"É um culto que se baseia numa cultura matriarcal ou pelo menos em que a mulher tinha um grande prestígio, que é o caso do Mediterrâneo e das culturas pré-romanas", afirmou à Lusa o sociólogo das Religiões Moisés Espírito Santo, sublinhando a diferença entre o direito e o Estado, que se tornam patriarcais, e a cultural matriarcal destas sociedades, incluindo Portugal.
Maria pode também ser vista além da figura consoladora de Mãe, se encarada como discípula de Jesus, sempre presente nos momentos determinantes, como o faz a teóloga Teresa Toldy, autora de "Deus e a Palavra de Deus na Teologia Feminista".
A devoção popular a Maria em santuários como o de Fátima, que o papa Francisco visita a 12 e 13 de maio, faz "uma releitura, uma expansão do pequeno papel que a Virgem Maria tem nos Evangelhos".
"Foram-se buscar pequenas frases e expandiu-se, fez uma espécie de grande romance psicológico em torno da Virgem Maria. Há uma reinvenção do papel da Virgem Maria até hoje e que deu obras artísticas magnificas", afirmou à Lusa Lídia Jorge, que assinou o prefácio de "A Senhora de Maio, Todas as perguntas sobre Fátima", de António Marujo e Rui Paulo da Cruz.
A teóloga Teresa Toldy explica que o culto mariano "é muito antigo na Igreja Católica e nas Igrejas Ortodoxas", com Maria a ser proclamada "Mãe de Deus "(theotokos) já no séc. IV, no Concílio de Éfeso.
Contudo, "o culto popular a Maria não se relaciona com dogmas", refere a teóloga, admitindo que "se relacione com um lado mais 'materno' de Deus, visto que, durante muitos séculos, Deus foi (e, para muitos continua a ser) representado como um patriarca, como um pai um tanto autoritário. Nesses casos, Maria funciona como uma mediação, isto é, como uma forma de chegar a Deus (Pai) através da mãe".
As raízes do culto mariano "vêm de tempos muito arcaicos" na região do Mediterrâneo, da "tradição arcaica da Deusa Mãe Criadora, que teve vários nomes conforme as épocas", sublinha Moisés Espírito Santo.
"Como o cristianismo nasceu essencialmente num cultura mediterrânica, no sul da Europa, esses cultos antigos continuaram sob o signo de Maria, Mãe de Jesus. Já os nórdicos tinham outra cultura arcaica, desviaram-se, não aceitaram esse culto e adotaram o protestantismo, que não tem qualquer relação com Maria nem com os santos", explica.
O culto mariano ganha força a partir do século XII, e, de acordo com a psicanalista Maria Belo, com o início da urbanização na Europa, um processo que "deu força ao masculino" ao estabelecer o "domínio político económico dos homens".
"O culto mariano reflete a partir do século XII aquilo que a Igreja gostava que as mulheres fossem: puras, mães", acrescenta a psicanalista, que estudou temas ligados às mulheres e à religião.
Maria Belo considera, contudo, que "em Portugal a Igreja nunca conseguiu ter o tipo de influência que teve noutros países da Europa, deste ponto de vista".
Fatores como a estabilidade das fronteiras portuguesas, o seu fechamento, e a migração dos homens, primeiro para as cidades, para colonizar território conquistado e, depois, para as descobertas, garantiram a manutenção de poder feminino na organização das comunidades, considera Maria Belo.
Para Teresa Toldy, a relação entre o culto tradicional a Maria e as representações dominantes da mulher na Igreja não tem sido positiva: "Maria é vista como uma figura passiva, silenciosa, "suave", "obediente à vontade do seu Senhor" (Deus), virgem e mãe ao mesmo tempo", sendo que a conjugação da virgindade e da maternidade "constituem uma impossibilidade de identificação das mulheres reais com este ideal".
"Durante séculos, a apresentação de Maria com estas características reforçou a submissão das mulheres: o ideal era serem caladas, recatadas, sacrificadas, pertencentes ao mundo privado, boas mães, mas sem papéis públicos".
No entanto, pode-se notar que "Maria, mãe de Jesus, também era discípula de Jesus: acompanhava-o, estava com ele nos momentos determinantes, nomeadamente, junto à cruz, e estava presente quando o Espírito Santo foi recebido pelo grupo dos discípulos de Jesus, após a ressurreição".
Lídia Jorge teme que "as pálpebras descidas e a aceitação" de Maria tenham passado do religioso para o cívico "como uma instigação a que as mulheres se calassem e obedecessem", ajudando a explicar que em países como Portugal as mulheres tenham ainda hoje "muita dificuldade em expor-se", ao passo que "as sociedades nórdicas", que não são católicas, "têm dado uma outra perspetiva às mulheres".
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