Contactada pela agência Lusa a propósito da efeméride, que tem estado em foco com várias celebrações e publicações, a historiadora de arte apontou que "os artistas têm uma libertação do consciente e capacidade de sonho e de imaginação que abre muitas vezes o futuro".
"Eu não creio que tenha havido uma influência direta e facilmente identificável do Maio de 68 na arte portuguesa. O que acontece, como em muitos períodos conturbados, os artistas têm antenas e sentem as coisas antes", comentou.
O movimento de Maio de 1968, em França, tornou-se o símbolo de uma época, em que uma cultura jovem quis renovar os valores vigentes, levantando polémica pelas suas posições sobre a libertação sexual, a Guerra no Vietname, e os direitos cívicos.
Os protestos dos estudantes universitários encheram as ruas de Paris e várias palavras de ordem ficaram na memória, tais como "Sejam realistas, exijam o impossível" e "É proibido proibir".
Para Raquel Henriques da Silva, os acontecimentos de ordem social cultural e política tocam os artistas, mas de uma forma geral, "vêm antes, eles têm capacidade de apanhar com antecipação o que vai acontecer".
Recordou que toda a arte portuguesa, "entre as sugestões da pop, do Nouveau Realisme, a afirmação cada vez mais forte da performance e da instalação, tem os valores do Maio de 68: a contestação, no campo artístico, nas disciplinas tradicionais, da inovação permanente, e de uma espécie de liberdade de criar novas dramáticas que talvez desde as primeiras décadas do século não se verificavam".
Sobre os artistas portugueses ativos nessa altura, "são imensos e muito diversificados entre si", disse à Lusa.
Recorda um caso - com origem direta no Maio de 68 - que é um episódio: Uma peça do artista Pedro Morais, que foi incluída na mostra “50 Anos de Arte Portuguesa”, na Fundação Calouste Gulbenkian, que, em 2007, reuniu 120 artistas nacionais e 150 peças expositivas, entre obras da coleção de arte da Fundação e documentação referente a projetos artísticos que a instituição apoiou, ao longo do tempo de existência do seu Serviço de Belas Artes.
Essa exposição foi comissariada por Raquel Henriques da Silva, Ana Ruivo e Ana Filipa Candeias.
"Essa peça de Pedro Morais é um saco de cinzas, e o artista explica, no saco, que a peça é o resultado de ele ter queimado todo o seu processo de bolseiro da Gulbenkian, em Paris, protestando contra o facto de a bolsa lhe ter sido retirada", na sequência dos incidentes que ocorreram na Casa de Portugal, na capital francesa, que era mantida pela Gulbenkian.
Para a historiadora, este é um caso de influência direta, mas "há também casos de não influência, relevantes".
Nesta linha, falou numa peça "extraordinária" do artista José de Guimarães, agora incluída na mostra "Pós Pop - Fora do Lugar Comum", também na Gulbenkian, que se chama "Memórias de Família", uma instalação com uma série de caixotes, pintados com letras e números, "que já definem muito toda a estética do artista".
"Esta peça é datada de 1969, e foi feita em Luanda. Tinha o José de Guimarães menos de 30 anos, e era militar do exército português. Fez em Luanda uma das exposições mais radicais e inovadoras que se fizeram em Portugal nessa altura", salientou a especialista em arte, nas declarações à Lusa.
José de Guimarães, "antes de ir para Angola, já tinha viajado, lia os jornais provavelmente, em Luanda, e a peça tem os valores de uma reflexão muito importante para ele sobre a arte negra, a definição da sua estética, numa linha de certo modo de anti-arte".
Raquel Henriques da Silva deu ainda como exemplo Lourdes Castro, entre os artistas "visionários", por ter feito a revista KWY - "que vem de antes e atravessa este período". Da mesma forma, cita Eduardo Batarda, "que estava em Londres a fazer pinturas em aguarela, que são uma espécie de banda desenhada muito violenta".
Por outro lado, "o clima para aquilo que vai ser a 'Alternativa Zero' [mostra coletiva sobre as tendências na arte portuguesa contemporânea] está a ser construído por Ernesto de Sousa", e Nikias Skapinakis “começa a fazer a série 'Caminhos da Liberdade', que são uma das manifestações mais poderosas da afirmação do feminino" na arte.
"Não houve uma influência direta [do Maio de 68], mas há um clima, um contexto" presentes, na arte portuguesa, conclui a historiadora.
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