"Fugimos para outra sala", às escuras, para um canto onde o telhado era mais forte e resistiu ao vendaval, conta a mãe, Sifa Maolane, que se esforçou para dar peito aos gémeos, para os acalmar na noite do ciclone.
"A vida não se compra", resume, em poucas palavras, para explicar o medo que sentiu.
Três dias depois está de novo deitada numa cama da maternidade colapsada, do lado menos destruído, onde resta uma folha de teto falso e a esperança de receber cuidados médicos.
Três dias passaram sem sinais de reparações e, na outra ponta do bloco, o cenário é ainda mais caótico: tudo está a céu aberto, o chão inundado, as macas, equipamentos médicos e dossiês encharcados.
Jorge Adriano, diretor da unidade sanitária de Macomia, queixa-se de ter sofrido "prejuízos enormes" e da ajuda continuar por chegar, numa altura em que "não há um minuto a perder" para apoiar adultos e menores.
Falta apoio a mais de 368.000 crianças em risco em Moçambique devido ao ciclone Kenneth, número avançado no sábado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
"Cabo Delgado não tem história de ciclones e estamos muito preocupados que as comunidades na zona não estivessem preparadas para a escala da tempestade, que coloca as crianças e as famílias numa posição muito precária", disse o representante adjunto em Moçambique do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Michel Le Pechoux, citado no comunicado da agência.
O país é muito jovem e em todas as família há relatos sobre um esforço extra feito naquela noite para proteger as crianças, que nalgumas casas eram mais que os adultos.
Raimundo Macomia, 32 anos, fugiu de casa com a mulher e quatro filhos, minutos antes de um coqueiro ser derrubado pelo vento e a destruir na aldeia de Muangamula, distrito de Macomia, no olho do ciclone Kenneth.
"As crianças não conseguiam correr e choravam", no meio da escuridão, sob um ruído assustador de ventos ciclónicos, chapas de zinco e outros materiais a voar e a bater uns nos outros.
"Eram quatro crianças, ao colo e pela mão" do pai e da mãe, a chorar, a correr sem ver para onde, em busca de abrigo - acabaram na casa da vizinha que, apesar de danificada, foi das poucas que ficou de pé.
Faustino Ponda, 68 anos, teve tarefa ainda mais difícil: com a esposa, tinha em casa sete crianças e todos correram para a rua, antes de ouvirem a construção de estacas e barro abater-se sobre si própria.
"Algumas crianças mais velhas fugiram e conseguimos agarrar os mais novos" para se esconderem todos no descampado e dormirem no chão, à espera que a tempestade passasse.
Nos céus, o ciclone Kenneth dissipou-se no sábado, mas só o tempo dirá o que irá persistir na memória das crianças que viveram uma noite de pesadelo.
Algumas aldeias a norte parece terem sido arrasadas por uma máquina
Algumas aldeias que ficaram no olho do ciclone Kenneth parece terem sido arrasadas por uma máquina, disse ontem uma representante das Nações Unidas, em Pemba, capital provincial de Cabo Delgado, norte de Moçambique.
"Vimos do ar algumas das aldeias que ficaram no olho do ciclone e foram totalmente arrasadas. Parece que foram esmagadas por uma máquina de compactar", referiu Gema Connell, chefe do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitário (OCHA) para África Austral e Oriental.
"As pessoas pedem abrigo, água e comida. Estamos a trabalhar com o Governo, sob coordenação do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC), para dar assistência a esta operação", referiu.
A prioridade da assistência passa por "tudo fazer" nas próximas 24 horas para "levar mantimentos às comunidades e saber tudo o que se passa no terreno".
O apoio às comunidades do Norte de Moçambique depois da passagem do ciclone Kenneth vai ser "um trabalho complexo", disse hoje fonte das Nações Unidas, em Pemba, capital provincial de Cabo Delgado.
"Esta vai ser uma operação humanitária muito complexa", acrescentou Saviano Abreu, porta-voz do OCHA.
Dado que as comunidades estão em locais remotos, sem infraestruturas, apoio aéreo deverá ser necessário, mas a situação ainda está a ser discutida com o Governo.
"A imagem que vi relembrou-me os desastres [naturais] mais severos que normalmente vemos nas ilhas do Pacífico: árvores arrancadas pela raiz, casas destruídas", referiu
"Muitas pequenas comunidades estão completamente destruídas, nem uma única casa está de pé. Vi dez comunidades nesta situação", referiu.
Na ilha do Ibo, há destruição na vila principal e noutras comunidades, referiu - a ilha foi um dos pontos que ficou sob o corredor de ventos mais fortes do ciclone Kenneth.
Chuva forte inunda bairros de capital provincial do Norte “até à cintura”
Alguns bairros de Pemba, capital provincial de Cabo Delgado, Norte de Moçambique, estão inundados devido à chuva forte que cai desde a madrugada, três dias depois do ciclone Kenneth atingir a região.
Nalguns bairros "há água até à cintura", disse uma fonte das equipas de socorro das Nações Unidas que a par do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC) estão a caminho de alguns dos bairros mais precários da cidade, tais como Paquite, Ingonane e Hinos.
É necessário "prestar auxílio" a residentes em perigo, disse um dos elementos à Lusa.
Algumas das principais artérias da cidade estão submersas sendo quase impossível circular nalguns locais.
O ciclone Kenneth dissipou-se no sábado, mas a depressão atmosférica que gerou tem continuado a provocar chuva com intensidade em diversas zonas das províncias de Cabo Delgado e Nampula.
Pemba tinha escapado à entrada do ciclone em terra, na quarta-feira, mas o pior acabou por chegar hoje.
No início da madrugada, o vento começou a soprar com intensidade, amainando de seguida para dar lugar à chuva forte, acompanhada de trovoadas.
O ciclone Kenneth foi o primeiro, desde que há registos, a atingir o Norte de Moçambique, onde provocou cinco mortos, segundo número oficiais e numa altura em que ainda decorrem levantamentos em zonas mais remotas.
Quase 3.500 casas foram parcial ou totalmente destruídas, pelo menos 16 mil pessoas foram afetadas pelo ciclone e há mais de 18 mil pessoas em 22 centros de acomodação.
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