BREVE INTRODUÇÃO

O objetivo deste livro é o de dar a conhecer a História, a presença e o património da Maçonaria na cidade de Lisboa. Para tal, estabelecemos duas datas fundamentais que balizarão esta nossa viagem: a primeira é a de 1727, em que temos a primeira notícia certificada da existência de uma Loja na cidade; a segunda data é a de 1974, em que, com o advento da liberdade, a Maçonaria portuguesa e lisboeta sai de um período de repressão que se estendeu por quase 40 anos. Será, pois, entre estas duas datas que se desenvolverá este volume.

Para abordar esta realidade de cerca de dois séculos e meio, dividimos este livro em quatro partes.

A primeira abrange o período inicial da Maçonaria lisbonense, que vai desde 1727 à implantação definitiva do Liberalismo, em 1834. É um período de luta, de clandestinidade, de resistência e de repressão, durante o qual os maçons lusos pelejam para se afirmar num contexto político que lhes é desfavorável, não obstante a lenta afirmação da Maçonaria a nível europeu, sobretudo no centro da Europa.

A segunda parte vai desde a implantação do Constitucionalismo entre nós – com o triunfo liberal na Guerra Civil de 1832 a 1834 – até 1926, com a instalação da Ditadura. É o período em que, com altos e baixos, a Maçonaria alargará a sua influência, em que está, amiúde, “na moda” entre as elites político‐sociais, com todas as vantagens e com todos os problemas que tal acarreta. É também uma época de alguma cizânia e de algumas rivalidades no seu seio, reflexo, afinal, das rivalidades políticas existentes na sociedade nacional.

Francisco Mota Saraiva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de abril, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morramos ao menos no Porto", publicado pela Quetzal.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

"Morramos ao menos no porto" pediu o título emprestado a Séneca e venceu o Prémio José Saramago no final de 2024. É "um romance que abala os fundamentos da narrativa clássica, um fogo que alastra até consumir todas as suas personagens e que revela o seu autor como uma voz poderosa na literatura portuguesa".

Pode ler um excerto aqui.

A terceira parte leva‐nos aos anos de chumbo do Portugal contemporâneo. São os anos da Ditadura Militar instalada em 1926 e, a partir do dealbar da década de 1930, do Estado Novo de Salazar. Correlata com a repressão que se fazia sentir na nação, aí está a repressão sobre os pedreiros‐livres, cujo zénite é a proibição da Maçonaria em 1935. Partindo daqui, observaremos a polémica que se viveu nesse ano, nomeadamente a que envolveu Fernando Pessoa e os setores antimaçónicos, alegoria, afinal, de um combate político‐intelectual entre os setores mais reacionários e os setores mais esclarecidos da sociedade lusa. De igual modo, observaremos a resistência da proibida Maçonaria entre 1935 e 1974, nomeada‐ mente o empenho de vários dos seus membros na luta antifascista.

Por fim, a quarta parte terá uma abordagem diferente da História da Maçonaria na cidade. Esta parte será constituída por uma breve viagem pela presença maçónica em Lisboa – ora declarada, ora oculta (ou mais ou menos oculta) –, nomeadamente os locais onde os seus símbolos estão presentes, ou, dito de outra forma, os locais onde alguns observadores detetam a presença desses símbolos.

No final, uma bibliografia completará este livro. Uma biblio‐ grafia sumária, decerto, na qual se privilegiaram os livros e os artigos que permitem ao caro leitor ir além destas páginas através da pena dos melhores especialistas deste tema. Já agora, que me seja permitida uma homenagem a esses autores, cujo labor permite a reconstituição séria e fidedigna da presença da Maçonaria entre nós (e na nossa capital). E sem qualquer desprimor para os demais historiadores arrolados e citados nessa bibliografia – a quem é, aliás, devido também um forte reconhecimento –, desejo aqui salientar a obra de dois nomes grandes da historiografia nacional que se dedicaram a este tema, o Prof. Dr. António Ventura e o Prof. Dr. (e meu saudoso mestre) A. H. de Oliveira Marques.

Devemos enfatizar que este é um livro para o grande público. Como tal está desprovido de algumas características que, habitual‐ mente, caracterizam os livros tipicamente académicos. A linguagem é mais informal e coloquial, não tem notas de rodapé ou afins (de final de capítulo ou de fim do livro) e não apresenta uma extensa bibliografia, embora a que fornecemos nos pareça suficiente para o leitor que quiser alargar o seu conhecimento sobre este tema. Todavia, em nenhum momento aliviámos o rigor informativo/histórico, estando todas as descrições e conclusões sedimentadas na bibliografia e em investigação própria.

Este livro está incluído na coleção sobre Lisboa que, desde 2018, temos vindo a publicar na editora Parsifal. Por isso, não podemos deixar de agradecer e saudar a editora e os seus responsáveis – nomeadamente o editor Marcelo Teixeira –, pela confiança, estima, cortesia e disponibilidade que sempre manifestaram para comigo.

Este reconhecimento e agradecimento é ainda extensível ao historiador Jorge Martins, ao escritor e investigador José Fanha, ao Rogério Vargas, ao Dr. Pedro Rebelo de Sousa e ao Dr. Francisco Xavier Alves.

Um último agradecimento é devido à minha família e aos meus amigos. Por tudo, claro.

1. DOS PRIMÓRDIOS AO TRIUNFO LIBERAL (1727 A 1834)

Os primeiros anos da presença maçónica entre nós estão mergulhados em algumas dúvidas e em várias incógnitas. Para tal, concorrem dois fatores.

O primeiro fator prende‐se com o período histórico em si, já que o Absolutismo Régio – associado à repressão inquisitorial e eclesial – não permitia que os ideais maçónicos e a correspondente atividade dos primeiros pedreiros‐livres em Lisboa se desenvolvessem em liberdade. Naturalmente, a atividade dos pedreiros‐livres destas primeiras décadas é pautada pela prudência, pela clandestinidade (um termo mais moderno, mas, de todas as formas, funcional) e pela natural omissão documental por parte dos maçons, que se inibiam de registar por escrito as suas atividades e os seus membros. Não é por acaso que, como salientam os historiadores, muitas das informações que temos para este período sejam originárias da própria Inquisição.

O segundo fator tem a ver com o facto de as primeiras Lojas estabelecidas em Lisboa e no reino terem sido abertas por estrangeiros, sobretudo britânicos. Inicialmente interditas a portugueses, essas Lojas, abertas por forasteiros residentes ou com atividade na capital, eram, pois, um corpo ainda um pouco “estranho” no tecido político, cívico e social português, um corpo com o qual as autoridades não sabiam bem como entender e combater. Depressa, porém, essa estranheza se dissipou. A nascente Maçonaria portuguesa cedo colheu os frutos das sementes lançadas no solo lusitano, ao mesmo tempo que, escorada em bulas papais condenatórias, a Igreja/Inquisição começou rapidamente a perseguir a “tenebrosa seita” com outra constância e maior coerência.

Ora tendo em conta estes dois fatores – o contexto desfavorável e a prevalência de estrangeiros –, vejamos como a Maçonaria chegou a Lisboa...

A loja dos hereges mercadores

A mais antiga referência à atividade maçónica em Lisboa – e no reino, aliás – leva‐nos ao ano de 1727. Nesse ano, funcionava no Beco dos Açúcares – a par do Largo dos Remolares e do Largo do Corpo Santo – a primeira Loja alfacinha e nacional.

Reinava, então, em Portugal, el‐rei D. João V, um monarca que, como todo o reino, estava deslumbrado com o afluxo do ouro das terras “brasilienses”, como ao tempo de dizia. Entretanto, a riqueza oriunda da região de Minas Gerais seria, em grande parte, dissipada em importações (arruinando parte das manufaturas lusas), em doações pias ou em obras sumptuosas, como a Patriarcal, a Ópera do Tejo e o Palácio‐Convento de Mafra. O resto da nação vegetava na eterna ilusão de uma fictícia grandeza, na recorrente pobreza e na mansarrona ignorância de sempre. Como, por essa altura, dizia o secretário particular do rei, o esclarecido paulista Alexandre de Gusmão – ele mesmo um possível maçom:

O reino geme no regaço da mais completa miséria. Não há dinheiro, não há braços, não há nada. A fradaria absorve‐nos, suga-nos, leva‐nos à ruína.

Se em termos económicos e sociais estamos conversados (passe o simplismo da anterior descrição), em termos culturais e religiosos o panorama também não se apresentava particularmente são. Se D. João V reinava, o Santo Ofício mandava, tudo envolto numa promíscua e prepotente associação entre o Trono e o Altar, de que ambos beneficiavam. No ano anterior, o médico Ribeiro Sanches abandonara Portugal para escapar à perseguição inquisitorial – era cristão‐novo –, sendo doravante obrigado a exercer a sua arte e talento nas melhores cortes estrangeiras, granjeando a justa fama que o levaria a participar, anos mais tarde, na famosa Enciclopédia, de Diderot. Ainda em 1726, fora preso, juntamente com sua mãe, o dramaturgo António José da Silva (o Judeu), pelos mesmos motivos que haviam levado Sanches ao exílio. Menos afortunado que o médico, António José acabaria executado no auto‐de‐fé de 19 de outubro de 1739, depois de anos de perseguições e tratos de polé. Tal como sucedeu com Ribeiro Sanches e com o ouro brasílico, também a morte do maior dramaturgo do seu tempo seria um crime de desperdício, o “pecado maior” típico das nações pobres.

Mas, após esta sumaríssima contextualização, voltemos ao Beco dos Açúcares, paredes‐meias com o Largo dos Remolares, assim chamado por ser aí que se concentravam os artesãos que faziam e remendavam remos. Hoje, o local está ocupado pelo Largo D. Luís I. Também o Largo do Corpo Santo, como vimos, lhe era fronteiro, mas este mantém a sua toponímia. Podemos assim dizer que a localização do que se sabe ser a primeira Loja maçónica em Lisboa e no reino se situava rente ao rio, entre os atuais largos referidos. Não é impossível que essa Loja, conhecida como a Loja dos Hereges Mercadores – na verdade, era essa a designação pela qual a Inquisição a designava –, existisse antes de 1727. O certo é que esse é o ano em que dela temos a primeira notícia.

Aliás, convém relembrar que muitos dos dados que temos para a atividade maçónica em Lisboa e no resto do reino, sobretudo para o século XVIII, provém dos arquivos do Santo Ofício, cuja sede lisbonense era ao Rossio, no Palácio dos Estaus, onde hoje se situa o Teatro Nacional D. Maria II. De facto, desde o seu dealbar que a Maçonaria encontrou na Igreja Católica um pertinaz inimigo. E neste aspeto, devemos salientar que a lisboeta Loja dos Hereges Mercadores foi fundada relativamente cedo – se assim pode‐ mos dizer –, já que a primeira Grande Loja maçónica “moderna” formalmente organizada – a Grande Loja de Londres e Westminster, que mais tarde passou a ser a Grande Loja da Inglaterra – fora fundada na capital britânica apenas dez anos antes da nossa, a 24 de junho de 1717, agregando outras Lojas mais pequenas e “avulsas” da cidade do Tamisa.

Para melhor percebermos os condicionantes da Maçonaria em Lisboa nas suas primeiras décadas, convém perceber a origem dessa sanha clerical contra os pedreiros‐livres. Ora desde cedo que a Igreja manifestou a sua animadversão contra a Maçonaria, considerando‐a incompatível e contrária aos seus dogmas, múnus e crenças. Se em 1727 ainda não havia um texto formal emanado de Roma contra os pedreiros‐livres, logo em 28 de abril de 1738, o Papa Clemente XII emitiria a encíclica In eminenti apostolatus specula, na qual condenava liminarmente a Maçonaria.

Livro: "Lisboa Maçónica"

Autor: Sérgio Luís de Carvalho

Editora: Parsifal

Data de Lançamento: 9 de abril de 2025

Preço: € 17,00

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Demos conta que foram formadas, e que se afirmavam dia após dia, centros, reuniões, agrupamentos, agregações ou conventículos, que sob o nome de Liberi Muratori ou Franco-mações ou sob outra denominação equivalente, nas quais eram admitidas indiferentemente pessoas de todas as religiões, e de todas as seitas, que com a aparência exterior de uma natural probidade, que ali se exige e se cumpre, estabeleceram certas leis, certos estatutos que as ligam entre si, e que, em particular, os obrigam às penas mais graves. 

Mas como tal é a natureza humana do crime que se atraiçoa a si mesmo, e que as mesmas preocupações que toma para ocultar-se o descobrem pelo escândalo que não pôde conter, esta sociedade e suas assembleias chegaram a fazer-se tão suspeitas aos fiéis, que todo o homem de bem as considera hoje como um sinal pouco equívoco de perversão para qualquer um que as adote. Se não fizessem nada de mau, não sentiriam esse ódio à luz. 

Por conseguinte, estas sociedades têm sido sabiamente proscritas por numerosos príncipes em seus Estados, já que consideraram a esta classe de gente como inimigos da segurança pública. 

Depois de uma madura reflexão, sobre os grandes males que se originam habitualmente dessas associações, sempre prejudiciais para a tranquilidade do Estado e a saúde das almas, e que, por esta causa, não podem estar de acordo com as leis civis e canónicas, instruídos por outra parte, pela própria palavra de Deus, que em qualidade de servidor prudente e fiel, elegido para governar o rebanho do Senhor, devemos estar continuamente em guarda contra as gentes desta espécie, por medo a que, a exemplo dos ladrões, assaltem nossas casas, como acontece com as raposas que se lançam sobre a vinha e semeiam por todo o lado a desolação, ou seja, o temor a que seduzam as gentes simples e firam secretamente com suas flechas os corações dos simples e dos inocentes. 

Finalmente, e em toda a plenitude de nossa potência apostólica, condenamos e proibimos os sobreditos centros, reuniões, agrupamentos, agregações ou conventículos de Liberi Muratori ou Franco-Mações ou qualquer que seja o nome com que se designem. 

Por tudo o referido, proibimos muito expressamente e em virtude da santa Obediência, a todos os fiéis, sejam laicos ou clérigos, seculares ou regulares, de qualquer estado, grau, condição, dignidade ou preeminência que desfrutem, que entrem por qualquer causa e sob pretexto em tais centros, reuniões, agrupamentos, agregações ou conventículos antes mencionados, nem favorecer seu progresso, recebê-los ou ocultá-los em sua casa, nem tampouco associar-se aos mesmos, nem assistir, nem facilitar suas assembleias, nem prestar-lhes ajuda ou favores em público ou em privado, nem operar por si mesmo ou por outra pessoa, nem exortar, induzir nem comprometer-se com ninguém para fazer ado- tar nestas sociedades, assistir a elas nem prestar-lhes nenhuma classe de ajuda ou fomentá-las; lhes ordenamos, pelo contrário, de se absterem completamente destas associações ou assembleias, sob a pena de excomunhão; de cuja excomunhão não poderão ser absolvidos mais que por nós ou por o Soberano Pontífice então reinante. Queremos ademais e ordenamos que os bispos, prelados, superiores, e o clero ordinário, assim como os inquisidores, procedam contra os infratores de qualquer grau, condição, ordem, dignidade ou preeminência; trabalhem para redimi-los e castigá-los com as penas que mereçam a título de pessoas veementemente suspeitas de heresia. A este efeito, damos a todos e a cada um deles o poder para persegui-los e castigá-los segundo os caminhos do direito, recorrendo, se assim for necessário, ao Braço secular. 

Encíclica In eminenti apostulatus specula (Excerto).

O excerto da encíclica que aqui trazemos será, quiçá, um pouco longo, mas dá conta da atitude da Igreja contra a Maçonaria e enquadra até hoje a relação entre ambas.

Cinco meses após a sua redação, a encíclica seria afixada nas portas das nossas igrejas e lida nas missas dominicais de 28 de setembro de 1738. A ordem para tal veio, nem mais nem menos, do inquisidor‐mor do reino, D. Nuno da Cunha e Ataíde, o mesmo que, poucos anos depois, estaria envolvido – enquanto inquisidor‐mor – no processo contra o primeiro “mártir” maçom em Lisboa, o irlandês John Coustos. Já lá iremos...

A partir desse ano, os campos estão definidos. Nos países católicos, sobretudo naqueles em que a Inquisição velava, zelava e reprimia, a perseguição aos excomungados maçons iria ter campo aberto.

Vejamos um bocadinho melhor a Loja dos Hereges Mercadores. Antes de mais, convém salientar que a Loja não tinha portugueses, pois os seus membros eram ingleses e escoceses de denominação protestante, o que originou o nome que a Inquisição lhe deu. O seu fundador foi um tal William Dugood, referido em várias obras como um súbdito britânico, joalheiro e antiquário de profissão, residente na Lapa e, alegadamente, amigo do supracitado Alexandre de Gusmão. Todavia, a sua biografia é obscura. O historiador britânico Neil Grant Macleod, especialista na História da Maçonaria, refere‐se‐lhe como sendo escocês e joalheiro, envolvido em atividades de espionagem (ver bibliografia).

Abramos, então, um parêntesis para conhecermos melhor o homem que terá fundado a primeira Loja lisbonense e nacional. Embora, valha a verdade, a sua biografia, que aqui narramos sumariamente, não seja essencial para este livro, sempre dá algum sumo suplementar à narrativa, fornecendo alguns dados que ajudam a perceber o contexto turbulento do tempo e lançando pontes para o que aí virá.

William Dugood era, como vimos, escocês. Enquanto escocês, esteve ligado às chamadas Revoltas Jacobitas que entre 1688 e 1746 avassalaram a Grã‐Bretanha, revoltas cujo fito era reconduzir o príncipe James Francis Edward Stuart ao trono. Note‐se que, tradicionalmente, o nome deste príncipe é “traduzido” entre nós como Jaime Stuart, o que é errado. “James” (tal como o seu equivalente francês “Jacques”) deve ser traduzido por “Tiago”...

Derrotada, a corte Stuart exilar‐se‐á em Roma, sob proteção do nosso já conhecido Clemente XII, sendo aí que encontramos as primeiras referências a Dugood. Estamos em meados da segunda década de Setecentos, e Dugood cultivava já boas relações, pois era não só frequentador constante da corte jacobita – era joalheiro da Casa de James Stuart –, como se inseria nos círculos romanos mais importantes. Mas, mais do que isso, que já é muito, Dugood tornou‐se, para vários setores, um “agente” de confiança, um intermediário seguro, uma pessoa apta a desempenhar missões e tarefas de um cariz mais reservado, se assim se pode dizer...

O caso torna‐se mais interessante pelo facto de, por essa mesma altura, o nosso homem se ter transformado numa espécie de “agente duplo”, já que se terá tornado também um “espião” dos ingleses infiltrado na corte jacobita em Roma. O seu recrutador e “chefe” foi um oficial prussiano estabelecido em Roma e Florença chamado Philip Stosch, também ele joalheiro e antiquário como Dugood. Mais interessante é o facto de Stosch ser maçom.

Em novembro de 1722, Dugood foi preso pela Inquisição romana sob a acusação de heresia, valendo os contactos de Stosch para o soltarem. As más‐línguas disseram mais tarde que, na ver‐ dade, Stosch tinha medo que, sob tortura, Dugood o denunciasse. Uma vez solto, e porque o “agente” estava “queimado” em Roma, Dugood estabeleceu‐se em Londres, laborando no seu original ofício de joalheiro. Sempre bem relacionado, recebia comissões dos políticos do partido então designado por Whig (anti‐absolutista e unionista). Foi em Londres que Dugood se iniciou na Maçonaria, em março de 1725.

Pouco depois, terá estado em Lisboa, onde terá fundado a Loja dos Hereges Mercadores. Em 1731, regressou a Itália, para avaliar uma coleção de antiguidades da condessa Doroteia Sofia de Neuburg, regente de Parma. Os jacobitas, sabendo‐o espião em prol dos ingleses, moveram influências contra ele, mas Dugood aí ficou até 1733, tendo‐se, provavelmente, envolvido na primeira Loja maçónica florentina, a Loggia degli Inglesi. Foi, enfim, por essa altura que, culminando a pressão dos jacobitas que não lhe perdoavam a traição, Dugood foi de novo preso pelas autoridades. Como antes sucedera, os conhecimentos ajudaram‐no, pois foi, uma vez mais, solto.

Foi por essa altura que se achou mais sensato fazê‐lo regressar a Londres, embarcando‐o num navio que fazia escala em Lisboa. Sagaz, precavido e provavelmente temeroso do que poderia suceder em Londres, Dugood não passou de Lisboa, onde se estabeleceu.

Uma decisão estranha? Não, uma decisão inteligente. Afinal, entre as cartas de recomendação que trazia consigo, estavam as da dita condessa parmesã Doroteia de Neuburgo, que tivera como irmã a rainha de Portugal, Maria Sofia Isabel de Neuburgo (falecida em 1699), mãe do monarca reinante, D. João V, famoso pelo seu gosto pelo luxo e pelas joias. Com tais referências, aptidões e contactos, Dugood tornou‐se um dos joalheiros da corte lusa.

Foi em Lisboa que, anos mais tarde, John Coustos o encontrou, oriundo de Paris, em casa de quem se alojou. Mas paremos por aqui a narrativa sobre Dugood, que mais à frente, quando contar‐ mos a história e desventuras de Coustos, voltaremos, brevemente, a referi‐lo. Entretanto, estas linhas serviram também para se compreender que a Maçonaria nasceu num período de forte fermentação social e institucional, em que as teias da política e das relações pessoais eram basilares na vida das personagens, nos seus sucessos e insucessos. Como hoje e como sempre, afinal. Um período que se acercava a passos largos das revoluções liberais que iriam mudar a face da Europa e o destino da Maçonaria. Como disse o político e filósofo italiano António Gramsci caracterizando as épocas de crise: “O velho mundo está a morrer e o novo mundo esforça‐se ainda por nascer...”

Regressemos à Loja dos Hereges Mercadores. Sabemos que laborou na casa de pasto de um tal William Rice, sita na dita
Rua dos Açúcares, situada então na extinta freguesia de São Paulo. Era frequentada sobretudo por comerciantes e mercadores, o que originou a designação pela qual os inquisidores a crismaram. A Loja olissiponense foi regularizada na Grande Loja de Londres em 1735, e para operacionalizar tal procedimento veio a Lisboa o matemático Georges Gordon, um pedreiro‐livre londrino. A cerimónia decorreu com a presença do capitão Georges Graham e de outros oficiais da esquadra britânica então estacionada no Tejo.

No livro de atas da Grande Loja de Londres, referente ao dia 17 de abril de 1735, lê‐se:

[Sendo aqui grão‐mestre lorde Weymouth] foi lida uma petição de vários Irmãos que residem na cidade de Lisboa, em Portugal, que humildemente rogam que seja concedida uma deputação ao senhor Georges Gordon para que aí se constitua uma Loja Regular. [Deste modo] o pedido dessa petição foi aceite, sendo ordenado que o Secretário constitua uma deputação em conformidade. 

Inicialmente, a Loja da Rua dos Açúcares teve o número de ordem 135, passando depois a ser o 120. A Loja estava vedada a outros cidadãos que não os ingleses e os escoceses. Logo, os portugueses estavam excluídos, bem como, curiosamente, os irlandeses, cujo número em Lisboa não era tão despiciendo como isso. Mas como os irlandeses não eram muito de se mesclar com os demais britânicos – por questões de nacionalismo e/ou de religião –, a sua exclusão não pareceu, à época, muito estranha. A Loja dos Hereges Mercadores funcionou até 1755, o que quer dizer que resistiu quase 20 anos à repressão inquisitorial que se assanhou contra os pedreiros‐livres a partir de 1738, por causa da tal encíclica de Clemente XII, protetor de jacobitas e perseguidor de maçons.

Note‐se que não é claro que a Loja funcionasse nas próprias instalações da casa de pasto de Rice, na referida Rua dos Açúcares. Onze anos mais tarde, o maçom John Coustos, que, entretanto, se estabeleceu em Lisboa e de quem trataremos a seguir, dirá que as atividades e os ritos das Lojas alfacinhas não se faziam em tabernas ou casas de pasto, mas em residências particulares. Já lá iremos...

A regularização ou “filiação” na Grande Loja de Londres implicava, necessariamente, o respeito pela chamada Constituição de Anderson, o principal documento que regula e orienta os princípios e a ação da Maçonaria. O autor dessa Constituição foi James Anderson, um destacado pedreiro‐livre londrino que a redigiu em 1723. Esse documento depressa se expandiu para todo o mundo onde existissem Lojas, embora, no caso português, não tenhamos conhecimento de qualquer Constituição impressa para as Lojas nacionais até 1806. Antes disso, parece ter havido uma versão manuscrita, de que pouco ou nada se sabe, e existem apenas fugazes referências em processos inquisitoriais. Só cerca de 100 anos depois é que temos conhecimento de uma tradução em português da carta fundacional de James Anderson.