"Tenho sorte de morar na parte central [de Kharkiv]", diz-nos o historiador e tradutor ucraniano de 42 anos, depois de partilhar um vídeo onde se veem bairros da sua cidade a ser bombardeados.
"Ao redor do meu apartamento não se passa muita coisa. Hoje ouvi tiros de fuzil pela segunda vez, mas de manhã havia carros e pessoas na rua, pouquíssimos. (...) De vez em quando, soam as sirenes para que todos procurem abrigo", conta.
Pelas redes sociais, pelos relatos de amigos e pela televisão vão-lhe chegando informações: "as autoridades dizem que carros blindados entraram do nordeste e penetraram até ao centro no domingo"; "um grupo de inimigos abrigou-se numa escola, houve um fogo devastador"; "agora há vários bairros as serem bombardeados, deixando cadáveres na rua"; "as forças ucranianas conseguiram repelir o ataque desta madrugada [de segunda-feira]"; "uma mulher perdeu ambas as pernas durante um bombardeamento e acabou por morrer"; "o governador fala em 10 mortes e mais de 50 feridos", vai sinalizando, numa cronologia dispersa.
A sua perceção é "de que o inimigo procura cercar a cidade", mas não há "informações seguras" e a situação evolui a grande velocidade. Por isso, é difícil saber como vai o avanço das tropas.
As autoridades pedem aos civis que se mantenham abrigados e o recolher obrigatório vigora a partir das 16h00. Serge não sai de casa há dois dias.
Ainda tem comida, água e luz, mas "o aquecimento já está apenas morno". As temperaturas rondam 1.ºC durante o dia, podendo descer a negativo durante a noite. Mas Serge sabe que "há bairros que já não têm eletricidade".
Quando lhe perguntamos se está a pensar em abandonar o seu apartamento, é perentório: "Não. Vou ficar. Moro com a minha mãe. Ela não quer deixar a nossa casa e eu não quero deixá-la sozinha. Além disso, sair da cidade é muito arriscado. A estação de metro [que está a ser usada como abrigo] fica um bocado longe", relata.
"De vez em quando, abrigo-me no corredor com o meu computador portátil. Penso que no corredor, que não tem janelas perto e havendo duas paredes, externa e interna, será mais seguro do que nos abrigos improvisados em redor", escreve. "Em qualquer caso, não me deixariam abandonar o país — sou homem e não tenho 60 anos", remata.
Apesar de estar na idade de poder ser mobilizado para lutar, Serge não tem obrigação de participar na guerra porque sofre de uma doença congénita. "O meu valor como soldado é zero. Mas como especialista em história e linguística posso ser muito útil à Ucrânia. Questões da história e da língua pesam muito neste conflito", lembra.
O seu português é claríssimo. O tradutor e historiador esteve em Portugal duas vezes. "Em 2016 visitei Lisboa para receber o primeiro prémio do concurso de tradução literária da Universidade de Lisboa 'Por outras palavras', de português para a russo. Em 2018, fui convidado para ir à Madeira por duas semanas, para falar no âmbito do meu interesse na língua e no conflito linguístico".
"Sou um cidadão ucraniano não apenas russófono, mas de origem russa também. Mas estou do lado do meu país. Quero ver a Ucrânia na União Europeia e na NATO", diz-nos quando tentamos saber como olha para este conflito. "É complicado", conclui. A história, que tão bem conhece, é a maior prova disso. Aproveitamos a deixa: afinal, devemos chamar Kharkiv ou Kharkov? "Kharkov é o nome russo, Kharkiv é ucraniano. Mas há uma forma aportuguesada: Carcóvia". O peso político da grafia e da fonética neste conflito é comum a outras cidades, como Kiev (ou Kyiv).
Serge, como muitos outros ucranianos, foi apanhado de surpresa por esta invasão. "Até à madrugada de quinta-feira eu esperava o melhor. Não queria acreditar que isto era inevitável. E muita outra gente também. Tínhamos medo, sim, mas em geral estávamos otimistas, isto é, fomos parvos. Apesar de sabermos que o exército russo estava pronto a atacar". E, "mesmo agora, tendo ouvido sons de muitas explosões e alguns tiros, mas não tendo visto violência com os meus próprios olhos, custa-me a acreditar".
Com o mundo de olhos postos nas negociações em curso, Serge não lhes deposita qualquer esperança. "Basta saber quem chefia a delegação russa". Refere-se a Vladimir Medinsky, um controverso historiador e ex-ministro da Cultura da Rússia que, entre outras coisas, terá defendido que a Ucrânia não devia existir. "Ele nasceu na Ucrânia e aquilo para mim faz dele ainda pior".
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