornados, e era considerado de extrema-direita. Por isso, a chegada da população vinda das colónias era vista como uma ameaça à democracia. Era uma população descontente, que vinha com muitas exigências e muito desagradada com o que tinha acontecido. Estas facções, ou estes movimentos anti-sistema, podiam ser uma ameaça à democracia.
Por outro lado, ainda, o Estado português e os sucessivos governos, porque havia uma grande instabilidade política na época, foram obrigados a tomar medidas para promover a integração destas pessoas, uma população que vinha maioritariamente sem emprego, sem casa para ficar. Houve uma situação de emergência nacional.
Foi criado o IARN - Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais ou GADU - Grupo de Apoio aos Desalojados do Ultramar, por exemplo. E criaram-se cheques refeição e alugaram-se hotéis inteiros para albergar retornados.
Muitas destas medidas eram relacionadas com a integração social e profissional, encontrar casa e habitação para estas pessoas, arranjar emprego. Surgiram de facto uma série de institutos e organismos para integrar estas pessoas. O Estado foi obrigado, através destas instituições, a decretar uma série de medidas de apoio social, como subsídios de desemprego ou de doença, apoios à velhice, pensões de invalidez. Foram também abertos créditos bonificados para os retornados iniciarem os seus negócios, para comprarem casa. Medidas daquilo a que hoje chamamos o Estado social ou o Estado providência, que está no coração da democracia ou da social-democracia. Um Estado a quem os cidadãos podem recorrer em caso de extrema necessidade.
Esse Estado social, que começou com Marcello Caetano, foi acelerado pelos retornados, que vieram pressionar os governos a criar mecanismos, a legislar e a decretar uma série de medidas de apoio social para responder a necessidades urgentes desta população. E, neste sentido, os retornados contribuíram para consolidar a democracia, porque muitas destas medidas começaram por ser de discriminação positiva para apoiar os retornados, mas depois foram estendidas ao resto da população. Foi assim que aconteceu com os créditos bonificados da banca, por exemplo, em que o Estado contribuía com uma parte do dinheiro e os bancos punham o resto.
Este é argumento principal do livro. Depois, os retornados também contribuíram para a modernização do tecido produtivo, da administração pública, quer local, quer central. A própria comunicação social; sobretudo a rádio - que em Angola era muito mais desenvolvida do que em Portugal -, a TSF é um bom exemplo: olhe o Jorge Perestrelo [nasceu no Lobito], que veio revolucionar os relatos de futebol, ou o Emídio Rangel [nasceu no Lobito]. Os retornados vieram dinamizar uma série de sectores, no livro dou o exemplo da Universidade do Minho. Neste caso, contribuíram para a dinamização e modernização da universidade portuguesa, nomeadamente na área das tecnologias e da engenharia da informação.
"A minha mãe era de cá, o meu pai nasceu em Moçambique, porque o meu avô paterno tinha ido para lá ainda na altura da Primeira Guerra Mundial. Sou um filho (ou neto) do colonialismo português."
Antes de avançarmos no livro, gostaria de conhecer um pouco mais da sua história. Sei que nasceu em Moçambique e veio de lá muito pequeno, provavelmente sem memórias...
Nasci em Moçambique em 1972 e, com dois anos de idade, o meu pai, achando que era possível continuar a viver em África, nas colónias, arranjou trabalho em Angola e o meu terceiro ano de vida é passado em Luanda. E é de lá que eu e o meu irmão vimos para Portugal. Os meus pais ainda ficaram lá e nós viemos sozinhos, ao cuidado de uma hospedeira de bordo.
Cá fomos acolhidos por uns tios-avós que viviam em Benfica, onde ficámos duas ou três semanas. Depois viemos viver para a Rua Rosa Araújo, onde ficámos numa casa muito grande, de uma tia-avó, a Maria do Rosário, que vivia com uma criada. Ela tinha um atraso mental grande, dizia-se que tinha ficado assim porque o leite da ama que bebeu em bebé estava envenenado, imagine. Era como se fosse uma criança. E era cuidada por uma criada que tinha vindo da província com 14 anos, eram mais ou menos da mesma idade.
Viemos eu, o meu irmão e mais dois primos viver para esta casa onde moravam duas senhoras velhotas. Viemos revolucionar a casa. A minha tia era como se tivesse a nossa idade, fazíamos as maiores tropelias. A criada, a senhora Maria, dizia que viemos dar à casa uma alegria que nunca tinha tido. Por um lado ajudava-nos na brincadeira, por outro repreendia-nos, porque muitas vezes abusávamos da nossa tia, que acreditava em tudo. Fazíamos partidas, como sair de casa e colocar peúgas na cabeça, a fingir que éramos ladrões; pedíamos dinheiro e ela ia buscar, éramos uns pequenitos, mas ela acreditava.
E os seus pais?
Os meus pais vieram no último avião da ponte aérea, dois ou três dias a seguir à independência de Angola, em Novembro de 1975. A minha primeira memória é essa, de irmos para o aeroporto e de nos porem num avião - a minha separação dos meus pais.
A minha mãe era de cá, o meu pai nasceu em Moçambique, porque o meu avô paterno tinha ido para lá ainda na altura da Primeira Guerra Mundial. Fez a administração colonial, foi administrador da Ilha de Moçambique, tal como um tio-avô, que foi administrador de Nampula. Portanto, de certo modo sou um filho (ou neto) do colonialismo português.
O meu pai veio uns meses a Portugal e, nessa altura, conheceu a minha mãe. Casaram por procuração e a minha mãe foi para lá.
O que lhe contavam sobre a vida lá?
Diziam o que a maior parte dos retornados dizia, que aquilo era um paraíso, que nunca tinham explorado ninguém.
Existe hoje um pouco por todo o mundo um movimento que defende reparações históricas pela escravatura, pela colonização, pelo racismo. Marcelo Rebelo de Sousa fez um mea culpa no seu discurso do 49.º aniversário do 25 de Abril, António Costa já tinha pedido desculpas pelo pelo massacre de Wiriyamu. Portugal devia indemnizar as ex-colónias?
Repare, de certo modo essas reparações já têm sido dadas, por exemplo, através de empréstimos em condições especiais ou programas de apoio e assistência. Tem havido uma política de cooperação e de ajuda económica do Estado português a esses países. Como é que se vai calcular agora o valor de uma indemnização relativa à violência colonial, por exemplo? Parece-me isso impossível.
"Nos anos setenta e oitenta o Estado atribuiu verbas enormes aos retornados."
Alemanha, Bélgica, Países Baixos, França indemnizaram os seus cidadãos. Portugal fez várias tentativas, com o CDS a favor, PCP contra, mas não criou nenhum mecanismo para indemnizar retornados pelos bens perdidos e - conta no livro - muitos portugueses depositaram o seu dinheiro nos consulados, no pressuposto de que o receberiam cá.
Para mim não faz sentido estar a indemnizar os retornados pelo que perderam lá, de todo. Podemos até considerar que essas pessoas já foram ressarcidas pelos apoios que o Estado português deu à sua integração, pelas medidas que já referi aqui. Para todos os efeitos, os retornados foram muito apoiados, com muito dinheiro do país e dinheiro internacional. Nos anos setenta e oitenta o Estado atribuiu verbas enormes aos retornados.
Por outro lado, os retornados também beneficiaram muito com a exploração colonial. Enquanto estiveram lá viveram bem. E o que ganharam foi obtido de forma ilegítima, no sentido em que teve origem na exploração colonial, a partir de um sistema que era altamente injusto e que assentava na exploração de um trabalho, que já não se chama escravatura, mas que era forçado, digamos assim. Beneficiaram de condições excepcionais. Ainda por cima, quem pede indemnizações são aqueles que eram grandes proprietários, grandes industriais, não é quem perdeu a sua casinha e a sua loja.
O fenómeno da descolonização está para além dos indivíduos. Tiveram azar. Se pensarmos, 60% das pessoas foram para lá nos anos cinquenta e sessenta, muitas depois da guerra [1961].
Quando falamos de Angola ou de Moçambique, por exemplo, parece que os portugueses chegaram lá nessa altura, como não estivéssemos lá há 400 anos. O que se fez durante todo esse tempo?
Claro, podíamos ter desenvolvido alguma coisa durante esse tempo. Mas o Estado, aquilo que desenvolveu, foi sempre em benefício dos brancos, dos colonos. Os negros viviam muito mal, sem condições nenhumas. Enquanto lá estivemos construímos caminhos-de-ferro, barragens, e essas infra-estruturas também são uma parte daquilo que deixámos como paga pelo que usufruímos daquelas terras. Infelizmente, muito foi destruído.
O que mudou com a independência?
Não sei. Fui a Moçambique no ano 2000, a Angola não regressei. Mas a verdade é que o que se desenvolveu naquelas regiões foi sempre para benefício dos brancos. Porque as infra-estruturas eram para uso dos brancos. Mesmo mais recentemente, os cinemas, os teatros, as escolas, eram para os brancos.
E há uma herança que deixámos mesmo depois da independência e que foi pesada para as pessoas de lá. Muitas daquelas elites negras reproduziram os comportamentos dos colonos, as relações de desigualdade, de domínio, de poder, de exploração, de usurpação dos recursos que são da população, que são de toda a gente. Aquilo que os portugueses faziam antes, as elites negras foram imitar. Por isso é que vemos as populações na miséria. Isso também faz parte da herança que o colonialismo lá deixou.
"Há uma herança que deixámos mesmo depois da independência e que foi pesada para as pessoas de lá. Muitas daquelas elites negras reproduziram os comportamentos dos colonos"
Por falar em herança, também dedica umas páginas valentes à toponímia, sobretudo de Lisboa. Fala em "cristalizar e enquistar" na cidade uma memória colonial. Que condena. Porquê?
Em termos teóricos, sem saber quais as possibilidades em termos técnicos e práticos, porque compreendo que nem todas as situações são iguais, faz-me confusão a ideia de ter nomes de ruas de pessoas que defenderam teorias racistas ou que cometeram crimes. Não quero andar na rua com a minha filha a perguntar porque é que se chama assim. A meu ver, esses são os nomes que a sociedade escolhe como exemplares, onde a sociedade reflecte os seus valores cívicos.
Mudar os nomes das ruas não é uma forma de apagar a história?
Não. A história faz-se noutro lado, não se faz nas ruas. Nas ruas faz-se memória. A história conta-se nos livros e nas escolas.
Mas no livro uma das críticas que faz é que na escola não lhe contaram uma parte da história.
Mas hoje já se começa a contar melhor essas histórias. A toponímia tem a ver com a memória, com aquilo que queremos preservar como bons exemplos dos valores que defendemos. A mim não me agrada ter os nomes de pessoas que foram maus exemplos para o país em lugares de dignidade. Não quero isso. Defenderam ideias com as quais não nos identificamos hoje. Foi outro regime que defendeu isso, não fomos nós, e escandaliza-me que não se mude à luz do entendimento actual. Não me revejo nisso.
"Faz-me confusão a ideia de ter nomes de ruas de pessoas que defenderam teorias racistas ou que cometeram crimes"
Então deitamos abaixo a estátua do Marquês de Pombal?
O Marquês de Pombal... O que digo é: vamos estudar essas coisas.
Há um capítulo do livro, logo na primeira parte, que parece um manifesto contra Mega Ferreira. Que vem à baila diversas vezes. Porquê?
Não é um manifesto. Simplesmente, resulta da minha investigação, de ter descoberto na Torre do Tombo uns dossiers onde, surpreendentemente, Mega Ferreira aparece como cúmplice da propaganda do regime do Estado Novo. Digo surpreendentemente, porque Mega Ferreira sempre se assumiu como opositor ao regime e também como alguém que sempre teve um currículo de esquerda impecável. De repente, encontro aqueles documentos, e Mega Ferreira está no centro daquilo que era a propaganda contra as campanhas internacionais contra a presença portuguesa em África e, sobretudo, em relação a um acontecimento terrível, que é o massacre de Wiriyamu. Mas Mega Ferreira não é o mais importante.
Por não ser o mais importante estranhei que lhe dedicasse tanto tempo.
Não só porque é uma história interessante de contar - o massacre de Wiriyamu, as reacções dos governantes e a forma como Portugal tentou ocultar tudo, a visita de Marcello Caetano a Londres -, mas, e sobretudo, por ter em conta que Mega Ferreira foi uma pessoa tão importante na sociedade portuguesa, que geriu tanto dinheiro público - estamos a falar de alguém que geriu uma quantidade enorme de verbas públicas durante anos e anos e anos.
Este capítulo tem muita importância porque mostra, de facto, como o império, a herança colonial, continua a fazer-se sentir durante a democracia. A primeira parte do livro serve para entrar nos anos finais do colonialismo, para servir para a transição para a descolonização. Portanto, os últimos anos de Portugal em África, caracterizados ou marcados por acontecimentos violentos - de parte a parte, não foi só dos portugueses. Mas a mim interessa-me falar do que os portugueses fizeram.
Numa guerra temos de pensar em qual das partes tem a razão do seu lado, e a verdade é que o exércitos anti-coloniais tinham a razão do lado deles. Eram exércitos de libertação, estavam a tentar libertar aqueles territórios conquistados à força pelos portugueses. O exército português estava a servir uma causa errada, que era defender a continuação da exploração e da violência.
Podia ter sido de outra maneira?
Das coisas piores que Salazar deixou a este país foi a decisão de entrar na guerra. Se Salazar tivesse decidido fazer uma descolonização, começar um processo gradual, provavelmente aqueles países não tinham tido a miséria que tiveram, aquelas guerras civis. E Cabo Verde, por exemplo, podia ter continuado português, acho que a maioria dos portugueses teria gostado.
Esta decisão terrível de Salazar foi das coisas mais prejudiciais para o nosso país. A transição podia ter demorado vários anos, mas assim foi tudo feito de forma atabalhoada, porque Salazar empenhou-se em manter as colónias, contra tudo o que diziam os ventos da história, contra tudo o que todos os outros países estavam a fazer. Imaginar que Portugal ia conseguir manter aqueles territórios é teimosia e falta de visão.
Tal como hoje acho que a Rússia está a invadir injustamente e sem razão a Ucrânia, sempre numa perspectiva de colonizar aqueles territórios, pela mesma lógica aquelas povoações foram conquistadas à força, pelo uso das armas, e foram exploradas e maltratadas. Sofreram. Aquelas pessoas têm histórias de família absolutamente horríveis, de um sofrimento atroz, provocado por nós.
Diz-se que Marcello Caetano pensou nisso [fazer a descolonização], só que um líder não tem a liberdade para fazer tudo o que quer, a linha dura do regime não deixou.
"Das coisas piores que Salazar deixou a este país foi a decisão de ter entrado naquela guerra."
Falou no massacre de Wiriyamu, que descreve no livro com todos os requintes de malvadez, como faz com o assassinato de Alcindo Monteiro, o rapaz que em 1995 foi barbaramente morto em Lisboa. Porquê a necessidade de relatar todos os horrores ao pormenor?
Porque há uma ideia que ainda perpassa algumas pessoas em Portugal, nomeadamente de direita, de partidos como o Chega, que os portugueses que estavam em África eram pacíficos, que os colonos eram pacíficos, que se tinham misturado bem com os negros, que se davam bem com os negros - há até aquela ideia do mulato: os portugueses criaram o mulato.
Em termos estruturais não era assim. O facto de haver um branco ou uma família de brancos que tem uma relação boa com os negros não apaga o facto de que a maioria tratava mal os negros. Mas mal mesmo. E, muitas vezes, podia não tratar mal, mas pagava pouco. Ou castigava fisicamente. Vi imagens terríveis de empregados que apanhavam palmatoadas e ficavam com os lábios todos inchados, com as caras inchadas. Ao contrário do que Salazar pretendeu fazer passar, os portugueses não eram diferentes dos outros.
Continuar a dar uma visão cor-de-rosa da história é que é ofensivo. Vivemos num tempo em que há muita informação, mas também há pessoas que não acreditam nos factos, apesar de apresentadas provas. Porque há esta ideia de que é tudo manipulado, de que há interesses por trás de tudo. Então as pessoas preferem as suas crenças, os seus estereótipos, os seus preconceitos, em vez de avaliar os factos e, a partir deles, tirar as suas conclusões.
Passados quase 50 anos do 25 de Abril, acha que a integração dos retornados, brancos, negros, ex-combatentes, está feita?
Aí estabeleceria uma diferença: quando se fala em retornados, a maior parte dos estudos está a pensar nos retornados brancos. E a integração dos retornados brancos foi bem-sucedida, em meados da década de oitenta deixa de haver manifestações, notícias diárias sobre o tema.
A segunda parte do livro começa com a lei da nacionalidade, uma lei racista que excluiu os negros que antes tinham nacionalidade portuguesa e que a perderam. O objectivo era explicitamente impedir que essas pessoas viessem para Portugal. E, em muitos casos, nomeadamente dos negros que combateram com o exército português, muitos foram mortos porque não conseguiram fugir, Portugal não os acolheu. Os negros que vieram na segunda metade de 1970 foram considerados imigrantes ilegais. Ou seja, se considerarmos essa população negra como retornados do império português, percebemos que a integração dos negros não foi tão bem-sucedida.
Surpreendeu-me perceber que o pai da deputada Romualda Nunes Fernandes, que foi deputado da Assembleia Nacional de Marcello Caetano, por causa da lei da nacionalidade perdeu a nacionalidade portuguesa e teve de voltar para a Guiné. E, se não o tivessem avisado com umas horas de antecedência, teria sido fuzilado pelo exército de libertação, como muitos outros foram. Teve de fugir da Guiné. Acho isto terrível e uma traição a essas pessoas que, mal ou bem, aderiram ao regime português e, quando precisaram do apoio de Portugal, Portugal tirou-lhes o tapete.
Houve um ponto de viragem na sociedade portuguesa? Quando?
Em 1995, a morte de Alcindo Monteiro ganhou uma proporção pública muito importante, marcou uma viragem na sociedade portuguesa, um marco naquilo que é a luta anti-racista. Desde logo porque hoje fala-se mais disso. Contribuiu para aumentar a consciência das pessoas relativamente ao racismo e à influência nefasta dos grupos neonazis em Portugal. O SOS racismo e outros movimentos ganharam outra força na sociedade portuguesa depois esse acontecimento. Que foi particularmente chocante e, se calhar, fez abrir os olhos a muita gente.
O que não impede que tenham existido outros casos de racismo. A senhora que foi agredida pela PSP porque o filho não tinha passe, tenho dúvidas que isso tivesse acontecido se fosse uma mulher branca. E tenho dúvidas que aquilo que aconteceu no Bairro Jamaica, com aquele pai a ser agredido à frente dos filhos, tivesse acontecido à porta de um prédio na Avenida de Roma.
Os portugueses são ou não racistas?
Julgo que sim. Estruturalmente é um povo racista. Dizer que Portugal é um país racista não quer dizer que todas as pessoas sejam racistas, deixe-me esclarecer desde já. Portugal é um país racista nas suas estruturas, sejam elas económicas, políticas ou sociais. Ou mentais. Porque temos muito racismo incorporado em nós em muitas das nossas atitudes.
Porque é que, apesar de termos populações negras em Portugal há mais de 50 anos, é raro encontrar um negro nos liceus? - e hoje as coisas estão um bocadinho melhores. Porque é que os negros vivem maioritariamente em bairros sociais? Porque é que os negros têm tanta dificuldade em ir à universidade ainda hoje? Encontramos poucos negros a tirar cursos superiores. Porque é que quando vão aos bancos têm mais dificuldade em conseguir crédito? A população presa é maioritariamente negra [em 2022 havia 12.383 presos nas cadeias portuguesas, 7,4% com origem em África, segundo a DGRSP, que não especifica o número de negros].
Estas coisas estão estudadas, há indicadores e observatórios. Os negros começaram a vir para cá nos anos sessenta, sobretudo cabo-verdianos, para trabalhar nas obras, porque muitos portugueses tinham ido para a guerra e Portugal precisava de mão-de-obra. E na segunda metade da década de setenta vieram muitos imigrantes negros para Portugal, que também deviam ter sido considerados retornados, mas não foram, porque não eram brancos.
Um dos problemas é a falta de dados, não há números. Em 2019 gerou-se uma polémica porque o grupo de trabalho do Censos 2021 defendia perguntar a origem étnico-racial dos cidadãos. Na sua opinião a pergunta devia ser feita?
Sei que é uma questão controversa, mas inclinar-me-ia para que fosse possível haver essa diferenciação. Até para ser possível conhecer a dimensão destas desigualdades. Claro que há muita gente na academia, como Rui Pena Pires, que defende que isso seria racismo; "porquê estar a discriminar as pessoas no Censos pela cor da pele?"
Exactamente para conhecer a realidade, saber se há desigualdades e onde e definir estratégias para as combater.
Também há muitas associações anti-racistas que defendem que deve haver essa diferenciação para se conhecer melhor a realidade. E eu também me inclino para isso. Acho que o benefício de conhecermos melhor a realidade supera esse eventual racismo inscrito nos mecanismos de mensuração da realidade.
Quem sente este racismo não somos nós, por isso a nossa opinião é secundária, temos de ouvir as pessoas que são alvo de racismo, essas é que têm de falar. E para isso têm de se integrar mais pessoas negras nos processos de decisão, não é pôr os brancos a tomar decisões sobre se há ou não racismo.
Devia haver quotas para negros?
Acho que numa fase de transição devia haver quotas para negros, sim. Mas numa fase de transição, porque numa sociedade mais madura e com maior consciência social essas coisas vão deixar de ser necessárias. Como devia haver quotas para as mulheres. A situação também se coloca: porque é que as mulheres ganham muito menos do que os homens nas mesmas posições laborais? Há muito poucas CEO, o número é quase residual comparativamente com os homens. E quando dizemos que Portugal é um país machista, não estamos a dizer que todos os homens são machistas.
Quando é que Portugal terá um primeiro-ministro ou um presidente negro?
Ou uma mulher. Apesar de tudo temos um indiano como primeiro-ministro. E que é muito alvo de racismo. Quantas vezes não ouvi chamarem-lhe chamuça ou monhé.
"Os negros eram todos preguiçosos, não gostavam de trabalhar, eram uma raça inferior. Cresci a ouvir isso na minha família. E a ouvir que Mários Soares, Rosa Coutinho ou Almeida Santos eram do pior que havia."
Contou um pouco da sua história. Até que ponto a descolonização tem impacto na sua vida?
Tem impacto no sentido em que sou retornado, venho de uma família de retornados, e, de certo modo, fui educado neste ambiente de retornados que reproduzia muitos dos estereótipos e preconceitos hostis aos negros; os negros eram todos preguiçosos, não gostavam de trabalhar, eram uma raça inferior. Cresci a ouvir isso na minha família. E a ouvir que Mários Soares, Rosa Coutinho ou Almeida Santos eram do pior que havia.
Andei no liceu nos anos oitenta e, que me lembre, havia dois ou três negros. Fazia parte do meu grupo de amigos um negro, e lembro-me que passávamos muitos intervalos a contar anedotas racistas. Na presença aquele negro, que tinha de se rir, porque se se revoltasse deixava de estar integrado. Aquilo deve ter sido uma violência para ele. Eu próprio contei anedotas racistas, muitas delas vinham da África do Sul, algumas a gozar com Samora Machel [primeiro presidente de Moçambique]. E também tive de fazer um processo de desconstrução dessa minha educação. Apesar de tudo, acho que a nossa sociedade está mais forte, mais vigilante, escrutina mais.
Disse que cresceu a ouvir dizer que Mário Soares e Almeida Santos eram do pior. Eram?
Não tenho essa opinião. Acho que, como todos os políticos, tinham defeitos e tomaram decisões erradas, que penso que os próprios reconheceram, sobretudo Almeida Santos. Acho que a situação era de tal maneira complexa, até em termos internacionais, que é difícil exigir a um único indivíduo ou a um grupo de indivíduos que tomassem decisões certas e que resolvessem todos os problemas.
Dizia-se, de facto - mas Almeida Santos sempre contestou isso -, que Almeida Santos tinha vendido as suas coisas em Moçambique, as suas propriedades e os seus bens, sabendo antes que ia haver o 25 de Abril, e que tinha avisado os amigos para o fazerem também. Até se dizia que os caixotes com os pertences que trouxe de lá eram das melhores madeiras, em pau-rosa, e houve quem tivesse escrito insultos a giz. Nunca se provou, mas esta era uma opinião corrente entre os retornados e durante muito tempo.
Com certeza que podiam ter feito melhor, mas também podiam ter feito pior. É muito difícil julgar aquele momento. A magnitude dos problemas era de tal ordem que é injusto atribuir-lhes individualmente responsabilidade por tudo o que correu mal, porque as pessoas estão dentro de um sistema em que há muitos interesses em jogo, muitas variáveis.
Uma das coisas que gostei no livro é que dá nomes às pessoas. Ficamos a saber que políticos defenderam o quê.
Falar em abstrato não tem efeito nenhum. É uma coisa que em Portugal se faz muito, falar em abstrato.
"O facto de haver um branco ou uma família de brancos que tem uma relação boa com os negros não apaga o facto de que a maioria tratava mal os negros."
Acredita que se a descolonização fosse hoje, as pessoas estariam dispostas a acolher negros nas suas casas, como aconteceu com os refugiados ucranianos, por exemplo?
É difícil, não só negros, mas quaisquer imigrantes, porque as pessoas hoje têm tantas dificuldades de habitação... Mas acredito que pelo menos uma parte da população portuguesa tenha alguns princípios de solidariedade e de algum modo contribuísse e participasse no esforço para criar condições de acolhimento e alojamento. É verdade que há uma certa tendência para ajudar os refugiados loirinhos e de olhos azuis, mas há alguns anos também houve algum racismo em relação às pessoas de leste. A diferença é que muitas delas tinham qualificações (diplomas de médicos, engenheiros), e acabaram por ter alguma facilidade de integração, foi mais fácil conseguirem emprego. Mas também houve o caso do SEF com o imigrante ucraniano [Ihor Homeniuk], que foi racismo.
Agora, não vale a pena iludirmo-nos, é verdade que haverá mais racismo em relação a imigrantes negros. Porque, em geral, há um medo, uma desconfiança em relação ao diferente, ao estranho, as comunidades sentem-se intimidadas em relação ao desconhecido. Por isso conto a história da Dona Céu, a senhora angolana que, quando foi à terra do padrasto, quiseram tocar-lhe para saber se a tinta saía. As pessoas têm medo de tudo o que desconhecem. E chegaram a Portugal mais de 500 mil retornados.
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