Na sexta-feira ficou viúva, sem se conseguir despedir do marido que não via há dois anos, mas, estoica, de cabeça erguida, e contendo as lágrimas responsabilizou Putin pela morte precoce do marido e deixou um apelo para que se vencesse Putin, tudo perante uma plateia na Cimeira de Segurança, em Munique. Hoje já garantiu que o marido foi de novo envenenado.
Esta não foi a primeira vez que Navalnaya enfrentou o líder russo e desafiou a repressão do país. Pela altura do envenenamento de Navalny tornou-se uma das caras mais conhecidas do mundo ocidental e motivou uma série de protestos na Rússia. Foi, ainda, graças à sua resiliência que foi possível levar o marido para um hospital alemão, onde se provou o seu envenenamento.
Embora insista que a sua função principal é a de mãe e mulher, repita que não tem interesse em entrar na política, e tenha resistido a convites, esteve sempre ao lado do marido, mas com voz própria. E chegou a encabeçar a luta contra o regime russo, para depois decidir voltar com Navalny à Rússia após a alta. Sabendo que na incerteza do futuro, a única garantia era ficarem às mãos de Moscovo.
Os últimos anos foram, como os anteriores, de resistência. Mas, desta feita, sozinha enquanto esperava poder voltar a ver o marido no caso de ser solto, ou deixar de ser enviado para cadeias longínquas em “condições draconianas”, como referiu Gomes Cravinho. Yulia dizia que tinha esperança e acreditava um dia ver Alexei livre. “Nada é impossível quando há amor”, chegou a dizer ao Der Spiegel.
E amor era algo que parecia não faltar entre o casal que se tornou um alvo, e um símbolo, da repressão do Kremlin. Dia 14 de fevereiro, Navalny fez Yulia saber que a sentia com ele “a cada segundo” e, após a morte de Alexey, Navalnaya partilhou uma fotografia dos dois com a legenda “eu amo-te”.
A voz da oposição durante o envenenamento
No documentário “Navalny”, vencedor de um Óscar, a coragem e espírito de liderança de Navalnaya estão patentes e podem ser vistos na primeira pessoa.
Depois de ter sido envenenado na Síbéria, por um agente nervoso soviético - provar-se-ia mais tarde -, foi Yulia que liderou todo o processo de denúncia e traçou o plano para tirar o marido do país. “Eu tinha que o tirar dali”, explicou acrescentado que a estratégia do hospital era arrastar o processo até que o veneno não fosse detectável, ou que o marido morresse.
No documentário há uma cena em que Navalny diz que a mulher é ainda mais radical que ele. Explicando: “Quando não és um político e vês coisas negras serem feitas à tua família, claro que isso te radicaliza”.
Não só atingiu o objetivo principal de salvar a vida do marido, como ainda teve um papel importante ao fazer com que o mundo olhasse e começasse a prestar atenção aos métodos violentos de Putin. Cinco meses depois da recuperação, Navalny decide enfrentar o julgamento na Rússia, um julgamento porque justiça sabia que não era o que o esperava. No voo de regresso, sentada ao lado do marido, olha a câmara para dizer, como no filme russo “Irmão 2”, “empregado, traga-nos vodka. Vamos voar para casa”.
Seria essa a última vez que veria o seu marido enquanto um homem livre, e a primeira que o povo russo gritaria o seu nome em uníssono à porta do aeroporto.
A partir daí suceder-se-iam as cartas diárias na esperança de que fossem entregues ao marido. E, publicamente, garantiu sempre que não se haveria de tornar numa Sviatlana Tsikhanouskaya, a mulher do líder da oposição Bielorussa, que assumiu a função do marido após esse ter sido preso. No dia da morte de Navalny, as duas deram um abraço em Munique que há-de ficar para a história.
O início de uma luta a solo
Segundo afiançou a comentadora russa Tatiana Stanovaya, “Yulia Navalnaya vai tornar-se uma figura política, quer queira quer não.” E se dúvidas houvesse acerca disto a difícil decisão que tomou no dia da morte do marido, prova-o.
Yulia estava na cimeira para pressionar os líderes mundiais a agirem perante o encarceramento violento do marido, e a repressão russa. Acompanhada do chefe de gabinete do marido, partilharam as condições deploráveis da cadeia sem saberem que seria o último dia de Navalny no Ártico.
No momento em que recebe a notícia, o primeiro pensamento é o de voar para junto dos filhos para que pudessem fazer o luto em conjunto. Mas sabia que atendendo à sua importância, e à do marido, não o podia fazer. Decide, assim, em poucos segundos, mais uma vez enfrentar e desafiar o governo de Moscovo que, segundo o que disse, havia acabado de assassinar o seu marido.
O impactante discurso de dois minutos terminou com uma ovação de pé e um beijo de Nancy Pelosi. Michael A. McFaul, antigo embaixador norte-americano na Rússia, partilhou com o New York Times a mesma narrativa: “Naquele que deve ter sido o pior dia da sua vida, foi tão forte. E deixou o lembrete de que os russos que acreditam na liberdade vão continuar a lutar por ela até onde for necessário para responsabilizar Putin pelos seus crimes bárbaros”.
A morte de Navalny, e a coragem de Navalnaya, perante o poder mundial, podem servir de ignição numa nova fase na luta contra a Rússia. E, até, na política interna americana. Importa recordar que dias antes de Putin ser acusado de assassinar um ativista político, Trump, candidato republicano à Casa Branca, tinha instigado o líder russo a atacar os aliados com menores contribuições à NATO.
Com referências a este episódio, e ao bloqueio dos republicanos na ajuda à Ucrânia, e já depois do discurso de Navalnaya, Kamala Harris discursou acerca dos perigos de se ser brando com a Rússia. A vice-Presidente norte-americana, disse ainda que a morte de Navalny confirma todos os sinais da brutalidade de Putin. Mais tarde, também Biden acrescentou: “Qualquer que seja a história que vão contar, vamos ser claros: a Rússia é a responsável”.
Após o discurso de Kamala, seguiu-se um encontro com Navalnaya, momento que serviu para expressar as condolências, mas também garantir a manutenção do apoio à sua causa. Também Blinken repetiu o mesmo procedimento.
Em tempos, no início do encarceramento de Navalny os meios russos eram uns dos principais encorajadores de Navalnaya tomar o lugar do marido na oposição. Mais tarde, essa estratégia foi denunciada como sendo apenas uma armadilha para que, não só se esquecesse que Navalny estava preso, como também para diminuir a sua imagem pública passando a ideia de que era um homem dominado pela mulher.
Indiferente a essas acusações, e sem se sentir diminuído, Navalny sempre que teve a oportunidade disse que foi a mulher que lhe salvou a vida e que lhe estaria para sempre grato por isso.
O início de vida, o sarcasmo como resposta à violência, e o que se segue?
O casal conheceu-se numas férias na Turquia e aconteceu aquilo a que os românticos chamam “amor à primeira vista”. Licenciada em economia, na altura, Yulia trabalhava no setor bancário, carreira da qual abdicou, depois do nascimento da segundo filho e assim que a vida política de Alexey começou a intensificar-se, para se dedicar à família e tomar conta dos filhos.
Até ao marido ser preso, a família vivia num apartamento na Rússia que era constantemente alvo da vigília e das invasões das autoridades russas. Chegou a partilhar essa realidade no Instagram, rede que sempre privilegiou para comunicar com os seus seguidores.
Durante muitos anos foi vontade dos russos pela liberdade que Navalnaya tivesse um papel mais ativo na oposição. E, como já referido, embora tenha sempre avançado corajosamente sempre que necessário, foram raras as vezes que subiu a um púlpito para falar, como aconteceu em Munique.
Inclusive quando Navalny esteve a recuperar na Alemanha a presença e a pressão de Yulia foi sempre sentida mais através das redes sociais do que de forma física. Foi na gala dos Óscares de 2023 que, pela primeira vez, apareceu perante o mundo para receber a estatueta de Melhor Documentário para o filme com o nome do marido. Já na altura, ao Der Spiegel, mostrou-se preocupada com com as condições que o marido enfrentava na cadeia, e lamentou não o poder visitar.
“Todos percebemos que é o Putin, pessoalmente, a manter o Alexei na prisão”, e não se mostrou iludida “enquanto ele estiver no poder é difícil que o Alexei seja solto”.
Já antes deste última ordem de prisão, Yulia estava habituada a lidar com as sucessivas detenções do marido. E a resposta do casal à repressão e violência russa foi tantas vezes a ironia. Em 2018, durante uma prisão de Navalny, um general russo apareceu, num vídeo, a envergar um chapéu militar e condecorações dizendo que ia fazer carne picada de Navalny. A única resposta de Navalnaya chegou através do Instagram usando a caricatura do general de chapéu para dizer que parecia um ditador de lata.
Já por altura desse primeiro encarceramento se questionava se Navalnaya iria ser a líder da oposição. Mas a russa nunca escondeu que queria ser, exclusivamente, a líder de sua casa. Os seus objetivos ainda assim, nunca afastaram uma legião de seguidores que viam nela uma promessa, e se inspiravam numa mulher corajosa. Por outro lado, o facto de ser mulher serviu sempre também como pretexto para ataques sexistas, tanto alegando a sua falta de capacidade como a de Navalny sugerindo que precisa que a mulher o defendesse.
Navalnaya, por altura do envenenamento do marido, explicou de forma concisa o motivo de tantas vezes segurar a linha da frente da oposição, mesmo não sendo esse o seu objetivo. “Eu percebi que naquela situação, era a pessoa mais próxima dele. Sou a mulher. Se eu desmoronar, então toda a gente desmoronar-se-á. Por isso, tive que me recompor”. E continuou, “eu não tenho medo. E peço a todos que não tenham medo”. Pedido a que os seus seguidores aderiram, mais tarde depois da sentença de Navalny, com corajosas manifestações de apoio pela Rússia.
A comentadora russa Anna Narinskaya chegou a chamar-lhe “flor única”, num ensaio onde se demorou acerca do papel de Navalnaya na luta pela liberdade - tanto do marido, quanto do povo russo.
“Não é por ela ser a mulher de um político da oposição. Mas sim porque ela teve a capacidade de unir dois elementos difíceis de combinar - a posição de mulher de um homem de sucesso e a de mulher que controla o seu próprio destino”.
Na Rússia, as mulheres têm um papel secundário. E a vida política não é uma exceção. O New York Times diz que apenas 16% do parlamento é composto por mulheres, a maioria em posições de pouca influência. E as que chegam a posições sénior é quase sempre em papéis ligados à temas como saúde feminina ou educação. Realidade que não é diferente nos papéis da oposição, embora muitas vezes apontem a falta de mulheres como um problema do Governo russo. Navalny, inclusive chegou a ser acusado de sexismo, defendeu-se dizendo que tinha contratado mais mulheres que homens para a sua organização. O sexismo é um problema grande na Rússia, mesmo que a alta taxa de mortalidade masculina, faça com que no país existam mais 11 milhões de mulheres do que de homens (dados anteriores à invasão da Ucrânia).
E, por isso, Alena Popova - co-fundadora da organização russa de direitos das mulheres You Are Not Alone -, já afirmou que “Yulia encaixa perfeitamente na agenda do país. Ela é mãe, mulher de um homem preso e tem a história de ser uma mulher que não quis entrar na política até o sistema podre a ter obrigado”.
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