Acorda com os poemas mas não adormece se lhes sentir a presença. Em pequena, o sono também não era sereno, mas a inquietação era outra. Levantava-se para ver se a mãe estava por perto. “Teresinha, fecha a luz”. Era sinal que sim. Não só de alívio se faz esta frase, que amargamente significava ter de ir ler para debaixo da cama, com o auxílio da lanterna que pediu no aniversário. É aí que lê as primeiras frases do livro Le Deuxième Sexe [Segundo Sexo] da Simone de Beauvoir, sem saber que, 10 anos mais tarde, a escritora iria percorrer França em sua defesa. Nos cartazes erguidos aclamava-se as Novas Cartas Portuguesas, o livro que, em plena ditadura, desafiava o papel social e sexual das mulheres. A aventura, partilhada com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, valeu-lhes lugares na primeira fila do Tribunal da Boa Hora. “São as Marias que vão presas”, já dizia o polícia. Agora é um dos livros portugueses mais traduzidos no estrangeiro.

Feminista, jornalista, poetisa. Difamada, perseguida, agredida. A paixão desregrada que tem pela liberdade não permite à tinta secar - e trouxe ao mundo mais de 30 obras, várias delas premiadas. Ao longo dos verdes (81) anos, nunca deixou uma arma por disparar, mas pensou duas vezes antes de publicar um livro que pudesse magoar a mãe.

Sei que não gosta que leiam a sua poesia, mas vou começar por lhe ler um poema seu.

É verdade. Detesto que leiam a minha poesia, porque as pessoas fazem as paragens nos tempos errados. Sinto um embaraço. Quando vou a algum lado e começam a ler os meus poemas eu saio da sala. Sempre que me posso escapar, escapo-me, só se estiver na primeira fila é que não dá. Uma vez estava na RTP2, no programa da Rita Ferro. Eu tinha sido convidada, e um rapaz ia ler o meu poema Minha Senhora de Mim. Coitadinho… depois arrependi-me tanto. Ele começa a ler o meu poema e eu fico tão enervada, ele estava a dizer tudo fora do sítio, estava tudo mal. E eu não aguentei, e interrompi-o, em direto, e disse-lhe “olhe, desculpe, tem de parar de ler, é que você está a ler tudo mal”. Ele ficou branco, e passou-me o papel. Depois, quando olhei, percebi logo porque é que ele tinha lido tudo mal. Tinham-lhe escrito no papel o poema dividido palavra a palavra. Parecia uma lista de supermercado. Coitado… e a Rita Ferro ria… ria à gargalhada. Mas faça favor.

É o poema Minha Memória Cetim do livro Minha Senhora de Mim. “Minha mãe/ Mulher-infância/com sua pele marfim/minha água de beber/minha memória/Cetim”. Parte da Teresa é determinada pela sua mãe, pela sua génese?

A minha mãe passa por quase todos os meus livros, à exceção de dois ou três. Aliás, até tenho um livro, chamado "Minha Mãe Meu Amor", que é passado entre mim e a minha mãe, comigo na barriga dela e acabada de nascer. Mas este é também um livro influenciado pela minha passagem pela psicanálise. Fiz psicanálise durante 17 anos para perceber quem eu era; e aprendi a fazer a regressão, que nos permite ir muito atrás, até atrás das nossas origens. Esta regressão faz com que tenhamos um entendimento da mãe que uma pessoa que não tenha feito psicanálise e que não esteja interessada no tema poético 'mãe' não consegue. A nossa mãe é de onde partimos, é a nossa génese. E isso diz muito de nós. Eu penso que as pessoas não entenderão muitos dos poemas em que falo da minha mãe. Mas, para mim, a minha mãe é uma grande paixão. Essa paixão nem sempre é boa, nem sempre é regozijo. É uma paixão que tem muita dor. Quanto mais se ama uma pessoa, mais difícil é ter distanciamento em relação a ela, querer-se menos dela, exigir-se menos dela, ser menos obsessiva em relação a ela. Estou a falar de paixão. E paixão não é amor, vai além do amor. A paixão aconteceu-me três vezes na minha vida. Com a minha mãe, com o homem que eu amo há 50 anos, e com a minha poesia.

A paixão que tem pela sua mãe é a que lhe traz mais dor?

É assim… eu tinha nove anos e a minha mãe foi embora, saiu de casa, mas ela continuou a ser a minha paixão. Se possível, tornou-se numa paixão ainda maior, porque foi só o objeto da paixão é que se foi embora. Podem dizer-me que ela foi embora e deixou os filhos para trás. Mas para mim as coisas nunca foram assim, quando se sente paixão nunca se vê as coisas dessa forma. Na paixão, a perda do ser amado pode determinar a queda, mas, ao mesmo tempo, não é isso que nos faz abrir mão desse ser. Portanto, se essa paixão se vai embora fisicamente de ao pé de nós, cada vez a obsessão é maior. Quando tudo está bem, a paixão anda por ali, mais calma. Eu acordava muitas vezes à noite quando era pequenina para ir ver a minha mãe. Saía da cama e ia espreitar a ver se a via, se ela estava quieta, sossegada. Se estivesse, eu voltava a adormecer. Mas era muito difícil encontrá-la assim. A minha mãe era uma mulher moderna, diferente, ela dizia que era feminista e não sabia. E eu acho que ela tinha razão. Eu não queria nada a minha mãe em casa, boazinha e queridinha. A minha mãe fez o melhor que podia e a vida era dela. Eu não posso achar que as mulheres devem ter o direito a fazer o que querem da sua vida, e depois à minha mãe não lhe conceder esse direito, só porque é minha mãe. Mas claro que quando ela sai de casa me faz sofrer. Ela sai e a minha vida desmorona. Eu senti que, de repente, havia um ciclone na casa, em que tudo fica no ar. E eu quero organizar-me naquele espaço e não consigo. Mas muito fez ela, não podia ser de outra maneira... e cá estou eu sempre a desculpá-la. Ao meu pai eu não desculpo nada, à minha mãe desculpo tudo.

Também escreve muito sobre a beleza dela.

A beleza dela acaba por despertar o meu lado transgressor e poético. Ela era linda de morrer. Lisboa era muito pequenina naquela altura, e ela era considerada uma das mulheres mais bonitas de Lisboa. Sempre ouvi isto. A verdade é que quando conheci a Natália Correia, ela perguntou-me logo se eu era filha da Carlota. Porque a Natália e a minha mãe eram consideradas as mulheres mais bonitas daqui. A Natália era morena e a minha mãe era loira, e encontravam-se no S. Carlos. Paravam para se verem uma a outra, viam como é que estavam vestidas. A beleza dela, a maneira estranha de se comportar, tudo o que a envolvia a ela e a à literatura. Porque, no meio disto tudo, para mim, a grande rival da minha mãe era a biblioteca do meu pai. Eu aprendi a ler com quatro ou cinco anos, portanto aquela biblioteca era a coisa mais linda que eu tinha visto na vida.

No livro Mulheres de Abril diz “não cales mais a recusa do que quiseram que fosses”. O seu pai não aceitava que a Teresa escrevesse ou não aceitava o que a levava a escrever?

Ele sempre quis mandar em mim e eu sempre quis mandar em mim própria. O meu pai adorava a literatura e lia imenso. Mas tentava controlar aquilo que eu lia no princípio, porque eu lia desgovernadamente. Lia os papéis das pastas de dentes e dos remédios. E isso preocupava-o, então havia coisas que ele me proibia logo e que não eram bem aceites por mim, já em pequena. O meu pai não tinha uma única escritora nas estantes da biblioteca. Para ele, o lugar da mulher não era na literatura, nem na arte, não era em nada que fosse grandioso. O lugar da mulher era em casa a parir filhos, a ser muito bonita e a esperar por ele ao fim da tarde. O meu pai era muito misógino. Quando o meu filho nasceu, ele telefonou-me umas quatro horas depois e disse-me: “olha eu ainda não fui aí porque tenho estado nas aulas [era professor], mas quero dizer-te já que te dou os parabéns, cumpriste a tua obrigação, deste um rapaz ao teu marido”. Isto quer dizer que quando eu nasci, que fui a primeira filha dele, a minha mãe não tinha cumprido a sua obrigação. A verdade é que para o meu pai ser filho é... ser filho, era aquele que passava o nome. Os meus filhos passam o nome do Luís, não o meu. Tudo isto é uma construção de uma sociedade realmente misógina, machista, discriminatória em relação às mulheres. Ele era um homem justo, mas nunca achou que era injusto discriminar as mulheres. Esse foi um dos motivos da nossa penúltima discussão. Ele disse-me que não havia discriminação nenhuma contra as mulheres, e não percebia o que é que eu andava a escrever porque não havia razão para tal.

O que é que o seu pai a proibia de fazer?

Houve uma vez que disse à minha psicanalista que o meu pai nunca me deu nada. E ela, que raramente falava, respondeu “deu-lhe sim, deu-lhe as ferramentas para a Teresa ser o que é hoje". E é verdade. Até porque ele, quando me proibia de algo, eu reagia. Era matemático. E ele percebeu a tempo que era melhor não proibir assim diretamente. Ele não me dizia “olha não lês”, mas tirava os livros, havia várias maneiras. Um homem que amava tanto a literatura e que faz destas coisas… os ditadores... ele era um pai ditador em relação a mim. Quando eu tinha lido quase tudo da biblioteca do meu pai, às escondidas, foi na altura em que eu estudava no Liceu Filipa [D. Filipa de Lencastre]. E algumas amigas minhas tinham pais que liam e eu perguntava-lhes logo se eles tinham um escritório. Sempre que tinham, elas passavam-me livros deles, nem avisavam os pais. E eu, com uns 10,11 anos, tinha pedido uma lanterna como prenda de aniversário e ninguém sabia porquê. A lanterna servia para eu descer a roupa da cama até ao chão e ir ler para debaixo da cama. Isto porque à noite eu ficava a ler e a minha mãe via a luz pela fisga da porta, e dizia sempre “Teresinha, fecha a luz”. É das frases mais presentes que tenho da minha infância. E eu fechava a luz e ia para debaixo da cama com a lanterna e lia. Lia, por exemplo, o Segundo Sexo da Simone de Beauvoir. Aí já tinha 15 anos, e li o livro exatamente porque o pai de uma amiga tinha o livro em francês. Eu só sabia o francês do liceu, portanto custou-me imenso ler. Tinha de ler com um dicionário ao pé.

Quando lê o Segundo Sexo, há janelas que se abrem?

Este livro acaba por mudar completamente a minha vida, porque muitas das coisas que ela ali dizia me fizeram perceber que era precisamente aquilo que eu queria. Além disso, o livro permitiu-se conhecer mais sobre o passado das mulheres. Ela maravilhou-me, abriu-me portas e janelas e tudo… para uma vida diferente. São as mulheres que mudam a minha vida. O Luís mudou a minha vida, claro, mas não me mudou a mim. Ao passo daquilo que um livro me consegue mudar.

"Porque toda aquela gente que me rodeou na altura me fez aquilo que fizeram àquela menina do conto Dores, que foi destruir-me completamente"

 

Como é que passa da leitura para a escrita?

Como o meu pai não tinha mulheres nas estantes, eu, com uns sete anos, perguntei à minha mãe: “Mas não há mulheres que escrevem!?” e a minha mãe respondeu-me: “Claro que há. Claro que há mulheres que escrevem. Olha a avó!” e aponta para o retrato dela, que também estava no Palácio de Benfica. E é essa a primeira vez que eu ligo à minha avó Leonor, Marquesa de Alorna, à poetisa. E aí abriu-se uma porta. Eu repetia: “as mulheres escrevem, as mulheres escrevem!” e comecei a escrever romances de três páginas, que para mim pareciam grande romances. O meu pai era professor de Anatomia Patológica e preparava as aulas nos cadernos, mas deixava sempre umas páginas vazias no fim. Eu ia buscar os cadernos, rasgava as outras páginas, e escrevia um romance. Foi assim até fazer o meu primeiro poema, quando tinha 14 anos. A poesia eu descobri com o maior poeta do mundo que é o Camões.

A morte da sua avó faz com que deixe de chorar, como já disse anteriormente. Nesta altura, a escrita era a única forma de se expressar?

A minha avó era sufragista feminista e eu não sabia. Acabo por saber através da Maria Lamas. Ela era o meu esteio, levava-me para todo o lado. Cheguei a ir com ela, em pequena, às reuniões da Casa Jardim, reuniões que ficaram na história das mulheres em Portugal. Ainda hoje ela é a única pessoa que me consegue mesmo fazer chorar. Eu nunca penso na morte da minha avó sem ficar com os olhos cheios de lágrimas. Mas, na altura, eu não podia chorar, isso era o meu fim. Chorar é mostrar aos outros a brecha por onde podem entrar. Há o estereótipo de que a mulher é aquele ser sensível que quando chora fica à nossa mercê e isso é uma coisa que nós não podemos deixar acontecer. Se eu tivesse chorado quando era pequenina, provavelmente não estava aqui a falar consigo, porque me tinham morto, tinham dado cabo de mim. Porque toda aquela gente que me rodeou na altura [depois de a mãe sair de casa] me fez aquilo que fizeram àquela menina do conto Dores, que foi destruir-me completamente. Porque eu, naquela casa, representava a minha mãe. Eu era o produto da minha mãe. O meu pai dizia-me que o cordão umbilical não tinha sido cortado. Mas se ela não tivesse cortado o cordão dela comigo, ela não teria saído de casa. Eu é que nunca admiti que esse cordão tivesse sido cortado, portanto eu não o cortei. Eu não podia chorar. Se eu chorasse mostrava o ponto exato onde eles podiam enterrar a faca. Aprendi isso muito cedo comigo própria.

Foi essa “recusa do que quiseram que fosse”, de que falávamos há pouco, que a fez sair de casa aos 18 anos?

Com certeza, aquilo era insuportável. Eram normas insuportáveis, loucas, já naquela altura. Ele acabava com os meus empregos todos. Eu enquanto ali estivesse e comesse na mesa dele, como ele dizia, obedecia às ordens todas dele. Mas eu nunca levantei a voz contra o meu pai, e um dia, já no fim, disse-lhe isso. E ele disse-me “pois não, é pior. São os teus olhos. Eu estou a falar contigo e tu estás a pensar fala para aí e eu ralada”. Eu respondia-lhe logo “ isso já é a sua imaginação”. Mas já não dava mesmo, tive de sair. Na altura, já escrevia, mas ainda não tinha publicado o meu primeiro livro. Publiquei o meu primeiro livro com 19, 20 anos. Na altura era-se maior aos 21, mas os filhos de pais divorciados eram maiores aos 18, e eu aos 18 fui-me embora, no dia seguinte ao meu aniversário. Já podia ir, ele já não me podia proibir de nada e eu não tinha medo dele nem nunca tive.

E depois quando sai, continuam a zangar-se?

Sim. Eu pergunto-me porque é que aguentei tanto. Se eu saí tão cedo de casa, porque é que aguentei tanto a minha relação com o meu pai. Passámos a vida muito zangados. Ele zangava-se sempre comigo, era ele que se zangava. Cortava relações, e depois era ele que voltava, não era eu. Mas havia um laço interior entre nós que tinha a ver com a parte do conhecimento, curiosamente, com a parte da inteligência dele, da sua cultura, e da sua integridade.

Esse sair de casa balançava entre o libertador e o aterrador?

Eu tinha um amigo muito grande naquela altura, e esse grande amigo dizia-se muito apaixonado por mim, ainda que eu dissesse que não queria ter paixões por ninguém. Perante aquele debacle que foi o caso do meu pai e da minha mãe, eu acreditava zero no amor. Aquilo que eu queria ser era independente, escrever, fazer a minha vida. Eu queria lá saber do amor. Eu dizia que não queria casar nem ter filhos, não ia fazer o que o meu pai e a minha mãe fizeram e não ia prejudicar criança nenhuma. Mas mesmo assim, ele propôs que casássemos, mas ele ficava com a sua vida e eu ficava com a minha. Dizia-me: “saímos de casa e o teu pai já não vai a mais sítio nenhum atrás de ti”. Hesitei muito, falei com as minhas amigas, mas acabei por casar. Mas naquela época, nos anos 50, era muito difícil uma atitude destas, dizer “vou sair de casa, vou-me embora, vou por aí”. E não havia ninguém que me ajudasse, porque a minha mãe nem estava aqui e o meu pai era a figura... era o professor Horta, e ninguém me ajudava para não ficar mal com ele. Mas na altura aquilo tudo até me parecia bonito, tipo Simone Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Cada um tinha a sua vida, e ele nunca se meteu na minha, nunca me aborreceu. Depois o casamento acaba quando conheço o Luís, o homem com quem estou há 50 anos. Mas ele era um bom homem, de esquerda, pertencia ao ABC Cineclube. Aliás, eu fui a primeira mulher a ser diretora de um Cineclube em Portugal. O que me complicou a vida porque o Moreira Batista, que era ministro da altura, não achou isso nada bem e andou sempre atrás de mim, até ao 25 de Abril. Foi um grande inimigo, aliás quando morreu eu disse “morreu o meu único inimigo”.

 

"Eu tenho prazer quando escrevo"

 

A sua poesia fez-se de todos estes sentimentos que atravessaram a sua infância?

Às vezes não, às vezes era a luta que me fazia escrever. No tempo do fascismo, o que me movia para fazer poesia tinha a ver com a liberdade, tinha a ver com a resistência à ditadura. Na realidade a poesia é feita de muitos lados; de coisas muito fortes e coisas muito frágeis. A poesia é liberdade. Quando se conta uma história, por mais que se a vire de pernas para o ar, conta-se sempre uma história. Na poesia pode dizer-se tudo e fazer tudo. A poesia começa e termina quando nós queremos. Tem asas, desaparece e aparece outra vez. Um dia não aparece e depois aparece a meio da noite. Uma pessoa acorda com o poema.

Acorda com o poema?

Acontece-me muito. Acordo com um poema. E ou perco o poema ou levanto-me para o ir escrever. Comecei então a ter esferográficas e papéis no quarto, mas depois, como o Luís está a dormir, tinha de escrever às escuras e ficava tudo encavalitado. Tenho mesmo de me levantar e vir para aqui [a sala de sua casa] escrever o poema. Depois de escrever, vou para a cama, mas já não durmo. Ou é o poema ou o sono, e o poema ganha sempre.

Ganha ao sono e a tudo?

O veio primeiro do meu coração é poético. Eu sou a minha poesia. Eu não faço nada para que a poesia não seja eu. Vou sempre atrás de mim e vou atrás dela ao mesmo tempo. O meu distanciamento na escrita existe apenas no ato da escrita, enquanto literatura. Eu preciso de ter um distanciamento para saber o que é bom ou o que é mau, para jogar com as palavras. A literatura é um jogo literário, um puzzle onde se pode ter tudo desarrumado. Não é um puzzle onde se tem de arrumar tudo muito bem arrumadinho. É por isso que sempre detestei fazer puzzles, embora goste imenso de ver as pessoas a fazer. Mas apetece-me sempre trocar-lhes as peças. É isso que a gente faz na literatura, uma espécie de puzzle com as peças todas trocadas, e é a paixão que determina essa troca. É a paixão a causadora dessa troca, a causadora de perturbação, do fogo, da fuga, mas também é a causadora de regresso, de asas. A poesia é a minha voz mais segura, a minha voz mais real, mais perturbadora. É o meu sentir, a minha transgressão maior e o meu prazer maior. É um prazer imenso, muito sexuado. A minha poesia é o meu corpo. Quando eu digo que eu sou a minha poesia não é uma metáfora. Não. Eu tenho prazer quando escrevo. O Vergílio Ferreira dizia-me “ó Teresa, eu sofro tanto quando escrevo” e a mesa dele era sempre virada para uma parede. Eu, pelo contrário, tenho prazer. É um sobressalto do corpo, como quando se faz amor. É a mesma coisa. Aquele sobressalto em que a gente vai atrás e galopa, e vai... e vai... até ao fim. Portanto, eu sou a minha poesia, porque eu faço poesia com o meu corpo. Essas coisas da alma são muito bonitas mas não têm a ver comigo. Como não sou católica, não acredito em nada a não ser na poesia. Mas posso falar da alma como algo transgressor, é algo que existe dentro de nós e que nós não sabemos entender bem o que é. Não entendemos bem o que é que nos faz escrever. E não interessa saber, se um dia viesse a descobrir se calhar deixava de fazer poesia. Portanto, não me interessa saber.

No poema Mulheres de Abril diz “Mulheres de Abril/ somos/ mãos unidas/ certeza já acesa/ em todas nós. Juntas formamos/ fileiras/decididas/ ninguém calará/ a nossa voz”. Antes de Abril, foram várias as vezes que a tentaram calar. Entre tanta coisa que aconteceu, o que é que fica mais guardado?

Eu escrevi o Minha Senhora de Mim, que deu origem a um murmurinho, um grande murmurinho. Uma mulher a escrever assim, a falar de prazer, não dava com nada. A Florbela já na altura dela tinha causado um grande escândalo, mas ela nunca foi tão fundo no acto do erotismo, a Florbela não era uma poetisa do erótico mas sim do amor. Nos anos 50, 60 o que causa escândalo em Portugal é o erotismo, e é eu começar a falar daquilo que se faz na cama, no desejo que se tem pelo homem, e daquilo que me dá gozo. Ser eu, a mulher, a dizer “eu quero que tu, homem, me faças isto porque é o que me dá gozo” não caía bem. Quando sai o livro, o Moreira Batista falou com a Abecassis da D.Quixote [Snu Abecassis, fundadora da editora] e a PIDE foi lá buscar os meus livros, fez um auto de apreensão. Normalmente era a censura que o fazia, mas comigo foi logo a PIDE. E eles disseram à Abecassis que se voltasse a editar Maria Teresa Horta lhe fechavam a editora. E ela perguntou: mas qualquer coisa que ela escreva? E ele disse, mesmo assim, “até pode publicar a história da carochinha que se tiver assinado Maria Teresa Horta eu fecho-lhe a porta”. Percebi logo que a minha vida ia começar a piorar. Eu tinha um telefone em meu nome, o que era raro, não havia nenhuma mulher com telefone em seu nome naquela altura, e eu recebia telefonemas ordinários, horrorosos. Ligavam para o Luís a dizer “és um banana, dá-lhe uma tareia”. No jornal, eu escrevia na Capital, passou a haver uma triagem feita pelas telefonistas porque ligavam a dizer “Essa puta da Maria Teresa Horta! Essa cabra da Maria Teresa Horta!”. E à minha frente estava o Rogério Fernandes, que fazia a segunda triagem, e depois é que os telefonemas vinham ter a mim. Depois ainda havia aqueles que me ligavam a dizer “Meu deus que coisa horrível. Não quer vir jantar comigo?”. Mas o que ficou muito presente foi a minha tareia. Morava no bairro social do Arco do Cego com o Luís e com o meu filho, que na altura tinha sete anos. Um dia fui ter com o Luís ao jornal, saí de casa por volta das 23h30, íamos apanhar o táxi ao pé da estátua de Antonio José de Almeida. Quando saí de casa, houve um carro que acendeu a luz, mas nem pensei nisso. Naquela altura o bairro tinha passeios muito estreitinhos e com candeeiros altos. E um carro, com homens lá dentro, vem atrás de mim. Tentaram atropelar-me mas não conseguiram, tiveram de travar se não iam de encontro ao candeeiro. Eles decidem parar o carro, mais adiante, e saem dois homens do carro, ficou lá um. Empurraram-me para o chão e começaram a bater com a minha cabeça no chão; a dar-me tareia em todos os sítios. Eu julguei que era para me roubar, mas depois percebi que não. Houve um que me disse "Isto é para tu aprenderes a não escrever como escreves". Entretanto, houve um senhor do bairro social que nos viu e começou a gritar com eles. Eles foram-se embora a correr. A partir daqui era como se enlouquecesse...

Mas é esta confusão que faz, em parte, nascer as Novas Cartas Portuguesas

Sim. A Maria Velho da Costa e a Maria Isabel Barreno eram as minhas grandes amigas e íamos almoçar todas as semanas. Elas passavam pela Capital, estávamos ali na Rua do Século. No almoço depois da tareia, a Velho da Costa diz "a Maria Teresa acaba de ser espancada, vou-vos dizer uma coisa, nós temos de fazer um livro as três. Agora é que é". A Isabel estava a começar a escrever o livro sobre a morte da mãe e disse-nos "Vocês estão é malucas, eu quero escrever o meu livro". Então eu ia falando com a Velho da Costa e a Isabel ia ouvindo em silêncio. Nós decidimos que tínhamos de partir de alguém, de uma mulher. Surgiu o nome da Mariana Alcoforado [freira portuguesa que escreve as cartas da Lettres Portugaises]. A Isabel disse logo “Eu não quero a Mariana, ela é horrível, uma mulher hipócrita, horrorosa, insuportável”. Eu respondi-lhe “Olha, se queres é escrever o teu livro, deixa a mulher. Mas pronto, vamos fazer outra coisa”. Passado uma semana, voltamos a almoçar e a Isabel aparece com o primeiro texto, é o único texto que se sabe qual de nós é que escreveu. Ficámos danadas, piursas. Dissemos-lhe: “quer dizer, vais para casa, chamas a mulher de todos os nomes, nós ficámos a pensar que já não querias e depois apareces aqui com um texto”. A partir daí nunca mais parámos. Às duas por três, fizemos as contas e percebemos que demorámos nove meses a escrever o livro. Quando acabámos, organizamos três cópias do livro para entregar aos editores. Na altura, não havia computador, nem máquinas que fazem cópias, por causa dos panfletos políticos. Tínhamos de pôr papel químico. Um dia, na minha casa, lá estavam os três editores: Pedro Tamen pela Moraes, o Leão de Castro pela Europa-América e a Natália Correia pelo Estúdios Cor. Entregámos uma cópia a cada um. O Pedro Tamen disse que queria, mas que a Moraes não deixava porque tinha medo. O Leão e Castro disse que não podia porque lhe fechavam a porta e a Natália disse que ia publicar. Ela ameaçou a editora: “Ou publico o livro ou saio da editora”. E publicámos o livro. Tinha de ser uma mulher.

Eu e a Velho da Costa fomos ter com um polícia e dissemos: “olhe, faz favor, está aqui tanta polícia porquê?” e ele respondeu “Ah, meninas, isto é por causa das Marias que vão presas”.

Aliás, a Natália acaba por ser muito importante nas Novas Cartas Portuguesas.

Sim, o livro saiu e foi apreendido passado três dias. Foi-nos feito um processo, quiseram-nos amachucar. Pensavam erradamente que os outros escritores nos iam virar as costas, mas isso nunca aconteceu. Eles e elas ‘esgadanhavam-se’ para serem nossas testemunhas, mas nós só podíamos ter sete, penso eu. A Natália foi sempre de uma coragem espantosa. No tribunal, ela foi a primeira a ser ouvida e disse logo “Se alguém tem de ir preso sou eu, porque os senhores não podem proibir ninguém de escrever, podem proibir de publicar. E a responsável de o livro estar cá fora sou eu”. Ela era uma mulher espantosa, e por causa disso foi muito marginalizada. Hoje já ninguém fala dela. Ela chegou quase à sua morte sem ter tido um prémio. Felizmente, ganhou o prémio da Associação Portuguesa de Autores, em 1990, com o livro Sonetos Românticos. Mas ganhou porque eu estava lá, porque o júri nem tinha lido o livro dela… era uma mulher… e a escrever determinadas coisas. E eu avisei que, enquanto jornalista, ou eles liam todos os livros, incluindo o dela, ou ia divulgar aquela situação. E quando marcámos outra reunião, vinha tudo com o dela em primeiro lugar. Ela ganha com unanimidade.

O livro cá é apreendido passados três dias, mas no estrangeiro movimentou muita gente...

Foi o primeiro caso internacional feminista no mundo! moveu as mulheres do mundo ocidental todas. Incluindo a Simone de Beauvoir. Atravessaram Paris duas vezes, com escritores e atores, em direcção à embaixada portuguesa. Iam com as velas acesas, por causa das velas de Fátima. Faziam sempre aquilo ao crepúsculo, como se fosse uma procissão. E quando chegavam à embaixada era a Simone de Beauvoir sempre que ia falar com eles. Também houve o caso das mulheres que subiram ao teto da embaixada portuguesa, na Holanda. Puseram os homens da embaixada todos cá fora, como eram muitas, e só ficaram mulheres lá dentro. Quando subiram ao telhado colocaram uma faixa grande a dizer “viva as três marias”. Com este movimento, cá em Portugal mandaram uma advogada falar conosco. A advogada estava casada com o Salvação Barreto que lhe batia. E ela vem propor-nos, para terminar o caso, que nós disséssemos que o livro não era bem era aquilo que queríamos ter escrito. Está-se mesmo a ver que nós aceitámos… Nós respondemos logo “ó minha senhora, mas era exatamente aquilo que nós queríamos escrever”.

Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno no Tribunal da Boa Hora

E como foi o dia em que são chamadas ao Tribunal da Boa Hora?

Eu cheguei lá com a Isabel e a Velho da Costa e vimos duas carrinhas da polícia. Pensámos que era por causa das pessoas da Ação Revolucionária Armada que também estavam em tribunal. A Isabel Barreno, que não se importava com nada, diz logo “eu quero lá saber [da polícia], vou sentar-me aqui no degrau das escadas [do tribunal]l”. Eu e a Velho da Costa fomos ter com um polícia e dissemos: “olhe, faz favor, está aqui tanta polícia porquê?” e ele respondeu: “Ah, meninas, isto é por causa das Marias que vão presas”. Antes de o juiz nos dar a sentença, já estava ali a polícia para nos levar para a cadeia. A Velho da Costa disse logo “Que horror. Então e agora como é que a gente escreve?” e eu disse-lhe “Sei lá, nós na prisão não temos papel”. Chegámos ao pé da Isabel e dissemos: “Olha vamos presas, já sabemos a sentença do juiz”. Mas aquilo estava cheio, cheio de feministas de todo o mundo. E a televisão americana tinha pedido licença para gravar em tribunal. O juiz ficou muito aflito e deu parte doente, e adiou o julgamento para o dia 8 de Maio. Entretanto deu-se o 25 de Abril.

 "Se a gente aceita o medo não há nada a fazer. Somos um farrapo. Somos aquilo que eles querem, uns fantasmas, umas marionetas nas mãos deles"

 

Mas antes disso, já tinha estado na iminência de ser presa?

Sim. Numa das reuniões das Novas Cartas, na minha casa do bairro social do Arco do Cego, o Luís subiu as escadas, vinha do jornal, e encontrou-nos às três. "Estão a escrever? Vocês vão presas. Qual é o vosso tabaco, para eu levar lá?” perguntou ele à Isabel e à Velho e Costa. Na altura, todas fumávamos. Olhe, bem dito e bem feito. Passado uns dias, tive de fugir de casa, porque o meu advogado ligou-me a dizer que a polícia tinha um papel para me prender, e que eu tinha de estar na Boa Hora no dia seguinte às 9 horas da manhã, para pagar a caução, de 25 contos. Eu tinha lá esse dinheiro. O meu advogado, o Francisco Rebelo, disse-me para eu pedir ao meu pai mas eu ao meu pai não pedia nada. A certa altura, ele disse-me: “olha está aqui o David Mourão Ferreira e ele diz para estares amanhã na Boa Hora que ele está lá com o dinheiro”. O David sempre foi um grande amigo. Mas até às 9h havia outro problema. Eles podiam prender-me até à meia noite e da meia noite às 6 da manhã, por isso tive logo de fugir de casa mal soube a notícia. O meu filho nessa altura tinha sete anos e eu disse-lhe " filho, nós temos de fugir, vamos para casa da avó, porque a PIDE anda atrás da mãe. E se me apanham vou presa. Não fico lá muito tempo porque pago a caução, mas é chato”. Quando chegámos à porta para sair de casa, estávamos só os dois, o Luís Jorge diz-me “Mãe, vou até à rua ver se vejo a PIDE”. Ele viu, disse que não estava lá ninguém e saímos de casa. Ele agarrou tanto, tanto, tanto a minha mão que parecia uma tenaz. E olhava para todo o lado. Eu disse: “ó filho, não estejas sempre a olhar para trás. Não anda aqui PIDE nenhuma, eles nem sabem que a mãe já sabe que eles vêm atrás da mãe. Eles não estão aqui, só vêm mais tarde”. E foram, mas já não estava lá ninguém. No dia seguinte, pago a caução e a Velho e Costa também. A Isabel, como estava divorciada e o ex-marido não estava cá, o advogado argumentou que ela não podia ir presa, pois tinha as crianças a cargo dela. Eles permitiram que ela não pagasse, mas tinha de ir à esquadra todas as semanas assinar um papel.

Qual é a sensação que se tem ao saber que se pode ser presa a qualquer momento?

Isto é tudo muito bonito, até se ter medo de ir para a prisão. É preciso fazer uma grande reflexão, e ter uma grande coragem. Mas era muito empolgante para mim. Confrontar a PIDE era empolgante. Mas havia muito medo. Sem medo acho que não se faziam os actos heróicos que se fizeram na altura. Eu acho que o heroísmo só existe porque existe medo e uma pessoa para vencer o medo, a coisa é de tal maneira exaltante, que vai até à morte. Naquela altura ia-se, fazia-se. Porque não se queria ter vergonha de olhar para si próprio no espelho, que é uma coisa que eu nunca senti. Nunca senti vergonha de olhar para os meus olhos. Sem liberdade nada se faz. Não se é ninguém. Se a gente aceita o medo, não há nada a fazer. Somos um farrapo. Somos aquilo que eles querem, uns fantasmas, umas marionetas nas mãos deles. Para tudo é preciso ter muita coragem, e acima de tudo coragem para nos vencermos a nós próprios, porque de vez em quando ficamos cansadas desta vida. Mas olha-se em frente e diz-se "não, não pode ser. Eu sou assim". Dizer isto tem os seus custos, tem os seus custos todos os dias.

Hoje falta essa coragem?

Sim. Eu quando disse “não quero receber um prémio desse senhor chamado Passos Coelho”, dele não recebo uma côdea de pão, nem que morra à fome” [Prémio D. Dinis pelo romance As Luzes de Leonor em 2012] foi um burburinho. Eu fiquei estarrecida, porque aquilo não era nada! O que é que me podiam fazer? nada, vivemos em liberdade. Eu fiz muitíssimo pior no tempo do fascismo e ninguém me achava uma heroína e eu também não. Era perigoso, mas combatia-se pela liberdade, não há coisa mais importante que a liberdade. Eu sempre me senti uma pessoa incompleta sem a liberdade. A primeira vez que em que me senti uma pessoa completa foi no dia 25 de Abril. Eu percebi muito cedo que nada se faz sem a liberdade. Quando lia a Simone, em pequena, percebi logo que não era possível lutar pelos direitos das mulheres sem ganhar primeiro a luta pela liberdade. Podia lutar dentro da casa do meu pai, mas é uma luta muito pequenina. Não era isso que eu queria fazer. Faltava a liberdade para poder lutar pela igualdade das mulheres.

"Os homens são mais reacionários do que as mulheres, não tem a ver com a esquerda"

No poema Mulher de Abril diz “Basta/digo/que se faça/ do corpo da mulher/ a praça/ a casa/a taça/ A água/ com que se mata/ a sede/ do vício e da desgraça”. A sua luta era para que o “Basta” fosse repetido por mais mulheres?

Claro. Não se esqueça nunca que um homem podia matar a sua mulher se houvesse flagrante delito. Não era sequer preso, ia a tribunal e ia para fora da comarca um mês. Pegavam nele e punham-no, por exemplo, em Almada, e ele continuava a sua vida, apenas noutro sítio. Ficava livre. O marido podia chegar ao nosso emprego e acabar com o nosso contrato de trabalho quando quisesse. Como é que a mulher saía de casa assim? E ainda tinham os filhos, que sempre as limitou muito. As mulheres sempre foram preservadas para parir, para assegurar a continuação da espécie. A maternidade sempre se virou muito contra as mulheres. Além disso, havia muita pressão. Não se podia estar com mais que duas ou três pessoas na rua que a polícia podia chegar e prender-nos. Sempre que eu chegava a um café, tocava por debaixo da mesa para ver se estava lá algum gravador. Isto é uma situação que vai pressionando os homens e as mulheres, mas mais as mulheres, que viviam numa situação de dependência e sujeição. Esse meu livro, o Mulheres de Abril, é um livro completamente diferente dos outros mas não me arrependo nada de o ter escrito. Devo esse meu livro às mulheres que trabalhavam nas fábricas. Eu até sou madrinha da filha de uma das operárias. Sou madrinha, mas não fui ao batismo, era desonesto da minha parte, mas o padre aceitou ir uma pessoa por mim à igreja, e eu assinei um papel. Eu assinei como madrinha, mas não como testemunha. Mas esse livro diz muito sobre uma parte de mim, que é uma parte de sacrifício. Nos meus livros, o feminismo está sempre presente. Quando lê Maria Teresa Horta, lê a feminista.

O contacto com as mulheres operárias estimulou a aproximação ao Partido Comunista Português?

Eu propus-me para o Partido Comunista, na altura do fascismo, e o partido disse que não, disse que eu era muito nova. E eu fiquei ofendida, e a partir dai não tentei mais. E quando foi o 25 de Abril registou-se tudo no partido. E eu pensei que era uma pouca-vergonha, se eu não voltei a tentar entrar no partido porque tinha ficado ofendida não ia tentar agora que já não havia perigo. Então só entro no partido no dia 26 de Novembro, um dia depois do dia 25, em que se pensa que o partido ia deixar de existir legalmente. Subi a escada António Serva e inscrevi-me. Estive lá durante 14 anos. Sempre numa grande luta, porque era feminista, porque dizia poesia erótica, porque... porque... sempre porque. Depois saí.

Mas já tinha ligação com o partido antes.

Com 15 anos já andava na rua a distribuir papéis do partido. Um dia… se o meu pai ou a minha mãe soubessem. Foi na altura do Arlindo Vicente [opositor ao Estado Novo]. Eu era novinha, andava à frente dessa gente toda, e aparecem na rua os guardas republicanos em cima dos cavalos. E eu, carregada de papéis do partido, começo a correr à frente deles. Mas ninguém me ligava muito, porque era miúda, muito magrinha, pensavam que eu estava a correr porque estava assustada. Tenho uma história linda, ainda vou ter de escrever sobre isto. O meu padrasto era um bom padrasto, mas era fascista, fascista, fascista. Ele ofereceu-se para ajudar o Franco na Guerra de Espanha. Está dito. À entrada de casa tinha tudo o que era livros fascistas. O Mein Kampf… Enfim. Se ele soubesse que, dentro da casa dele, debaixo da minha cama, havia tantos, mas tantos panfletos do partido comunista… Claro que era muito perigoso, mas eu fazia tudo com muito cuidado. O partido formou-me muito. O contacto que tive com a resistência ao ir dar apoio aos presos políticos, entre eles a Vera Lagoa [pseudónimo da poetisa e jornalista Maria Falcão], formou-me muito. As mulheres mudaram muito a minha vida. Os homens são mais reacionários do que as mulheres, não tem a ver com a esquerda. A esquerda tem dos homens mais reacionários que eu já vi em relação às mulheres. São impecáveis, maravilhosos, corajosos mas se estiverem com a sua mulher são capazes de lhe dar uma bofetada.

Hoje continua a ser a mesma pessoa que era?

Eu vou ser sempre uma rapariga seja qual for a minha idade, porque esta coisa da idade só sinto fisicamente - e irrita! - mas por dentro não sinto. Ninguém faz considerações sobre a idade do David Mourão Ferreira, que fazia poesia erótica e tinha 70 e tal anos. Mas se vier uma mulher, como eu, que faça poesia erótica, fica tudo pasmado. Às mulheres acham sempre tudo mal, seja no início ou no fim. Não julgue que vai mudar com a idade. Eu não sigo os estereótipo da idade, eu não penso “com esta idade não sinto, com esta idade não apaixono, com esta idade não vou para a cama, com esta idade não tenho prazer, com esta idade não vou dizer isto, vão vou fazer aquilo”. Eu não aceito estes estereótipos, se aceitasse estava a desrespeitar-me a mim própria. Eu nunca aceitei essas regras. Essas regras machucam as pessoas, deformam as pessoas. Eu não quero isso para mim. Nunca quis e até à minha morte não quero.

Maria Teresa Horta
Maria Teresa Horta

No Poema para os Amigos diz “há um clima de raiva com armas que não disparam”. Embora diga que é a sua poesia, houve armas que a Teresa não disparou, coisas que guardou só para si?

Acho que hoje em dia já não. Durante algum tempo, provavelmente sim. Eu tenho muito pouca auto-defesa, porque eu mostro tudo aquilo que sou e isso é um grande defeito. Esse clima de que falo é o fascismo. Dentro do feminismo, as minhas armas disparam. Quando lê Maria Teresa Horta, lê a feminista. Mas poderei ter um certo cuidado de vez em quando com as pessoas que eu mais amo. Escrever escrevo, depois posso é não publicar determinados poemas. Poemas que eu possa pensar que podem chocar alguém que eu amo muito. Por exemplo, a minha mãe, quando ela era viva. Eu de vez em quando pensava duas vezes antes de publicar um poema sobre ela. Mas no livro Destino escrevi um poema para a minha mãe que a deixou muito magoada e eu nunca me arrependi de o ter publicado. Ela não me contou a mim, disse às minhas irmãs. Mas essa preocupação sim. Agora eu tenho muita dificuldade em não disparar uma arma que deva ser disparada.

Já no poema Um dia diz “Talvez um dia ainda/me arrependa/de não ter tudo dito e tudo escrito/Não ter tudo extremado/Ao infinito/nem ter amado tanto nas palavras”. Que arrependimentos ficam?

Eu tenho mais arrependimentos de não fazer do que arrependimentos de ter feito. Quando faço uma coisa assumo, e raramente me arrependo. Ao passo que muitas vezes me arrependi de não ter feito, de não ter dito, de não ter ido mais longe. Não ter extremado tudo ao infinito… posso arrepender-me, mas eu tenho esse entrave dentro de mim que também me permite viver em comunidade. Esse entrave de vez em quando pode impedir-me de publicar, mas não de escrever.

No poema Alumbramento diz “Pergunto a mim mesma/ o que continuo/ a esperar da vida/Alumbramentos? Paixões?/Como Teresa de Ávila/diria noutros tempos e trevas:/ - Êxtases! Entregas!”. Que êxtases e entregas se esperam?

Eu vivo com pessoas que amo muito, vivo com a paixão desregrada que tenho pelo Luís, com os meus netos, os meus filhos, a minha nora que é a minha filha, com quem até hoje, e eles estão casados há 30 e tal anos, houve um entendimento perfeito, é um dos maiores entendimentos da minha vida. Quando tive um cancro da mama, há 20 anos, foi a ela a quem contei, e só nós é que sabíamos no princípio. Mas de vez em quando é preciso sabermos abdicar de coisas, mas isso não é porque é mulher nem porque é homem, é porque se ama. Ama-se as pessoas, a família, as amigas, esta história do amor deixa logo tudo muito aflito. Eu tenho amigas que eu amo muito. É tudo muito espartilhado, proibido, é tudo muito olhado de lado, de segundos sentidos. Porque as pessoas não se fazem de si próprias, não se deixam florescer, há qualquer coisa que fica ali morto. Agora os êxtases da Teresa de Ávila gostava de ter, mas é difícil, porque ela acreditava mas eu não. Eu gosto muito das mulheres dos êxtases, do além. Mas comigo não dá. As coisas do além comigo não dá. Mas êxtases… Só sou capaz de ficar assim com o Luís.