A venda e consumo de “muito álcool” é uma preocupação comum a moradores e comerciantes do Bairro Alto, na freguesia da Misericórdia, que se queixam da falta de fiscalização, sobretudo ao consumo na via pública, e alertam para a existência de estabelecimentos a funcionar como bares, mas com licenças para casas de chá.
Isto acontece porque o Plano de Urbanização do Bairro Alto e da Bica proíbe a abertura de novos bares.
Por proposta da Câmara Municipal de Lisboa (CML), liderada por Carlos Moedas (PSD), encontram-se em processo de consulta pública, até 01 de abril, novas medidas para “garantir equilíbrio entre o direito ao descanso e a atividade económica noturna”.
A proibição de venda de bebidas alcoólicas para o exterior a partir da 01:00 no Bairro Alto, Bica, Cais do Sodré e Santos é uma das propostas, assim como a obrigatoriedade de todos os estabelecimentos que não cumpram as exigências para funcionar até às 23:00 terem de fechar a essa hora.
Pelas ruas estreitas do Bairro Alto, o presidente da Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia, Luís Paisana, conta à Lusa que viveu quase 18 anos no bairro, mas há quatro decidiu morar noutro sítio “porque não conseguia dormir”.
Segundo o representante dos moradores, que vai ao bairro quase todos os dias, os problemas relacionados com a animação noturna agravaram-se após a covid-19, “com cada vez mais bares, cada vez mais ruído, mais situações em que é impossível as pessoas viverem de uma forma equilibrada”.
Quanto às propostas da CML, Luís Paisana diz que os moradores estão “um pouco céticos sobre mais uma situação que se pretende melhorar e que, depois, na prática, ou agrava ou fica tudo mesma”.
Entre as medidas apresentadas, diz que a proibição de venda de álcool para a via pública a partir das 01:00 “peca por tardia”, reclama que a fiscalização “não atua como devia” e defende que a lei do licenciamento zero, que facilita a abertura de estabelecimentos, “devia ser limitada ou proibida”.
Nascido e criado no Bairro Alto, Filipe Santiago Dominguêz, de 55 anos, resiste na zona, mas já pensou ir embora, até porque tem dois filhos pequenos.
Para este morador, tanto a CML como a Junta da Misericórdia podiam ter “mais ação” para equilibrar o direito ao descanso dos moradores e a animação noturna.
As propostas que estão em consulta pública “não vão alterar muito o que sucede atualmente”, considera, queixando-se do ruído noturno e do “monopólio” dos comerciantes, que fazem prevalecer os seus interesses.
“Consigo estar aqui e ouço o barulho do bar lá ao fundo […] a batida ouve-se a mais de 100 metros de distância”, indica.
Lembrando que os moradores têm o poder eleitoral, o morador nota “uma certa ação da Junta de Freguesia, que não havia antes” e mudanças a nível da atuação da câmara desde a eleição de Carlos Moedas.
A viver sozinha na Rua da Atalaia, uma das artérias mais movimentadas durante a noite no Bairro Alto, Albina Lobo, de 96 anos, confirma as dificuldades em conseguir descansar: “A gente quer dormir e não pode”.
“À noite é uma desgraça”, desabafa, explicando que a situação se repete “todos os dias” e que são cada vez mais os moradores a saírem do bairro, o que não faz por não ter para onde ir.
A cerca de 50 metros de distância, na Rua da Barroca, Ivone Simão, de 85 anos, moradora no Bairro Alto há quase 30, diz que a situação já foi “muito pior”. Atualmente, tem vidros duplos nas janelas de casa e “tolera” o ruído.
Afirmando que um dos problemas que se mantém é a falta de segurança, a moradora diz ter “muito medo” de sair de casa à noite e reclama “mais policiamento e mais fiscalização”.
Numa resposta por escrito, a associação de moradores Aqui Mora Gente diz que “as regras existem, o que não existe é fiscalização adequada”, por isso, “ao invés de novas regras sem sentido, a CML deveria focar-se em criar um manual de boas práticas de fiscalização e formar os seus serviços e agentes municipais nessa matéria”.
Como medidas que “parecem positivas”, a associação destaca que “todos os estabelecimentos abertos como casas de chá, barbearias, galerias - e que mais não são que bares de venda de álcool - passam a ter o horário de casas de chá, barbearias e galerias”.
Excetuando “duas ou três” medidas, “tudo o resto é uma amálgama de regras mal redigidas, ambíguas, algumas não fazendo mesmo sentido, outras estabelecendo regras, mas logo oferecendo a possibilidade de as ultrapassar, que não irão contribuir em nada, antes pelo contrário, para a resolução dos graves problemas de ruído, segurança, insalubridade, lixo, vandalismo, criminalidade que a cidade enfrenta e que tem levado à saída de milhares de moradores”, perspetiva a associação, acrescentado que Lisboa não pode ter “freguesias inteiras entregues à venda de álcool barato para a via pública, com todas as consequências nefastas que isso traz”.
Defendendo que o direito ao descanso “é intocável”, o presidente da Associação de Comerciantes do Bairro Alto, Hilário Castro, assegura que cerca de 80% dos estabelecimentos cumpre essa responsabilidade e critica a existência de “cervejeiras a patrocinar todo este ambiente porque, quanto mais venderem, melhor”.
Ressalvando que “o consumo na via pública muitas das vezes é feito por pessoas que trazem a bebida de casa, das lojas, dos minimercados”, Hilário Castro queixa-se ainda que, após o encerramento dos estabelecimentos, ninguém fiscaliza ou controla as ruas.
Sobre as propostas direcionadas para o Bairro Alto, o representante sublinha que “todas as medidas discriminatórias que venham a ser específicas para este local da cidade não são compreensíveis”, lamentando que os comerciantes sejam “vítimas de medidas que, depois, não são acompanhadas e não são fiscalizadas”.
“Temos vindo a verificar, nos últimos tempos, uma mudança para o comércio de bebidas. Isso em nada ajuda e em nada favorece todo o ambiente comercial nas zonas históricas e isto é da responsabilidade da CML porque estamos a falar de licenciamento”, alerta.
Proprietário da Ginjinha das Gáveas, no Bairro Alto, António Esteves compreende as propostas da CML, mas prevê que vai ser “mau para o comércio”, sobretudo a proibição da venda de bebidas para o exterior a partir da 01:00 “porque, à hora que querem fechar o consumo de copo na rua, é quando o pessoal trabalha melhor”.
“Como é que a gente pode controlar um cliente que vai para a rua beber o seu copo?”, questiona, recordando que a proposta inicial era proibir a venda de bebidas para o exterior a partir das 23:00, o que levaria “a maioria” dos comerciantes para o desemprego: “Se for à 01:00, ainda há uma esperançazinha”.
O comerciante constata ainda que, agora, 70% dos moradores são turistas e 30% portugueses, lembra que “antigamente já havia barulho no Bairro Alto” e sugere “um melhor policiamento” após o encerramento dos estabelecimentos.
Em resposta à agência Lusa, a CML informa que a Misericórdia é a freguesia que teve mais fiscalização por ruído entre 2019 e 2023, com um total de 1.211 ações, numa média de 20 por mês, e houve um total de 281 autos de contraordenação.
A alteração ao Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços no Concelho de Lisboa, aplicado desde 2016, é outra das propostas da CML, sugerindo que os estabelecimentos equiparados a lojas de conveniência e que vendam bebidas alcoólicas têm de encerrar às 22:00 e que os horários de funcionamento das esplanadas passam a ser diferenciados dos estabelecimentos, tendo como limite as 24:00.
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