No documento tornado público na última sexta-feira e que conta com mais de duas centenas de assinaturas, pode ler-se que estes profissionais "rejeitam a forma como têm visto sucessivamente atropelada a sua autonomia técnica, com decisões arbitrárias por diversas entidades (...). Vão-se multiplicando as situações em que é colocada em causa a resposta, com a implementação de soluções, supostamente colaborativas e expeditas, que vão ao arrepio daquilo que são as boas práticas e orientações dos Médicos de Saúde Pública (...). E sempre que as unidades optam por não aderir a estas soluções 'cosméticas' e pedem mais recursos para conseguirem dar resposta às necessidades, são-lhes negados".
O primeiro signatário desta carta aberta é Ricardo Mexia, Presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP), que ao SAPO24 concretizou algumas destas denúncias: "já houve vários episódios em que não permitiram às autoridades de saúde intervir publicamente porque a tutela administrativa, as ACES (agrupamentos de centros de saúde) ou ARS (administrações regionais de saúde) não permitem. Depois, estamos a falar [de casos] de reversão de decisões das autoridades de saúde no que diz respeito a isolamentos profiláticos que foram determinados", conta. A isto acresce "um manancial de questões que têm a ver com a organização técnica no terreno, em que foram impostos modelos [aos médicos de saúde pública] com os quais estes não concordam — e se não assumem esses modelos acabam por não ver os recursos que andam a pedir há meses".
Estes recursos são sobretudo humanos, "para fazer vigilância epidemiológica", assim como "meios para fazer chamadas. É verdade de alguns chegaram ao terreno, mas não são suficientes". A dificultar o combate está também a "inexistência de um sistema de informação" mais robusto que suporte a recolha, análise e partilha de dados, uma reivindicação que não é nova.
Neste documento denuncia-se igualmente a "ausência de planeamento e pensamento a longo prazo". Ricardo Mexia exemplifica com uma palavra: "janeiro".
"Tudo o que aconteceu em janeiro [é reflexo da falta de planeamento]. Sabíamos que ía haver um aumento do número de casos, porque já havia experiências no estrangeiro, como o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos. Aqui, a seguir às festas [de Natal e Ano Novo] era previsível que houvesse um aumento do número de casos e nada foi feito para reforçar os meios de resposta — e isto é verdade para a saúde pública, mas também para os hospitais".
À liberalização do Natal, acrescenta, juntou-se um problema de comunicação — sendo que a promoção da saúde pública é uma das áreas de competência dos médicos de saúde pública.
"[Houve uma] inversão da comunicação com a questão das vacinas, descurando-se o facto de que todas as outras medidas de saúde pública tinham de continuar a ser implementadas por longo tempo. As vacinas chegaram, e é uma excelente notícia, mas até isso ter um impacto populacional vai demorar muito tempo".
Além da alteração do foco da comunicação, Ricardo Mexia critica o momento escolhido para suspender as conferências de imprensa regulares da Direção-Geral da Saúde. "Passámos de um cenário de uma conferência de imprensa diária, cuja utilidade desde cedo se percebeu que não era assim tão significativa, para esta ausência de agora. No pior momento da pandemia em Portugal era importante explicar às pessoas o que é que deviam fazer para o enfrentar. Não era seguramente o momento para baixar a comunicação", defende.
Para o presidente da ANMSP, é fundamental "manter-se a mensagem de que ainda estamos longe de ultrapassar a pandemia". A par, é imperativo "reforçar os meios para a vigilância epidemiológica, quer ao nível das comunicações, quer ao nível dos recursos humanos", e é preciso ser "mais ágil" a implementar soluções.
"O que nos preocupa neste momento é proteger as pessoas e para isso é preciso uma estratégia, é preciso liderança, é preciso que as coisas se possam materializar de forma mais ágil e não haja uma demora tão grande para implementar soluções".
Quando questionamos se considera que tem havido falta de liderança na gestão da pandemia, responde afirmativamente: "acho que sim, seguramente falta mais assertividade na abordagem. Não se percebe porque é que demorámos a implementar restrições em janeiro que eram inevitáveis".
200 horas de trabalho extraordinário "oferecidas"
O documento visa ainda questões laborais, a começar pelo pagamento de horas extraordinárias.
A ministra da Saúde anunciou, em outubro do ano passado, que tinha homologado um parecer da Procuradoria Geral da República que dava luz verde ao pagamento do trabalho suplementar realizado por médicos de saúde pública para além das 200 horas extraordinárias.
Ricardo Mexia explica que "no início [da pandemia] nem sequer foram pagas aos médicos de saúde pública as horas extraordinárias, e trabalharam centenas. Depois houve um entendimento de que essas horas deviam ser pagas e que não estavam ao abrigo do [regime] da Disponibilidade Permanente, mas entenderam que [o pagamento] só teria lugar a partir das 200 horas. Não se compreende porque é que há 200 horas 'oferecidas' de trabalho. Os sindicados deviam ter sido envolvidos [nesta decisão] e não foram", lamenta.
Os signatários do documento "repudiam" ainda a forma como foi regulamentado o suplemento de Autoridade de Saúde, incluído sem negociação no Orçamento de Estado e cujo valor é, na sua ótica, "insultuoso". Não está igualmente previsto, assinalam, "o pagamento retroativo deste subsídio", que "é devido há mais de uma década".
Por fim, os médicos de saúde pública contestam "a decisão, ainda que transitória, de deixar de ser necessária a 'qualificação médica' para o exercício das funções de Autoridade de Saúde".
Ricardo Mexia explicou ao SAPO24 o que está em causa nesta matéria: "o problema está na forma como está escrita a proposta que pode levar a uma mudança na forma como são nomeadas as autoridades de saúde. Se a ideia é que as pessoas que exercem as funções de coordenação de unidades não tenham que ser consultoras, um grau de diferenciação na carreira médica, era isso mesmo que deveria estar escrito. Mas se não há pessoas com esse grau para nomear é porque os concursos nunca mais se resolvem. Há concursos pendentes desde 2017 e 2019. Isso é mais simples do que dizer que afinal não é preciso essa exigência [de qualificação médica para o exercício das funções de Autoridade de Saúde]".
No documento, os profissionais salientam que "é imprescindível relembrar que as Autoridades de Saúde praticam atos médicos e tomam decisões médicas. Suavizar esta exigência é mais um atentado à dignidade profissional das Autoridades de Saúde, abrindo um precedente inaceitável, a pretexto da situação pandémica que atravessamos. É uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada", defendem.
Apesar destas reivindicações, os signatários do documento reforçam "o seu absoluto empenho no combate à pandemia por covid-19, ao lado dos cidadãos, abnegadamente e perante a enorme discrepância entre as necessidades crescentes e os recursos disponíveis".
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