Terminou na sexta-feira, precisamente o dia desta entrevista, a discussão pública sobre as novas aprendizagens da Matemática no ensino básico, que em breve entrarão em vigor. Jorge Buescu, matemático, professor coordenador de mestrado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, vice-presidente da European Mathematical Society e Prémio Rómulo de Carvalho de Investigação e Divulgação da Universidade Lusíada, está preocupado e diz que o novo programa representa um retrocesso de 30 anos no ensino da disciplina. E que vai aumentar as desigualdades sociais. O pior é que o ministro Tiago Brandão Rodrigues "não tem noção das consequências" das medidas que o seu ministério vai adotar.

Chegou à redação do SAPO24 "equipado" com duas máscaras, porque se deslocou de metro. A Covid-19 foi, aliás, um dos temas da conversa com o investigador, agora já completamente vacinado (duas doses). Afinal, é preciso não esquecer que nenhuma vacina é 100% eficaz, o que significa que nem todos desenvolvem anticorpos para combater a doença. E as variantes ainda vieram complicar mais a equação.

Contas feitas, falta imunizar cerca de 70% da população portuguesa, "um longo caminho a percorrer". Depois, há o resto do mundo, e a única forma de controlar a pandemia e evitar o aparecimento de novas variantes é vacinar toda a população mundial, lembra Jorge Buescu.

As suas previsões mais recentes são moderadamente otimistas e apontam para "um pico em meados de julho", mas "sem razão para alarmes indevidos".

Lembra-se da altura em que começou a gostar de Matemática? Houve um momento?

Sim, sim, desde sempre. Lembro-me de várias coisas da minha mais tenra infância, em particular recordo-me perfeitamente de ter descoberto o Paradoxo de Zenão [raciocínio infinitesimal] por mim próprio, a fazer dissecções no cartão de uma caixa de fósforos e a perceber que se somássemos um meio, mais um quarto, mais um oitavo, mais, mais, aquilo ia dar a área total do cartão. Mas o fim da divisão nunca se atinge. Devia ter uns sete ou oito anos, por aí. Sempre gostei imenso deste tipo de coisas, sempre me atraíram.

O que não deixa de ser curioso, porque vem de uma família de Letras...

Venho de uma família totalmente ligada às humanidades. O meu pai e a minha mãe eram professores na Faculdade de Letras, as minhas irmãs também seguiram humanidades. Eu, pelo contrário, tinha estas coisas. Lembro-me de as minhas irmãs, que são mais velhas, terem explicações de Matemática e de eu insistir para o explicador me dar multiplicações para fazer. E enquanto ouvia ia fazendo multiplicações grandes. Porque gostava, sempre gostei.

Mas primeiro licenciou-se em Física.

Por altura do liceu, percebi que estava particularmente apaixonado por Física. E fiz Física. Só que, precisamente na faculdade, percebi que a Física é metade da Matemática, que era a metade de que gostava mais. Aí fui falar com um professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Alfredo Pereira Gomes [irmão de Soeiro Pereira Gomes], uma conversa de duas horas, no fim do primeiro semestre, a perguntar se devia ir para Matemática. Ele, sendo matemático, disse-me: "Faça lá a Física, acabe lá o curso, e voltamos a falar daqui a uns anos". E foi o que aconteceu, fiz Física e dali a uns anos voltámos a falar.

"Nunca houve tanta matemática a acontecer como hoje em dia"

Quando diz que Física é metade da Matemática, o que quer dizer exatamente?

Quero dizer que, de facto, o estudo da física, as leis da física, são essencialmente matemática. Por exemplo, a matemática moderna do cálculo infinitesimal, de análise, foi criada por Newton e por Leibniz precisamente para estudar problemas da física. Isso aconteceu no século XVII, mas continua. Claro que a matemática tem vida própria, mas muitas vezes é esta interação com as ciências, em particular com a física, mas não só, que motiva a criação de matemática nova.

Ou seja, ao contrário do que muitos julgam, a matemática não está toda inventada.

[Dá uma gargalhada] Pelo contrário, nunca houve tanta matemática a acontecer como hoje. Por acaso tem graça, ainda ontem à noite estava a jantar com um amigo jurista, mas que gosta muito de matemática, e às tantas disse-lhe: "A pergunta que me fazem mais vezes é se a matemática não está já toda feita". A resposta é nem pensar. Como a física não está toda feita. No momento em falamos existem mais matemáticos ativos do que em toda a história da humanidade.

E hoje, muitos são mulheres, talvez até mais mulheres do que homens. E há quem diga que são melhores...

Isso já é complicado, penso que a questão de género é capaz de não entrar muito na Matemática. O que há, de facto, é uma desigualdade histórica no acesso à educação e às oportunidades. Hoje há um grande movimento no sentido de encorajar as mulheres a envolverem-se na Matemática. Curiosamente, em Portugal esse desequilíbrio de que falamos não acontece. Olhando para o meu departamento, pelo menos metade são mulheres, as mulheres são até capazes de estar em maioria. Mas há histórias engraçadíssimas... Vistas à distância, claro.

Por exemplo?

Uma senhora, Sophie Germain, que viveu no final do século XVIII, princípio do século XIX, era apaixonada por Matemática — e foi uma matemática muitíssimo competente. Mas queria entrar para a École Polytechnique [Escola Politécnica de Paris], que não aceitava mulheres. O que fez é comovente: fez-se passar por um homem, um antigo aluno da escola [Antoine-August Le Blanc]. Intercetava os trabalhos enviados para ele e enviava as respostas. Um dia o professor [Joseph Louis] Lagrange disse: "Recebi aqui um trabalho de casa extraordinário. Quem é o senhor Le Blanc?" Era ela. Repare, isto foi há duzentos anos, quando as mulheres nem sequer podiam estudar nas escolas, o que gera desequilíbrios enormes, que ainda estamos a corrigir.

"Sobretudo numa fase mais precoce, ter bons professores é absolutamente essencial"

Tem dois filhos. Gostam ou gostavam de Matemática?

Um não, outro sim. Eles têm de ter a sua própria vida e descobrir os seus próprios interesses. Nunca forcei as coisas com eles. Enfim... É claro que os ajudei sempre que precisaram, a vários níveis, não só na Matemática. Mas como em Matemática tinha melhor perceção sobre se as coisas estavam ou não a correr bem... Mas nunca impus nem nunca forcei, ou gostam ou não gostam. O mais velho não gosta, o segundo gosta muito — outro dia até foi assistir a uma conferência minha. Por Zoom, claro.

O ensino da Matemática é muito sequencial. Se perdem algo pelo meio, é difícil recuperar.

Sim, é um edifício. Não podemos passar para o 11.º andar sem passar pelos dez anteriores. Não podemos não passar pelo terceiro ou pelo quarto pisos. Por isso é que, sobretudo numa fase mais precoce, ter bons professores é absolutamente essencial. Eu tive a sorte de isso acontecer. Quando se tem bons professores é meio caminho andado, em vez de ser uma coisa mecânica, conseguem motivar, explicar porque é que é interessante e bonito, estimular o interesse e a curiosidade.

Qual a sua sensibilidade para a qualidade dos professores de Matemática no primeiro e segundo ciclos?

Fico com a sensação de que hoje voltou a haver algum investimento na formação dos professores, mas é muito desigual, nomeadamente para os níveis mais básicos, 1.º e 2.º ciclos, que são decisivos. Os professores podem entrar na carreira com uma formação muito superficial, mesmo em termos quantitativos. E isso, depois, nota-se. Desse ponto de vista ainda temos um grande percurso a fazer.

"A matemática não é fácil. Para ninguém. Nem tem de ser e isso não é necessariamente mau. Um alpinista tem de fazer um enorme esforço para escalar o Evereste. Cristiano Ronaldo é quem é, mas não nasceu assim, teve de trabalhar muito"

A matemática é bonita?

A matemática é maravilhosa. É absolutamente maravilhosa.

Porquê, em quê?

Com toda a franqueza, tem uma componente estética que é espantosa. Só que não se vê à superfície. Quando conseguimos entrar suficientemente e ver coisas diferentes a juntarem-se, coisas que achávamos que eram completamente distintas e distantes, perceber que, afinal, são simplesmente a mesma coisa olhada de pontos de vista diferentes, é uma epifania. Isso acontece de repente, depois de anos de investigação. A matemática não é fácil. Para ninguém. Nem tem de ser e isso não é necessariamente mau. Um alpinista tem de fazer um enorme esforço para escalar o Evereste. Cristiano Ronaldo é quem é, mas não nasceu assim, teve de trabalhar muito.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Há pouco quando falava em género ou em predisposição genética era a brincar, mas sabemos que há cérebros com áreas mais desenvolvidas, não são todos iguais. Isso também tem a ver com estímulos.

Sim. Se essas áreas forem estimuladas desenvolvem-se, se deixarmos de as estimular atrofiam. A zona das artes, da matemática, da língua são completamente diferentes.

Ainda que os matemáticos sejam pessoas criativas, não?

Claro que sim. Pessoalmente acho que a Matemática é a língua das ciências, além de ser uma ciência em si própria. Mas a criatividade em Matemática tem muito mais a ver com as artes. Estar ali durante meses ou anos à volta de um problema, como já aconteceu comigo — ou está a acontecer, porque ainda não está resolvido — e, de repente, ter uma iluminação, uma ideia, algo que não se sabe muito bem de onde vem, tem muito a ver com o processo artístico. Vou dar-lhe um exemplo que se passou com um colega com quem trabalho há 15 anos... Quando estava a orientar o doutoramento dele, tínhamos ali uma conjetura que era preciso provar. Ele esteve tempos, como dizia, a malhar em ferro frio e não acontecia nada, estava a ser muito frustrante. Até que ele me liga: "Olha, ontem, na aula de yoga, fechei os olhos e, de repente, vi as matrizes a encaixar. Fiquei mais uma hora de olhos fechados e percebi como era". E, de facto, a demonstração era aquela. Portanto, o processo criativo em matemática tem muito, mesmo muito — o que é uma coisa estranha, dito assim até parece forçado — de irracional. A ideia de "vou demonstrar isto ou aquilo" e sai tudo seguidinho é falsa, não tem nada a ver.

Como é o seu processo de criação?

É um bocadinho como dizia Thomas Edison,"1% de inspiração e 99% de transpiração". Só que o flash da inspiração é absolutamente crucial. Mas não vem do nada. Em Física isto talvez seja mais fácil de transmitir, sabemos que há coisas por explicar, não sabemos o que é a energia escura, por exemplo, enquanto na Matemática é mais difícil, porque trabalhamos com objetos, que têm propriedades, que são reais, mas que estão dentro da nossa cabeça, são construções...

Estão no abstrato.

Exatamente. Não tenho dúvida nenhuma de que os objetos com os quais estou a trabalhar, aqueles que disse que depois encaixavam, existem. Aquilo existe, mas só na cabeça dos matemáticos. O mais espantoso é que estas coisas, existindo na cabeça dos matemáticos, têm tradução total no mundo real. As coisas específicas que comecei a estudar vêm de problemas de engenharia. E, se calhar, quem sabe, as que entretanto já demonstrei têm aplicações também, ou terão aplicações daqui a dez anos, não sei.

O que está a investigar, o que gostaria de descobrir?

No processo de investigação as coisas são tudo menos lineares. O que acontece é que me proponho estudar um problema, chegar a um destino, mas pelo caminho o problema ganha vida própria, as coisas bifurcam, um bocadinho como o Jardim do Borges. Na investigação científica, seja matemática ou outra, é como se fossemos lançados para uma sala completamente às escuras e tivéssemos de adivinhar o que existe sem ver nada. A maior parte das nossas ideias estão erradas. Isto deve ser uma secretária; não, afinal é um armário. Mas estão erradas de uma maneira boa, que nos permite reformular a hipótese de uma forma mais sofisticada, mais próxima da verdade. É um pouco como a frase de Samuel Beckett: "Falhar, paciência, tentar de novo, falhar de novo, falhar melhor". A investigação é assim, vamos falhando cada vez melhor. Pode levar meses ou anos a conseguir ver tudo o que está na sala.

O que seria o seu momento eureka?

Existe um problema matemático, o mais importante em aberto, que é a hipótese de Riemann — precisamente o tema da tal conferência no mês passado a que o meu filho mais novo assistiu. O problema tem mais de 160 anos e é daqueles tipo dominó, se for demonstrado acontece uma sequência de coisas. E tem um prémio de um milhão de dólares. O que eu gostava mesmo era de resolver a hipótese de Riemann. Que tem milhões de histórias, mas há uma a que acho imensa piada. Um matemático do virar do século, David Hilbert, um dos maiores, foi entrevistado e perguntaram-lhe: se pudesse ser congelado e acordar daqui a 500 anos o que acha que iria acontecer? Resposta: "Bem, eu acordava e ia imediatamente perguntar se já tinha sido resolvida a hipótese de Riemann".

Se fosse congelado e acordasse daqui a 500 anos, o que quereria saber, sem ser se a hipótese de Riemann já tinha sido resolvida?

Quantas vezes o Benfica tinha sido campeão.

Conhece alguma anedota de matemáticos? Conte uma...

Há aquela famosa, do matemático e o balão. Um homem vai num balão, o balão sobe, ele perde o controlo, mas lá consegue descer no meio de um campo. Encontra uma pessoa e pergunta: "Desculpe, onde é que eu estou?". E o homem responde-lhe: "O senhor está num balão". Ele fica a olhar e diz: "O senhor é matemático, não é?". "Por acaso sou, mas como é que sabe?". "Fiz-lhe uma pergunta, o senhor refletiu um pouco, deu-me uma resposta absolutamente certa, mas completamente inútil".

"A evolução do nosso sistema de ensino, do meu ponto de vista, é muito preocupante"

Passando da investigação para o ensino. Já falámos da importância dos estímulos, como olha para o ensino da Matemática ao longo dos últimos anos?

Se o processo investigativo é aparentemente caótico, o ensino da Matemática é completamente diferente. Estes caos crítico em que os matemáticos vivem, no ensino, mesmo nas aulas que dou na faculdade, já tem 200 anos, está mais do que estabelecido. Pego nisso e dou uma aula estruturada: definição, teorema, demonstração, exemplo. E é por isso que as pessoas acham que a Matemática já está toda feita, porque só veem este lado. No secundário, a Matemática vai até há 350 anos. Mas não podemos deixar de ensinar, por causa da tal questão da integração vertical, do edifício.

A relação dos alunos com a Matemática é geralmente de amor ou ódio. Até ao secundário a disciplina está ao nível do Português. Faz sentido?

Claro que faz. Como já disse, a Matemática é também e acima de tudo a linguagem de todas as ciências. Diria que quem vai para Engenharia, Física, Química, Biologia, Economia, por exemplo, precisa essencialmente de Matemática. Não é um capricho nosso — e quando digo nosso, estou a falar a nível mundial — impor a Matemática como essencial. Na Irlanda, por exemplo, só a Matemática é essencial.

E o ensino está bem estruturado ou há pelo caminho uma série de inutilidades? Os programas curriculares estão bem pensados?

Tenho de recuar à pergunta que me fez sobre o ensino da Matemática nos últimos anos. É uma pergunta interessante, porque a evolução do nosso sistema de ensino, do meu ponto de vista, é muito preocupante.

Porquê?

Porque nos anos 70, 80 e 90 tivemos uma expansão muito grande do sistema de ensino, sobretudo ao nível do secundário. Só que essa expansão foi feita de uma maneira caótica, sem cuidar da qualidade do ensino, que caiu tremendamente. Havia a noção de que isto estava a acontecer, mas não havia forma de o medir. Em 1995, entrámos pela primeira vez nos testes internacionais, aderimos ao TIMSS [Tendências em Estudo Internacional de Matemática e Ciência] e os resultados foram um desastre. De tal maneira que a secretária de Estado da Educação [e Inovação] da altura, Ana Benavente, veio dizer que os alunos portugueses eram diferentes e não precisavam de avaliações internacionais — estávamos na fase em que [Eduardo] Marçal Grilo falava no "eduquês". E saímos dessas avaliações. Apesar disso, aquilo funcionou como uma espécie de choque e, de repente, percebeu-se que havia um problema sério e grave. Não era só com a Matemática, era com as outras disciplinas também. A partir daí, no virar do século, houve uma espécie de pacto entre as forças políticas para se tomarem medidas de exigência, uma vez que o ensino tinha atingido níveis horríveis de facilitismo.

Pode recordar essas medidas?

Primeiro foi o ranking das escolas, em 2001. O discurso, nessa altura, era que não eram precisos rankings porque as escolas são todas iguais. Como se está a ver hoje, as escolas não são todas iguais, evidentemente. Depois foi o exame do 9.º ano, penso que com a ministra Maria de Lurdes Rodrigues, e as metas de aprendizagem, primeiro com ela, depois com Nuno Crato. Com o ministro Nuno Crato vieram também os exames do 4.º e do 6.º ano. Como lhe digo, o ensino primário é absolutamente essencial. Se não há exames, cada professor faz aquilo que lhe apetece, por isso é que os nossos resultados eram péssimos nos anos 90. Finalmente, houve novos programas e metas para o ensino básico e secundário, e Nuno Crato voltou a colocar-nos nos testes internacionais, PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos] e TIMSS. Os resultados cresceram espetacularmente em 2015, passámos à frente da Finlândia, de quem toda a gente fala. Éramos o país com a maior taxa de crescimento nos testes internacionais. Repare, estou a falar de um caminho entre o virar de século e 2015, em que mesmo entre governos de cores diferentes havia uma coerência nas políticas.

Depois chegou o primeiro governo PS, liderado por António Costa. O que mudou?

Chegou este governo e a primeira coisa que fez foi acabar com os exames do 4.º e do 6.º ano, mesmo ainda antes de tomar posse e por transação política, o que foi péssimo. Em 2017 começaram com a flexibilidade curricular e as aprendizagens essenciais, que acompanhei muito de perto, era presidente da SPM [Sociedade Portuguesa de Matemática] na altura.

O que significou isso, na prática?

Na prática, as aprendizagens essenciais é dizer: "Isto é preciso dar, isto pode dar ou não". Quer dizer, dar ou não 25% do programa ficava à escolha do professor. Isto é uma coisa com muitos níveis de gravidade. Eu costumava dizer a brincar: "Então, na primária qual das quatro operações deixa de se dar?". Isto foi feito sem coerência nenhuma, tirava-se uma coisa daqui, que daí a dois anos ia ser importante, mas ninguém sabia, e isso desarticulou o ensino todo, ficou uma coisa mesmo desengonçada.

E neste momento?

No caso do ensino básico e do secundário os efeitos já estão à vista. Descemos espectacularmente no TIMSS de 2019, o que não é surpresa, nestas condições, e neste preciso momento estão em pronúncia pública, mas já vão acontecer, as novas aprendizagens essenciais e os novos programas de Matemática, que representam um retrocesso de 30 anos. É extraordinário, recuamos aos anos 90.

Tudo com a conivência de quem?

Do Ministério da Educação. Os grupos de trabalho que estão a fazer isto foram convidados pelo Ministério da Educação.

"A Sociedade Portuguesa de Matemática foi excluída de todos os grupos de trabalho do Ministério da Educação desde 2016"

Como é que um grupo de trabalho chega a conclusões que, como diz, nos fazem andar para trás 30 anos?

Já agora, deixe-me dizer: este Ministério sempre desqualificou a Sociedade Portuguesa de Matemática. Nós, obviamente, somos muito a favor do rigor no ensino e contra o facilitismo. Infelizmente, na atual situação sociopolítica isto não é uma posição muito popular. Mas sempre nos batemos a favor disto, simplesmente o ministério nunca nos quis ouvir.

A Sociedade Portuguesa de Matemática não está representada no tal grupo de trabalho?

A Sociedade Portuguesa de Matemática foi excluída de todos os grupos de trabalho do Ministério da Educação desde 2016. Não nos queriam ouvir. Tive reuniões com o secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa, em que perguntei por que motivo nos excluíam. Resposta: "Vocês não estão excluídos, simplesmente não estão convidados". A SPM é, obviamente, uma voz incómoda. Não estamos alinhados. O único interesse da SPM é a Matemática, portanto, somos uma voz muito dissonante e muito crítica. A SPM está a preparar um parecer onde explica fundamentadamente por que motivo isto representa um retrocesso de 30 anos. É voltar aos programas de 1991, horrível. Num certo sentido, é voltar à Idade da Pedra. Voltámos a ter aquelas discussões idiotas de que os meninos não precisam de aprender a fazer contas porque têm calculadora. Isto é uma total idiotice. Inglaterra deixou de permitir a utilização de calculadora até aos 12 anos. Depois disso, quando as contas são mais complicadas e eles já sabem fazer o básico à mão, então sim, são permitidas as calculadoras.

Se o ministro Tiago Brandão Rodrigues fosse seu aluno, que nota lhe daria pelo seu desempenho?

Penso que Tiago Brandão Rodrigues não comparecia a exame. Porque, infelizmente, praticamente não toma posições sobre as questões importantes da educação. As pessoas que estão por trás é que definem ou fazem a definição do percurso. Penso que o ministro não tem noção das consequências das medidas que o seu ministério está a tomar, o que é curioso, porque é um cientista. E sei que gosta bastante da SPM — falo muito da SPM porque estive muito próximo destas coisas no meu mandato —, mas então porque é que não diz ao secretário de Estado Adjunto que gere todos estes processos do básico e do secundário que quer lá a SPM? Mas não faz isso, nunca fez. E fartei-me de lhe escrever cartas e dizer isto.

Respondeu alguma vez?

Ele? [ri] Passou as cartas para o secretário de Estado Adjunto, João Costa, que é a figura tutelar deste movimento que nos está a atirar 30 anos para trás, uma coisa dramática.

"Ao baixarmos o nível de exigência, ao entrarmos na espiral do facilitismo, estamos a aumentar as desigualdades"

Como se vê esse retrocesso, o que está em causa?

Em particular — e a pandemia não é desculpa, porque o TIMSS foi em 2019, não havia pandemia alguma — nota-se na queda dos resultados portugueses nas avaliações internacionais. Mas isso já é claro. O TIMSS é para meninos do 4.º ano. A coisa mais evidente é os exames terem acabado em 2015, ou seja, esta geração de alunos já não teve exames e, mais do que isso não teve a preparação. Porque ter o exame significa que os professores se responsabilizam por ensinar um programa. A partir do momento em que se diz que 25% da matéria não é para ensinar, automaticamente essa geração chegou a 2019 e teve resultados desastrosos. Até do ponto de vista político e social isto é muito mau. O grande elevador social é a educação, essa é a maneira de retirar gerações de situações de pobreza e de degradação. Ao baixarmos o nível de exigência, ao entrarmos na espiral do facilitismo, estamos a aumentar as desigualdades. Safam-se os que têm pais engenheiros ou cientistas ou o que são ricos e podem pagar explicações e colégios privados. Ao alinhar por baixo estamos a prestar um péssimo serviço à sociedade. Do meu ponto de vista é dramático. A parte dos exames é a que se vê a curto prazo, mas isto que estou a dizer agora só se vê a 30 anos, não é amanhã. A degradação do ensino começou há meia dúzia de anos e, como não é visível, nem sequer vai a votos. Além de que, em altura de crise, vimos isso nos anos da troika, há uma redução muito grande de candidatos ao ensino superior. Os mais sacrificados com a falência do sistema de ensino são classes socioeconómicas com menos recursos.

Em relação ao ensino da Matemática, onde estão as escolas de excelência, quais os países mais avançados?

Claramente os países do sudoeste asiático, em particular Coreia e Singapura. De tal maneira, que, quando Israel decidiu que tinha de apostar no ensino da Matemática, o que fez foi buscar os manuais escolares de Singapura e traduzi-los na íntegra — uma escola que está a fazer isso em Portugal é o Colégio de São Tomás. E cada vez mais o diferencial em relação ao mundo ocidental é maior. Enquanto isso, o Ocidente está com tendências socioculturais que não vão nesse sentido, estamos a deixar-nos levar por modas educativas, pela conversa dos soft skills, e não temos os fundamentais no sítio. Não estamos a fazer isso bem. A qualidade do ensino em Portugal também é desigual, em professores e programas. A nossa queda global tem como consequência que o que vai ficando acima da média são os colégios privados, quanto mais não seja por comparação.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Falou em pandemia. O SARS-CoV-2 tornou famosos alguns modelos matemáticos que foram surgindo para prever a evolução de infetados. Faz parte deste grupo, quais as suas previsões mais recentes?

Estamos numa fase muito diferente da que estávamos há ano e meio do ponto de vista da evolução da pandemia. Na fase inicial utilizávamos precisamente modelos. O modelo é uma coisa quantitativa, dividir a população em diferentes compartimentos — chamam-se mesmo modelos de compartimentos —, basicamente os suscetíveis (as pessoas que podem apanhar a infeção), os infetados e os recuperados (ou removidos, porque pode haver mortes). Podem existir outros compartimentos, como os expostos, que são os que estão em incubação, e outras estratificações. Atualmente, a dinâmica de transição é feita por um conjunto de equações diferenciais, que são as taxas de variação: com que velocidade é que os suscetíveis se vão infetar. O estatístico George Box tem uma frase que descreve esta situação: "Todos os modelos estão errados", mas há alguns modelos úteis. É claro que o modelo não corresponde exatamente à realidade, é uma representação. É um pouco como na meteorologia, que pega em dados básicos como velocidade do vento, pressão, temperatura, para calcular o que vai acontecer. Hoje, com tantas coisas a mudar e tão rapidamente, como fechar áreas metropolitanas ou ir tudo para Sevilha, as diversas variantes e as medidas do governo, deixamos de conseguir prever certos parâmetros, por isso temos de fazer modelos fenomenológicos. Isto significa pegar nos dados e ver quais são as tendências. No fundo, não são modelos, são abordagens estatísticas. E é isto que é útil neste momento.

"Se o vírus se espalha por África e faz uma variante maluca que escapa às vacinas, ficamos todos outra vez em risco. A única maneira de controlar isto é vacinando globalmente"

[Num quadro exemplifica]

O sistema mais básico é de 1927. O modelo tem três variáveis: os suscetíveis, os infetados (ativos) e os recuperados. A soma dos três é a população total. Neste momento já não uso isto, porque são parâmetros muito difíceis de definir, o que uso essencialmente é o Rt. A nossa preocupação são os suscetíveis. A pergunta é: quantas pessoas temos suscetíveis de ser infetadas? Sabemos que temos 27% de vacinados e que a eficácia das vacinas varia entre 88% para a Pfizer e 60% para AstraZeneca. A eficácia média é qualquer coisa como 80% — mas é preciso considerar que a eficácia na primeira dose é muito baixa, apenas 33%. Temos cerca de 28% imunizados, ou seja, o suscetíveis para a variante Delta são 72% (ou 70%, se quisermos considerar os que já estiveram doentes). Já não é 100%, mas estamos ainda muito longe do ideal. Portanto, esta ideia que de alguma maneira foi transmitida de que o pior já passou não é verdade. Isto é muito perigoso. Em seis meses tivemos oito milhões de vacinas, mas precisamos de 20 milhões, portanto no fim do ano ainda não estaremos todos vacinados.

Falou nas variantes, uma incógnita que pode mudar tudo de um momento para o outro.

A eficácia das vacinas não é de 100% e com a variante Delta altera ainda mais. Quando se diz que a eficácia da vacina é de 88%, de facto significa que há 12% dos vacinados que não ficam imunizados. Doze por cento é uma pessoa em cada oito. Portanto, de um certo ponto de vista não é surpreendente que haja infetados vacinados, vacinados hospitalizado e até óbitos. Mas o que parece ser verdade é que a gravidade dos casos é mais baixa. No verão passado estávamos com 30 ou 40 óbitos por dia, hoje temos um décimo disso. Nada nos garante que não vão surgindo outras variantes, e isto é um problema global. Quando o G7 diz que vai oferecer mil milhões de vacinas aos países mais pobres, claro que podemos ficar com a consciência mais tranquila porque os estamos a ajudar, mas na verdade estamos também a ajudar-nos a nós próprios, isso faz parte da motivação. Se o vírus se espalha por África e faz uma variante maluca que escapa às vacinas, ficamos todos outra vez em risco. A única maneira de controlar isto é vacinando globalmente.

Este governo não tem matemáticos, mas tem muitos políticos que gostam de brincar com a estatística.

[Ri] Sabe, há uma famosa citação de [Benjamin] Disraeli, primeiro-ministro inglês no virar do século XIX para o XX: é que há "Lies, damned lies and statistics" ["mentiras, mentiras descaradas e estatística]. Diria que não é um problema especificamente nosso. Mas podemos, de facto, contar mentiras ou sugerir coisas que não são verdade através da manipulação de dados. Há formas de os apresentar, como se viu há uns meses quando o PS apresentou um gráfico sobre vacinação. O primeiro livro que li quando cheguei à faculdade chama-se precisamente "How to lie with statistics" ["Como mentir com a estatística", de Darrell Huff]. E a manipulação dos gráficos é um dos primeiros exemplos. Tecnicamente não está errado, mas a representação está manipulada. Nesta questão da pandemia, que ao longo deste ano e meio tomou conta de nós, tem havido muito pouca transparência — há muitos dados que existem e não são tornados públicos, o que é pena.

"O que gosto menos [em Lisboa] é de uma deriva para uma espécie de Disneylândia, potenciada nos últimos dez anos, em que se pintam ruas de cor-de-rosa ou de azul, fazem mais ciclovias"

Mudando completamente de assunto, se tivesse de escolher cinco objetos da sua vida, quais seriam?

Livros, uma bola...

De que clube é?

Sou chefe de família, sou do Benfica. Mas não tenho nada contra o Sporting, aliás, moro em Telheiras, ao lado do estádio.

Segue o Euro2020?

Os nossos jogos, mas o resto não. Com toda a franqueza, disse bola, mas fiquei logo arrependido, o futebol transformou-se numa coisa muito pouco bonita, num negócio. Troco bola por um tabuleiro de xadrez.

Faltam três objetos.

Um CD de música clássica, Wagner, pode ser. E que mais? Uma bicicleta.

Elétrica?

Não, não, sem doping. Sempre gostei de andar de bicicleta, não é agora por causa das ciclovias. Com as ciclovias é mais fácil...

Ainda falta um.

Bem, tem de ser um computador.

Vota em Lisboa, o que mais gosta e desgosta na cidade?

O que gosto em Lisboa é ter uma vida tranquila, segura, em que podemos ir para todo o lado sem problemas, sem nos preocuparmos excessivamente com questões de segurança. Isso é uma coisa que mesmo colegas meus de outros países notam e me dizem. O que gosto menos é de uma deriva para uma espécie de Disneylândia potenciada nos últimos dez anos, em que se pintam ruas de cor-de-rosa ou de azul, fazem mais ciclovias — e gosto muito de andar de bicicleta, como já disse, comprei uma no mês passado, mas esta febre das ciclovias é uma coisa exagerada, para inglês ver, mais do que uma necessidade. Podia dar imensos casos, da Almirante Reis à saída de Telheiras, que já era uma coisa horrível à hora de ponta quando tinha duas faixas e que se tornou ainda pior depois de se reduzir a uma faixa para construir duas ciclovias, uma de cada lado, quando há outra a 300 metros. Portanto, três ciclovias. Acho que há uma certa irracionalidade nisto. Não podemos proibir os carros de circular na cidade, é estúpido. Uma família com duas crianças vai de bicicleta ao Continente? Não pode ser, temos de ter noção da realidade. E o que está a acontecer é uma distorção completamente desnecessária, que torna as coisas disfuncionais.

"Uma coisa que me incomoda profundamente na nossa vida coletiva é que ninguém tem responsabilidade de nada"

Temos assistido a diversos imbróglios políticos, um dos últimos foi a comunicação de dados de manifestantes estrangeiros às respetivas embaixadas. O que é que isto diz de nós e das decisões públicas?

Uma coisa que me incomoda profundamente na nossa vida coletiva é que ninguém tem responsabilidade de nada. Lembro-me perfeitamente quando Jorge Coelho se demitiu por causa da história da ponte de Entre-os-Rios, mas, retrospetivamente, não me lembro de outra pessoa que tivesse a dignidade de assumir as suas responsabilidades. Repare, o presidente da câmara de Lisboa de certeza que não andou a enviar emails para as embaixadas, não foi ele pessoalmente, mas tem responsabilidade política. Eu, enquanto professor da minha faculdade, tenho responsabilidade não apenas pelas minhas aulas, mas também pela imagem da faculdade, sou coordenador de mestrado e tenho responsabilidade se alguma coisa correr mal, mesmo que não tenha sido eu a fazer. Sou vice-presidente da European Mathematical Society, se houver uma bronca qualquer amanhã, tenho uma responsabilidade sobre aquilo. Esta ideia de que não há responsabilidades institucionais a assumir é uma atitude um pouco dissolvente. E é isso que noto na nossa vida coletiva, uma espécie de dissolvência, em que tudo está no estado líquido.