“Aqui não choveu nada”, repete em permanência Mireia, 38 anos, enquanto caminha pelo lodo que enche as ruas que levam à vivenda onde mora com o marido e as filhas gémeas, de 07 anos.
No percurso é preciso evitar a lama mais escorregadia e profunda que cobre todos os caminhos e ir fazendo gincana entre lixo, ramos, escombros de edifícios, móveis, postes de iluminação pública, restos dos carrosséis da feira anual e, sobretudo, carros e mais carros empilhados uns nos outros, virados ou metidos dentro de muros e de casas, tal foi a força das águas que varreram as ruas de Paiporte na segunda-feira à noite.
Irene (18 anos), Sónia (38), Roberto (50) e todas as pessoas com quem a agência Lusa falou hoje de manhã nas ruas de Paiporte garantem e fazem questão de dizer o mesmo que Mireia: aqui não choveu, “a água veio de cima”, dos pontos mais altos da província de Valência, e fez subir e transbordar “em cinco minutos”, “de repente”, o rio Turia, que atravessa a localidade.
Além dos 45 mortos, a água destruiu ou danificou casas, estradas, ruas e pontes, incluindo a dos carris do metro.
Hoje o Turia quase nem parece um rio, é um curso de água acastanhada e com pouca altura, que corre lentamente para o mar (já a poucos quilómetros) e onde uma família de cinco pessoas, incluídas duas crianças, recolhe água com garrafões tendo pouco mais do que meia perna submersa.
Roberto garante à Lusa que, em dias normais, nem um rio assim é: “Há alturas em que quase não passa água”.
Na noite de segunda-feira, a precipitação na região de Valência foi a mais elevada em 24 horas desde 11 de setembro de 1966, de acordo com dados oficiais, que confirmam também aquilo que dizem os habitantes de Paiporte – praticamente não caiu água nesta localidade, onde vivem cerca de 25 mil pessoas.
Onde choveu foi em zonas mais do interior e a água, ao descer para o mar, provocou inundações de que ninguém se lembra em várias localidades.
Em Paiporte, estão convencidos que tal subida repentina do Turia e com tal força destruidora, só se justifica por ter sido aberta também a barragem localizada mais a norte. “Dizem”, ressalvam Mireia e Roberto, porque ninguém viu esta informação confirmada em lado nenhum.
Ninguém viu esta informação nem muitas outras sobre o temporal que, pelo contrário, estão confirmadas. Porque na zona mais afetada de Paiporte, além de não haver água nas torneiras, também não há eletricidade ou Internet.
Desde segunda-feira à noite que não se vê televisão ou ouve rádio e Irene fica a saber pela Lusa que 45 pessoas morreram na sua cidade – incluindo residentes num lar de idosos -, que 101 morreram na sua região (a Comunidade Valenciana) e que no total o temporal fez pelo menos 104 vítimas mortais em Espanha.
A segurança com que relata a noite que viveu com os pais na segunda-feira, quando a rua se transformou num rio e a garagem e o primeiro andar da vivenda em que moram se inundou, perturba-se ao ouvir que tantas pessoas morreram por causa das inundações. Mas não chora, como garante que ainda não fez nos últimos dias, nem mesmo na noite fatídica em que a família se refugiou nos andares superiores, enquanto ouvia o estrondo dos carros a serem lançados contra os muros e as casas, os alarmes disparados, os portões a serem rebentados ou a água a cavalgar sobre as vedações dos jardins. Gravou vídeos no telemóvel que insiste em mostrar.
“Vontade de chorar havia, mas se nos púnhamos e nos pomos a chorar, não avançamos. Choramos depois, quando já tivermos saído disto”, diz.
Para já, Irene anda pela rua a interpelar as dezenas de pessoas que caminham com os pés enterrados em lama e garrafões de água vazios nas mãos. A família tem, “por acaso”, uma bomba para retirar água da garagem, que está inundada, e distribui água por quem passa, o bem mais desejado e escasso neste momento em Paiporte.
A água da garagem não dá para beber, mas não faltam interessados em encher garrafões porque, como as ruas, há casas cheias de lama que é preciso começar a lavar. E também serve para a casa de banho, como todos sublinham.
Depois do choque de quarta-feira, o dia hoje é atarefado em Paiporte, onde os habitantes varrem lama para as ruas, retiram móveis “que estão bons para ir para o lixo” ou rompem portas bloqueadas por escombros e lamas para conseguir entrar em algumas casas e prédios e assim “libertar” pessoas mais idosas que dizem das varandas que estão presas e não conseguem sair desde terça-feira.
Mas nem tudo é solidariedade e há também quem aproveite a destruição para entrar em lojas de todo o tipo e levar o que ainda lá está dentro.
“As pessoas enlouqueceram e na terça-feira saquearam logo os supermercados e outros comércios, como as lojas de ouro”, conta Sónia.
Os saques e a destruição são bem visíveis na rua Primeiro de Maio, no centro de Paiporte, onde não resta nada dentro de supermercados, mercearias, farmácias, lojas de roupa ou centros de estética.
Mireia garante que os saques só podem ter sido feitos por pessoas que não viram a água entrar-lhe em casa, sobretudo, nas garagens, que continuam alegadas e onde sabe, pelos relatos dos vizinhos, que há mais pessoas mortas que só serão encontradas quando, por fim, chegarem a Paiporte os mergulhadores das forças armadas e da proteção civil.
O carro de Mireia estava estacionado na rua na terça-feira à noite e nunca mais o viu, desconfia que “está já no mar”, que é onde nas ruas de Paiporte se comenta que podem estar os corpos de pessoas ainda desaparecidas: “Para onde correu a água tem de haver gente”.
MP // JH
Lusa/Fim
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