1.

Eu tinha dez anos quando deixei meus cavalos caírem no chão. Foi no tempo em que fomos morar no Morro da Cruz, em Porto Alegre. Minha mãe trabalhava numa empresa de transporte público como funcionária de serviços gerais. Alugamos uma casa pequena, nos fundos de um terreno. Na casa da frente, moravam os donos: a dona Josefa e o seu Adauto. Eram pessoas simpáticas e amáveis. Percebia-se que eram velhos apenas pelo rosto, porque eram ágeis e tinham humor juvenil. Minha mãe fazia uma jornada de oito horas. Por isso, estava sempre muito cansada. Eu estudava pela manhã, e à tarde costumava desenhar. Com o tempo passei a frequentar a casa dos velhos. Eles me tratavam bem. Às vezes, quando eu chegava da escola, dona Josefa havia feito o almoço para mim. Um dia tomei coragem e mostrei a eles um dos meus desenhos. Seu Adauto pegou-o, sentou-se numa poltrona e ficou analisando os traços. Depois, olhando para mim, disse com alegria: Joaquim, você é um artista. Eu sorri, porque ninguém nunca havia me dito algo assim. Seu Adauto, percebendo meu entusiasmo, disse que iria me encomendar um trabalho. Perguntou se eu sabia desenhar cavalos. Respondi que nunca tinha feito um cavalo antes, mas que podia tentar.

Então ele se levantou, foi até um armário antigo e pegou uma foto que parecia um cartão-postal. Na imagem, cavalos selvagens corriam perto de um rio, em meio às montanhas. Seu Adauto perguntou se eu conseguiria fazer algo parecido mas numa dimensão maior. Eu repeti que podia tentar. Dona Josefa sorriu. Eles me deram uma cartolina e lápis de cor, e perguntaram quanto eu cobraria pelo trabalho. Aquela pergunta me pegou de surpresa, porque nunca pensei que um desenho pudesse ser vendido. Nunca imaginei que meus desenhos pudessem valer alguma coisa. Depois achei que eles é que tinham de me dizer quanto iam me pagar. Mas não, seu Adauto se aproximou e disse: você é quem diz quanto vale o desenho. Eu não tinha noção de dinheiro. Dona Josefa sugeriu que eu pensasse num valor. Quando minha mãe chegou, contei a ela sobre a encomenda. Ela não deu muita importância, estava mais preocupada em tomar um banho, trocar de roupa e dormir. Só disse para eu não viver socado na casa dos outros e não ficar incomodando, porque ela já tinha problemas além da conta. No dia seguinte, comecei a desenhar. Tive dificuldade, a cartolina era grande demais. No entanto, a frase do seu Adauto, Joaquim, você é um artista, reverberava em mim. Os dois eram aposentados, mas faziam doces para vender. Eles recebiam muitas encomendas. Embora eu nunca tenha visto os doces que dona Josefa fazia para vender, mas somente os que ela fazia para mim. Certo dia, seu Adauto me chamou e perguntou se eu não poderia fazer um favor. Eu disse que sim. Dona Josefa me alcançou um pacotinho e disse para eu ir entregar numa casa próxima. É só entregar e pegar o dinheiro, coração. A casa ficava num beco onde havia muitos cachorros e algumas crianças. Bati na porta e um homem negro, retinto, sem camisa e com guias de orixás no pescoço atendeu. Eu disse que tinha vindo entregar os doces da dona Josefa.

Jorge Silva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 29 de maio, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Esperança", a autobiografia do Papa Francisco publicada pela Nascente.

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"Esperança", uma autobiografia do Papa Francisco, era para ter sido publicada apenas após a sua morte, mas o pontífice decidiu que sairia no início deste ano, para assinalar o Jubileu 2025, dedicado precisamente à esperança.

Ele sorriu, pegou o pacote e me pagou. Achei fácil. Voltei para casa, entreguei o dinheiro para seu Adauto. Dona Josefa passou a mão no meu rosto e disse: obrigada, coração. Depois me pediu para não dizer nada a minha mãe sobre a entrega, porque talvez ela não gostasse. A partir de então passei a entregar as encomendas quase todos os dias nos lugares mais diversos do Morro da Cruz. Me sentia feliz porque era o meu modo de agradecer aos dois velhos. Enquanto isso, meu desenho avançava. Eu fazia e refazia alguns traços. Um dia minha mãe chegou do trabalho, cansada como sempre, e a dona Josefa a chamou para jantar. Nós fomos. Comemos macarrão com carne. Em dado momento, fiquei com sono e minha mãe disse para eu ir para casa dormir, que ela ia ficar mais um pouco bebendo com eles. Fiz o que ela mandou. Naquela noite, cheguei e olhei para o meu desenho, e ele estava quase finalizado, mas eu ainda não sabia quanto iria cobrar. Então pensei que precisava de cadernos novos para a escola. Tinha receio de pedir para a minha mãe. Achei que eu poderia cobrar o valor que precisava para comprar os cadernos. Adormeci com esses cálculos. Tive um sonho breve em que caía de uma escada interminável. Acordei com minha mãe desesperada dizendo: Joaquim, levanta, anda, levanta, a gente precisa ir embora daqui, pega as tuas coisas. Estava frio, olhei para o relógio e eram cinco da manhã. Lembro da minha mãe abrindo as sacolas e colocando nossas roupas nelas com muita agilidade. Eu perguntava o que havia acontecido, mas ela não dizia: estava determinada a sair daquela casa. A gente não tem tempo, Joaquim. Pega tudo que você puder e vamos embora daqui. Tivemos dificuldades ao sair, porque as sacolas eram muitas. Para chegar à rua, tínhamos que passar ao lado da casa dos donos. Estava escuro. E naquele momento meu desenho caiu no chão, e eu disse: mãe, espera, meus cavalos caíram. Ela estava transtornada e falou: esquece essa merda, vamos sair logo daqui, não temos tempo. Olhei para trás para ver meu desenho e, quando levantei os olhos, tive a impressão de ter visto o seu Adauto na janela. Abrimos o portão, lá fora ouvimos latidos de cães. Descemos a rua o mais depressa que pudemos. Minha mãe olhava para trás como se estivesse sendo seguida. Chegamos numa parada de ônibus que já estava repleta de trabalhadores indo para o centro. Lembro que minha mãe tremia e olhava para os lados. Ela nunca me contou o que aconteceu naquela noite, mas o fato era que não tínhamos mais um rumo. O dia amanheceu, e minha mãe olhava através da janela do ônibus como se buscasse uma alternativa.

2.

Eu estava lembrando disso quando o professor Moacir Malta me chamou para apresentar meu poema. Era a primeira vez que mostrava um texto numa situação como aquela. Comecei a ler, pausadamente, porque queria que todos compreendessem o significado de cada palavra e seus encadeamentos. Minha voz estava trêmula. Assim que terminei, houve um silêncio, mas logo em seguida uma colega disse que havia gostado. Acrescentou que era um poema grave mas não dramático. Outro completou dizendo que meu poder de síntese era bom, que não havia desperdício semântico nem vocabular. O professor Moacir falou que o título do poema lembrava Fernando Pessoa. Eu disse que ainda não tinha lido Fernando Pessoa. Ele respondeu que seria interessante conhecer e comentou que meu poema era uma luta física pela permanência do passado, como se este pudesse ser conservado nos objetos. Embora algumas palavras sejam um pouco formais, ele disse, é um bom poema. 

3.

Entrei pelo sistema de cotas raciais na universidade aos vinte e quatro anos, e tudo que posso dizer é que quase fui vencido pela burocracia. Quase me deixei vencer pelos papéis e protocolos e todas as estratégias que àquela altura eu pensava terem sido criadas para que eu desistisse. No dia em que fui fazer a matrícula, tive de ir a pé de casa até o campus, porque estava desempregado e não podia pagar passagens de ônibus a toda hora. Eu já era um adulto, prestes a entrar na faculdade, então passar por baixo da roleta estava fora de cogitação. Era preciso preservar um pouco de dignidade. Ao chegar no local onde eram feitas as matrículas, fui recebido por uma secretária que só sabia repetir todo um jargão burocrático. Ela conferia minha documentação como se tivesse o poder de decidir quem entra e quem não entra na universidade. Eu entendia o que estava se passando ali, não só pela minha experiência mas principal- mente pelos livros. Eu era um bom leitor. Além disso, eu tinha o rap a meu favor, o que me dava uma certa coragem quando precisava enfrentar situações como aquela. Lembrava das letras dos Racionais e seguia. Senhor Joaquim, seu histórico escolar está desatualizado, disse a secretária. Falou que infelizmente eu não poderia fazer minha matrícula. Eu a olhei com surpresa. Pedi o documento para examinar. O documento não está desatualizado, eu disse com firmeza, faz cinco meses que foi emitido. A secretária mexeu no cabelo, passou a mão no edital e com o dedo indicador leu para mim, dizendo que o histórico escolar precisava estar atualizado, o documento precisava de um carimbo daquele ano. Dominei meu asco e o tom de voz, e disse com tranquilidade e certa polidez que eu a compreendia mas discordava, já que o edital não especificava que o documento tinha de ser do mesmo ano da matrícula, e sim emitido seis meses antes. A secretária me analisou apertando levemente os olhos e depois disse para eu esperar um pouco, que ia ver com o chefe do departamento. Enquanto isso vai preenchendo esse formulário aqui, ela disse. Eram duas folhas com questões para quem entrava pelo sistema de cotas raciais. Trinta e duas perguntas cujo intuito era comprovar que de fato você é uma pessoa negra. Li uma delas, aleatoriamente: você já foi impedido de entrar em algum espaço devido à cor da sua pele? Eu ri. Fui preenchendo, ainda tenso com aquela indefinição. Pouco tempo depois, a secretária retornou. Hoje é seu dia de sorte, garoto, disse, você pode fazer a matrícula. Mas precisa trazer o documento atualizado na semana que vem. Agora, você passa naquela salinha ali e entrega o formulário. Na sala em questão ficava a comissão que analisava os candidatos cotistas. Eram três professores brancos. Entreguei o formulário, não me fizeram nenhuma pergunta. Minha cor retinta não deixava dúvidas de que eu era um inquestionável e exemplar espécime de rapaz negro. Todos foram gentis comigo, me deram orientações sobre como escolher as disciplinas. Depois sorriram e me desejaram um bom semestre.

4.

Depois de minha mãe morrer e de meu pai sumir no mundo, minha avó era quem tomava conta de mim. Ela estava com oitenta e nove anos quando apresentou os primeiros sintomas de demência. Eu e minha tia Julieta cuidávamos dela. Não tínhamos recursos para interná-la numa clínica. E, embora sofresse com a velhice, minha avó tinha muita vontade de viver, fazia planos como se tivesse muito futuro pela frente, o que me deixava comovido, mesmo quando ela delirava e me confundia com o Marcelo, seu companheiro que havia morrido muitos anos antes. Marcelo trabalhava no cais do porto como estivador, tinha uma cicatriz no rosto e nutria um grande ódio pela vida. Para descontar sua raiva, ele espancava minha avó. Depois se arrependia. Por esse motivo, às vezes minha avó era afetuosa em seus delírios, noutras era violenta e me dizia uma infinidade de ofensas, como se eu fosse a reencarnação do Marcelo. Minha avó também pegou a mania de esconder as chaves de casa. E, quando isso acontecia, tínhamos que pular a janela ou arrombar a porta, enquanto minha avó ria do nosso desespero como se fosse uma criança. Em outros momentos, ela se indignava com a própria condição. Era rabugenta quando sentia o cheiro da sua urina. E, quando era atacada por crises de violência, era eu quem a acalmava, tirava sua roupa, a fralda, limpava-a e depois, com ajuda da tia Julieta, vestia sua camisola e ajeitava seu cabelo com grampos. Assim, aos poucos, eu a trazia de volta para a lucidez. Mas devo dizer que toda aquela rotina me esgotava, não apenas por ter de ver minha avó nua, mas por ser eu a fazer aquilo. O neto dela. Era uma cena que me doía e, por conta disso, passei a ter medo de envelhecer. Um dia ela havia sido jovem. Deve ter tido sonhos e alguma alegria na vida. Incomodava-me saber que em breve ela desapareceria, e que ninguém mais tinha registro de sua vida, a não ser minha tia e eu. Quanto mais eu cuidava de minha avó, mais eu aprendia sobre a solidão. Por outro lado, havia um pensamento que me confortava: a certeza de que toda a humanidade um dia iria desaparecer também, que um dia ocorreria o fim do sistema solar, e todo mundo iria se foder e virar poeira cósmica, e ninguém haveria de ser esquecido nem lembrado.

5.

Eu me sustentava com a aposentadoria da minha avó e com um mísero salário que ganhava sendo explorado como chapista numa lanchonete. Tinha uma infinidade de carimbos na carteira de trabalho, porque nunca conseguia me adaptar. Não me sentia à vontade, como se eu fosse um eterno estrangeiro. Logo fui demitido da lanchonete por me recusar a fazer horas extras sem ser remunerado. Durante algum tempo vivi com o dinheiro do seguro-desemprego. Na época eu tinha uma namorada que se chamava Jéssica, ela era bonita e era cinco anos mais velha do que eu. Jéssica cursava história, mas tinha uma relação conflituosa com a universidade, com os colegas e professores: todos uns filhos da puta, ela dizia. Gosto de pensar que tanto eu quanto Jéssica éramos atraídos pelas coisas difíceis, e muito cedo aprendemos que nossa única chance de fugir de armadilhas era preservar nossa lucidez. Por isso a gente não se drogava nem bebia, quer dizer, bebíamos, mas muito pouco. Nos conhecemos no Baile da Capitão 7, no centro de Porto Alegre, onde costumávamos fazer passinhos ouvindo black music. Naquele dia, Jéssica estava metida num vestido branco curto, rebolava até o chão. Então, quando tocou «Nosso sonho», de Claudinho e Buchecha, quando todo mundo começou a dançar o mesmo passinho, e podíamos, numa certa parte da dança, pôr a mão na cintura de quem estava na nossa frente, nossos olhares se cruzaram. Jéssica era negra, um pouco mais clara que eu, com os cabelos crespos até os ombros. Tinha uma filha de quatro anos, Yasmin. Fruto de um relacionamento-relâmpago com um cara que ela havia conhecido num verão em Tramandaí. Morávamos em Alvorada, separados por uma rua, no bairro São Pedro. A partir daquele encontro, veio a vontade de estar juntos, de ir ao cinema, de passear na Usina do Gasômetro. Logo vieram as primeiras transas. Jéssica tinha muita paciência comigo, me ensinou o toque, a delicadeza e a ternura. Me ensinou também a pensar no futuro. Ela disse que eu era inteligente e que devia seguir estudando. Eu já vinha pensando nisso, seguir estudando, desde que havia começado a frequentar o apartamento do Sinval.
6.
Conheci o Sinval um ano antes de entrar na universidade. Ele era livreiro e tinha um sebo onde, além de livros, vendia revistas Playboy e Sexy, e alguns vinis raros. A loja ficava na avenida Assis Brasil, zona norte de Porto Alegre. Embora eu já fosse leitor e gostasse de literatura, comecei a frequentar o sebo não por causa dos livros, mas pelas revistas, porque ali era o único lugar em que eu não me sentia constrangido em passar com uma Playboy no caixa. No início, Sinval mal me olhava, estava sempre com a cara enfiada num livro. Um dia perguntei a ele o que estava lendo. Na verdade, eu não queria saber, só queria dizer qualquer coisa, porque ele parecia uma pessoa solitária e triste no meio daqueles livros velhos. Mas eu estava enganado. A vida de Sinval mostrou-se diferente do que eu imaginava. Disse que já tinha sido professor em escolas públicas, mas que tinha enchido o saco daquilo. Estava com cinquenta e oito anos e queria se dedicar à leitura. Porque, agora, outra parte de sua vida tinha começado. Por isso abriu aquele sebo, para se manter e poder viver perto do que gostava. Naquele dia, ele desandou a falar das Ilusões perdidas, do Balzac. Falava com paixão e alegria. Misturava passagens dos livros com acontecimentos da própria experiência, como se a literatura e a vida fossem a mesma coisa. Mas não eram.

Livro: "De onde eles vêm"

Autor: Jeferson Tenório

Editora: Companhia das Letras

Data de Lançamento: 26 de maio de 2025

Preço: € 16,65

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7.

Eu e o Sinval logo nos tornamos próximos por causa dos livros. Eu ainda não conseguia me decidir se ele era um lunático ou apenas um homem excêntrico que largou a vida de professor para virar dono de sebo. Ele morava num conjunto habitacional, no bairro Leopoldina, no quarto andar. Não havia elevador. A primeira vez que o visitei, senti um cheiro fétido ao entrar na sala. Sinval fechou a porta e disse que estava tendo problemas no banheiro. O vaso entupiu de novo, ele disse, eu ia chamar uma desentupidora, mas achei caro. Já ando devendo muito por aí. Se continuar desse jeito, minha namorada vai desistir de mim. Reparei que ele segurava um desentupidor. Precisa de ajuda?, perguntei. Sinval respondeu que não precisava, por enquanto acho que ainda consigo lidar com a minha própria merda, e riu como se tivesse dito a coisa mais engraçada do mundo. Eu não vou demorar, eu disse, só vim ver se você tem aqueles livros das leituras obrigatórias que preciso para o vestibular. Sinval se agachou perto do vaso e começou a fazer movimentos para cima e para baixo com o desentupidor. Mas não adiantou muito. Depois pareceu cansado, embora não demonstrasse querer desistir. Observei que no balcão da pia havia alguns livros, entre eles o Ulysses, de Joyce. Sinval olhou para mim e perguntou se eu já tinha lido. Eu disse que não e que não tinha essa pretensão porque o livro era grande e parecia difícil. Sinval voltou a fazer os movimentos no vaso e disse, rindo: ora, ora, isso lá é resposta que se dê, hombre? Literatura é difícil, não me venha com essa. Toma, segura aqui, me ajuda um pouco porque eu cansei, e me passou o desentupidor. Quando me aproximei do vaso e vi aquele monte de merda, me deu ânsia de vômito. Fechei os olhos. Vai, tenta, vai, disse Sinval. Não tenha medo de chafurdar, e ria, vamos, hombre. Então abri os olhos, enfiei o desentupidor no vaso, e fiquei vendo os dejetos subirem e descerem junto com os movimentos que eu fazia. Depois passei a respirar pelo nariz. Sinval me incentivava: vamos, Joaquim, isso aí também é poesia, haha. Isso é o máximo que você pode fazer? Vamos, ponha força nesses braços. Não vá me fazer pagar por uma empresa que vai me custar os olhos do cu. E ria. Depois de algumas tentativas eu decidi parar porque me senti um pouco idiota. Lavei as mãos, Sinval fez o mesmo, depois fechou a porta do banheiro e fomos para a sala. Ele se sentou numa poltrona velha que tinha um rasgo pelo qual dava para ver a madeira e a espuma, enquanto eu me ajeitei numa carcaça que ele chamava de sofá. Reclamou que ia ter que chamar uma empresa para resolver o problema. Eu fiquei em silêncio. Estava meio puto, porque não tinha ido lá para desentupir privada. Sinval percebeu meu desapontamento e, tentando achar um modo de se desculpar, disse: podemos fazer algumas leituras do Ulysses juntos, se você quiser. Agradeci e disse que talvez outra hora. Sinval guardava tantos livros naquele apartamento minúsculo, que eu tinha a impressão de que precisávamos sempre pedir licença a eles para entrar. Depois ficamos quietos novamente. Na verdade, eu já queria ir embora. Nesse meio-tempo, Sinval me ofereceu café. Aceitei, até porque o aroma da cafeína talvez pudesse amenizar o fedor que ainda voltava com força. Fomos para a cozinha e ele perguntou se eu andava escrevendo. Eu disse que não tinha muito tempo, mas que queria escrever uma história curta. Tomei coragem e contei que estava pensando em participar de um concurso de literatura. Sinval assentiu com a cabeça como se estivesse me entendendo, depois perguntou sobre a ideia do conto. Sua voz nesse momento me pareceu afável e delicada. Ele não lembrava em nada a pessoa que momentos antes me recebera com um desentupidor na mão. Me senti mais à vontade. Então comecei dizendo que o conto era sobre uma família negra que fica presa numa casa durante quatro anos, mas eles ficam presos por vontade própria. Quer dizer, eles estão se escondendo de algo que está fora da casa, são cinco personagens, todos adultos, eu disse. É uma história real sobre uma família que foi encontrada escondida na sua própria casa e nem os vizinhos sabiam que eles estavam lá. As reportagens que li não traziam muitos detalhes sobre como eles conseguiram ficar dentro de casa por quatro anos sem serem notados, eu disse. Sinval fez um movimento como que dizendo para eu continuar. Minha ideia é reconstituir a história dessa família dentro da casa e narrar os motivos que os levaram a ficar escondidos. Quero com essa história denunciar como o racismo e o preconceito no Brasil obrigaram essa família negra a se esconder numa casa por quatro anos. Mostrar essa casa como uma espécie de quilombo urbano. Uma casa de resistência contra a opressão, eu disse. Sinval continuou me olhando e perguntou se eu já tinha começado a escrever. Respondi que não, que ainda estava pensando na história. Foi quando Sinval mudou de expressão. Esse concurso dá algum prêmio em dinheiro? Eu disse que não sabia e que também não me importava, porque o que me interessava era escrever um bom conto. Sinval mostrou certa irritação. Se eu fosse você, não gastava tempo com essa história, nem com esse concurso. Fiquei um pouco surpreso. Por quê?, perguntei. Porque você não está interessado em contar uma história, está interessado em fazer uma denúncia. Se for isso, vá lá e escreva um artigo e publique num blog qualquer por aí. E outra, você precisa de grana, não gaste seu tempo em concursos que não dão prêmio em dinheiro. Esse tipo de concurso serve para os brancos que moram no Moinhos de Vento, não pra você. Senti um incômodo com aquela resposta. Pensei um pouco e disse que até poderia concordar com a questão do dinheiro, mas a situação dos negros no Brasil... Sinval me interrompeu: não me venha com essa, Joaquim. E fez uma pausa como se estivesse procurando as melhores palavras: olha, o argumento do seu conto não é ruim, mas veja, não me parece que você esteja pronto pra escrever ficção. Escutei aquilo como uma ofensa, a postura de Sinval diante do que eu pensava começava a me deixar confuso. Então você acha que a literatura tem de ser omissa?, falei. Sinval descruzou as pernas, se levantou, foi até a cozinha e trouxe o café. Joaquim, a literatura é só um meio de dizer que estamos vivos e que um dia vamos morrer. Fiquei paralisado e ainda mais confuso. Minha convivência com Jéssica havia me dado certa consciência. Eu queria escrever o conto e pelo menos tentar ganhar aquele prêmio. Saí atordoado do apartamento e, principalmente, sem os livros que queria. Dias depois desisti de participar do concurso.