A propósito dos 60 anos da tomada de Goa, que pôs fim a 451 anos de soberania portuguesa naquele território, a Lusa entrevistou Mitzi Gracias, que relatou a forma como viveu este momento, a vinda para Portugal como refugiada e a "emoção" que sente cada vez que pisa a terra que a viu nascer.
"A família da minha mãe é oriunda do reino de Navarra e dali veio um descendente (...) ser educado pelo D. António Prior do Crato, e daqui, depois de algum tempo, fixaram-se em Elvas e formaram a família portuguesa", começa por contar.
"Estes portugueses é que foram para Goa, um como vice-rei, outro como governador de Goa, e formaram a família em Goa e a Mourão Garcês Palha, que foi o meu bisavô, que ainda conheci, foram-lhe oferecidas as terras de Ribandar", vizinhas da capital goesa, Panjim, relata.
A sua família estava em Goa quando se deu a invasão. "O meu pai, como militar que era, sabia mais ou menos o que se estava a passar. Então no dia 17 de dezembro pegou na família e levou para a casa de um amigo", diz.
Mitzi Gracias, a mãe, o irmão mais velho e a irmã, que é mais nova, foram levados para uma aldeia onde foram "entregues aos manducares", que eram trabalhadores da terra e tomavam conta da família do amigo do pai.
"E ali ouvimos o bombardeamento de uma ponte" ali perto, que foi destruída para que as tropas indianas não entrassem na cidade.
"Ouvimos os aviões, mas não tínhamos ideia de que aquilo fosse tão perigoso", relata, sublinhando que só três meses depois soube do paradeiro do pai, que estava num campo de concentração.
Como o pai era militar, "não tinha emprego" e “teve uma certa dificuldade”, pelo que decidiram “vir para Portugal", explica Mitzi Gracias.
As autoridades recusavam sistematicamente o visto ao pai, que conseguiu apenas o passaporte, mas acabaram por seguir de avião para Carachi, no Paquistão, e no verão de 1962 rumaram a Portugal no navio Índia, numa viagem que durou 18 dias. Na altura, Mitzi tinha 13 anos.
"A dificuldade começou exatamente quando chegámos cá e vimos que era frio, que estávamos ali num quarto metidos, enquanto refugiados, e depois, pronto, fizemos a nossa vida", resume a também cofundadora da Casa de Goa.
"Estranhámos logo, logo o clima, depois foi a alimentação, porque nós não comíamos nem feijão, nem grão, lá era só arroz, os temperos, e aqui não havia", aponta.
A irmã era "uma aluna ótima" e o Ministério da Educação na altura "escolheu-a para fazer parte de uma turma piloto de matemáticas aplicadas", indica, com visível orgulho.
Apesar das primeiras vicissitudes de adaptação, tudo correu bem e mantiveram as tradições goesas em Portugal.
Já adultos formaram "um grupo para cantar, dançar, tocar música de Goa". Daí surge a formação do grupo Suryá, em Portugal.
"Éramos 50, entre crianças, jovens e adultos, sendo que eu fazia as coreografias todas, porque sabia o que tinha aprendido em Goa", recorda. O grupo foi criado em 1991, precisa.
O grupo "ainda hoje existe”. “Mas já estamos velhos e os nossos filhos, que se casaram com pessoas daqui, já não aderem tanto. Mas quando é necessário ir para a Casa de Goa, ainda fazemos isso", atesta Mitzi.
"Manter viva a identidade é exatamente nunca esquecer das nossas tradições, que passam pelo traje, que é muito importante e até agora uso", diz. No casamento do filho foi de sari e fomenta a cozinha goesa: "Cozinho muitos pratos goeses".
A religião também faz parte da identidade. "Organizamos missas e conferências sobre Goa", salienta, explicando que nas missas há canções religiosas cantadas em concanim, língua falada em Goa. Entretanto, começou a haver relutância dos padres, que não percebiam a língua, pelo que começaram a cantar nas duas línguas.
Mitzi fala concanim, mas os filhos já não são fluentes, sabem palavras soltas e cantam em concanim.
Questionada sobre se espera que as tradições permaneçam, Mitzi Gracias responde logo que sim. "Eu espero, porque o meu neto mais velho que tem cinco anos sabe por exemplo contar em concanim", diz, exemplificando que o neto também sabe cantar os parabéns na língua da região de Concão.
Desde o início da pandemia que não vai a Goa, mas antes da covid-19 ia todos os anos e o marido duas vezes, porque ainda tem lá família.
"Ah, é uma emoção" quando "o avião desce no aeroporto e se vê 'welcome to Goa [Bem-vindo a Goa]!", exclama, com um sorriso.
"Quando se vai ao túmulo de São Francisco Xavier é outra emoção muito grande porque era ali que nós estávamos todos os anos, fazíamos piqueniques, levávamos gente, até portuguesa", acrescenta.
Sobre o impacto da tomada de Goa pela Índia, Mitzi Gracias afirma que, na altura, foi "a pior coisa que podia ter acontecido", apesar de hoje já não pensar assim.
Mitzi Gracias conta que à chegada a Margão viu os amigos trajados de calças e túnica branca, empunhando uma bandeira indiana, a gritar 'Jai hind' [Viva a Índia].
"A maior desilusão para mim foi ver os meus amigos, com quem a gente andava nos clubes a dançar, com quem íamos fazer jogos, futebol, críquete, de um momento para o outro viraram-se indianos", confessa.
Goa une gerações e tradições em Lisboa
Na Casa de Goa, em Lisboa, cruzam-se gerações de goeses que em Portugal mantêm vivas as tradições de uma identidade a que chamam goanidade. A gastronomia, a dança, as aulas de concanim e de yoga fazem parte das atividades dinamizadas pela direção.
Pedro Colaço, farmacêutico, 32 anos, é um dos goeses de nova geração já nascidos em Lisboa que mantém as tradições da família, radicada na capital portuguesa depois de passar por Angola e por Moçambique.
Os pais, conta, “fugiram de um cenário bélico” aquando da tomada de Goa pela União Indiana, em 1961, e “passados 14/15 anos fugiram de outro”, com o culminar da guerra colonial e a independência dos estados africanos de expressão portuguesa.
“É um cenário que muitos dos portugueses conhecem, nós aqui particularmente, embora eu não o tenha vivido, sentimo-lo na pele”, recorda, em entrevista à agência Lusa.
Pelos relatos dos pais sabe que a integração não foi fácil à chegada a Lisboa: “Tanto na saída de Goa, como depois na saída dos países de expressão portuguesa em África, perdeu-se muita coisa, bens materiais, foi um renascer”.
“Não foi mais difícil porque a comunidade goesa, se formos ver, em termos gerais, é bem preparada academicamente, adapta-se facilmente. São, no geral, pessoas discretas e quando digo discretas é que não levantam grandes ondas, ou seja, nós vivíamos em Portugal, quando os meus pais chegaram, um período difícil, o período do PREC, e lembro-me de perguntar ao meu pai no outro dia em relação a isso e ele pouco se manifestou. Não se envolveram muito nisso”, relata.
Parte da família já vivia em Lisboa, onde o avô estudou medicina nos anos 40, para depois regressar a Goa, onde concluiu a formação.
Pedro faz parte da direção da Casa de Goa, fundada em 1987 e que conta em Lisboa com 600 sócios.
O restaurante da associação tem estado encerrado, mas vai ser reativado, já que a gastronomia sempre foi “um vínculo muito forte” e que ainda se mantém na comunidade, servindo também como cartão de visita.
A avó fala concanim, a língua de Goa. A mãe entende, mas já não fala. “A geração da minha avó fala, tanto que acontecia em casa dos meus avós, eu estava lá com eles, e quando era um assunto mais complicado era o concanim e eu estou farto de dizer à minha avó para me ensinar, porque só sei as coisas mais básicas”.
Para que o concanim não acabe, a Casa de Goa organiza aulas, que com a pandemia de covid-19 foram também interrompidas.
Quando visitou Goa, Pedro sentiu como que “o encaixar de um puzzle”, ao conhecer a família da qual sempre ouvira falar, as praias das histórias dos avós, as igrejas e os ritos católicos – ainda se celebra missa em português – misturados com o misticismo indiano.
Passados 60 anos sobre a anexação de Goa pela União Indiana, a diáspora orgulha-se de manter boas relações com Portugal e com a Índia.
Lígia Rêgo, 54 anos, professora de português, é filha de goeses, o pai é de Panjim, a mãe de Margão, e nasceu em Angola.
“Os meus pais casaram em Goa e depois foram para Angola, mas com a guerra da independência vieram para Portugal”, há mais de 40 anos, conta.
Da chegada a Portugal, tem memória de uma integração “muito tranquila”, já que “não havia o problema da língua e, portanto, era só continuar”.
Das tradições de Goa, Lígia Rêgo aponta as gastronómicas, porque “de resto” considera que as outras são “iguais às de cá”.
“Mantemos sim, até fazemos outras coisas que eles não fazem”, outro tipo de comida, acrescenta, quando questionada se a sua geração mantém as tradições gastronómicas.
E explica: “Eles são muito pegados à comida goesa, a tradicional goesa e alguns de nós, além da comida goesa, sabemos fazer [receitas] das outras partes da Índia”, incluindo doces.
Sobre o concanim, língua falada no antigo Concão, região da Índia onde se encontra Goa, Lígia lamenta não ter aprendido, embora mantenha a esperança de um dia vir a aprender.
Em casa falava-se e fala-se português, embora o pai soubesse concanim. “O meu pai sabia concanim falado e acho que lido também, mas a minha mãe só percebe, não fala” a língua, conta.
“Gostava muito de aprender”, confidencia, referindo que lhe falaram que a Casa de Goa poderá ter alguém que ensine, mas neste momento tem outras prioridades.
Questionada sobre se os pais costumavam visitar Goa, Lígia Rêgo relata que numa altura inicial foi difícil porque “estavam a reconstruir a vida”.
Mas “quando a vida se equilibrou, sim” e “iam com frequência” e Lígia também lá ia “quando podia”, refere. A última vez foi em 2009.
“Já está na altura de voltar, mas este bicho [covid-19] não se vai embora”, lamenta.
Sobre se é diferente ser goês em Goa e em Portugal, Lígia Rêgo constata que “há diferenças”, mas que na altura não pensava muito nisso.
No entanto, assume: “Eles são muito mais conservadores do que nós cá, muito mais!”.
Entre as diferenças, aponta que a “forma como a mulher está na rua também é diferente”, tal como está na noite. “Até a nível religioso são muito mais, não há outra palavra, conservadores”, sublinha.
“Eu sou portuguesa com origens em Goa”, remata, salientando que para ser goesa teria de falar a língua, algo que não sabe.
Sobre a comunidade goesa em Portugal, salienta que, “no geral, são todos integrados e as tradições são uma mistura entre as goesas e as portuguesas”.
Enquanto “portuguesa com origens em Goa”, Lígia Rêgo não se sente “diferente” dos portugueses. “Sinto-me goesa quando lá estou, faltando uma parte da língua”, admite.
“Ir aos mercados e não falar nada é para mim muito estranho, porque as pessoas falam muito as línguas de lá pela minha aparência, mas eu não entendo nada do que eles dizem”, com “grande pena”, remata.
Sobre os 60 anos da tomada de Goa pela Índia, Lígia Rêgo admite ser um tema ao qual não dá grande importância.
* Por Alexandra Luís e Ana Mendes Henriques, da agência Lusa
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